Sobre Pandemia, Mulheres e Trabalho

Antes de mais nada, não romantizemos o trabalho em tempos de pandemia, ok?

Nós, as mulheres, responsáveis pelo trabalho de reprodução social, nos constituímos como a esmagadora maioria de trabalhadoras domésticas, de profissionais de saúde e de pobres do mundo inteiro. Estamos sendo muita atingidas por ditos e mais ditos que testam, a todo minuto, nossa capacidade de trabalhar, sobremaneira, migrando o público para o privado, constituindo um híbrido ambiente de trabalho, onde valem novas regras, novos horários, novas fronteiras. Sim, o suposto desregramento, tem um planejamento que se exarceba em infindáveis horas de trabalho entre o computador, o celular, os filhos e a cozinha.

É bom saber que para as mulheres, o ambiente privado, o espaço da casa, não é um lugar de não-trabalho, não mesmo. A experiência do teletrabalho sobrecarrega os afazeres domésticos e/ou poderíamos dizer que os afazeres domésticos sobrecarregam as tarefas de teletrabalho? Nenhum dos dois dá trégua. Em 1960, as mulheres perfaziam cerca de 16% da força de trabalho no ambiente de produção social. Chegamos aos anos 2000, representando mais de 40% da mão de obra que mantém esse país funcionando. E nem por isso, tivemos horas diminuídas em trabalho doméstico. Não somos liberadas para a chamada vida pública. Em média, as brasileiras trabalham cerca de 8/9 horas a mais que os homens em atividades dentro de casa. Se quisermos alcançar vôos maiores, precisamos abrir mão da maternidade e montar um verdadeiro esquema de guerra, caro inclusive, para custear a mão de obra que cuide dos nossos por nós. Mesmo assim, não nos deslocam da cadeira de gerente do lar. A qualquer problema, por menor que seja, somos chamadas a atenção, sempre pondo em xeque nossa capacidade de produção fora de casa. Há quem chame isso de reinado.

Em tempos de pandemia, as mulheres não estão dedicando mais tempo aos filhos, aos idosos e /ou aos doentes, nem tampouco dividindo tais tarefas com os homens de maneira mais igualitária. Na verdade, as mulheres estão disputando o tempo que era passado fora de casa com os afazeres domésticos. A rotina que diferenciava “trabalho de casa” e ” trabalho fora de casa” e que bem ou mal, acabava por produzir fronteiras laborais mais ou menos delineadas, virou uma rotina onde tudo fica junto e misturado, exigindo ainda mais desenvoltura física e emocional das mulheres. Na verdade, estamos mais cansadas. E nem sei se estamos percebendo isso.

E parte de nós está mais cansada ainda, também, porque o trabalho doméstico feito por profissionais, em sua maioria mulheres, está suspenso. Deslocadas do “trabalho fora de casa” estão confinadas com sua prole, sem direito a nenhum descanso, fazendo das tripas, coração para gerenciar a crise econômica que se abate sobre o corpo e a mente. E aqui não falo da antiética rivalidade entre saúde e economia. Entre salvar vidas e salvar empregos. Falo em como se manter e manter os seus vivos para que se pense em como se refazer depois que tudo isso passar. Porque há de se estar viva para poder se recompor.

Outras muitas de nós, na verdade, 7 em cada 10 profissionais de saúde no mundo inteiro, são mulheres que em parte estão proibidas de voltar pra casa, terceirizando o cuidado de suas famílias a outras mulheres: mães, irmãs, vizinhas. E quando podem voltar pra casa, não levam, literlamente, o “trabalho de fora de casa”, mas, levam o cansaço, o medo, a incerteza de quem pode ou não estar contaminada, de quem pode ou não infectar outras pessoas. E acumulam esse peso com o serviço doméstico que não cessa, em nenhuma dessas situações.

Mas, entre todas nós, as trabalhadoras pobres , negras e chefes de família são as mais atingidas por crises. Elas estão na base da pirâmide social, desempenhando trabalhos braçais, com baixíssimas remunerações e submetidas a exaustivas jornadas de trabalho. São as que mais precisam do apoio estrutural do estado e da solidariedade da sociedade. A elas, há poucas alternativas fora do que o estado pode e deve oferecer e o que a sociedade pode compartilhar. Devemos conhecer mais e melhor a vasta literatura que existe sobre a face feminina da pobreza mundial.

A pandemia deveria nos fazer repensar tudo isso, mas, antes e depois dela haverá um mundo capitalista, caracterizado pela relação capital x trabalho, marcado pela divisão social e sexual do trabalho. A boa e velha luta de classes clara, nítida e ainda mais acirrada.

Que nós, os democratas, progressistas, de esquerda, de centro… possamos fazer da divisão social e sexual do trabalho um pauta central em nosso repertório político. Pelo menos isso, temos condições de alterar.

Nágyla Drumond.
Socióloga. Professora Universitária. Doutora em Sociologia. Secretária Estadual de Mulheres do PCdoB/Ce.