A mistura tóxica do Caldeirão: como Luciano Huck vê a favela

Para o apresentador “global”, favelas são doenças — e tratá-las requer iniciativas individuais e benevolência do mercado. Um mero placebo que esconde origem das cidades desiguais: elites gananciosas que concentram e especulam imóveis

Diante do atual quadro de desgoverno, com reformas antipobre e retrocessos em todas áreas, o debate sobre ideias para o Brasil adianta o calendário eleitoral e torna a tragédia da pandemia oportuna para quem tem intenções de se lançar como alternativa. Este texto é mais do que uma resposta ao artigo “A cura. Vida nas favelas: é impossível que continue assim”, escrito por Luciano Huck e publicado no jornal Folha de S.Paulo, em 01/04/2020. É uma reflexão consequente sobre os argumentos que Huck utiliza na intenção de qualificar o debate sobre um tema tão complexo quanto as favelas e a produção da cidade.

Caldeirão do Huck, o programa, é uma metáfora para uma mistura inusitada de atrações e entretenimento. No artigo citado, que é um preâmbulo de uma agenda desconexa para a intervenção nas favelas do País, não há menção explícita ao Caldeirão, mas a metáfora parece servir. Huck embarca no debate sobre a pandemia e mobiliza as condições de moradia nas favelas para argumentar que “a cura” viria de uma espécie de poção mágica, delicadamente preparada por alguém que se diz muito ciente e cioso dos ingredientes, da receita e do preparo.

A falsa dicotomia doença-cura, problema-solução

O texto começa com a história de sofrimento e de superação de Carlos Jorge, que foi maltratado na infância, driblou o destino quase certo da marginalidade para “mudar o mundo” ao fundar uma ONG em uma área de concentração de favela de Maceió (AL). Carlos participou do programa de Huck apresentado em 25 de abril, quando Huck, mais uma vez, sugeriu que as elites do país visitem favelas como as de Maceió onde atua a instituição de Carlos. Caberia perguntar como se sentiriam os moradores desses bairros ao serem “visitados para observação” de tais elites.

O texto não expôs claramente o que a ONG “Manda Ver” faz, como o quadro no programa o fez, mas mencionou que o capital inicial do empreendimento veio do dinheiro obtido por ele na rescisão de um contrato de trabalho e que a ação da ONG multiplicou as matrículas nas escolas públicas da região. Ou seja, na história de sucesso individual de um menino favelado que decide mudar o mundo, são as medidas de proteção do trabalhador e uma rede de escolas públicas construídas e mantidas com recursos públicos tanto a origem quanto o indicador de eficácia do trabalho de promoção de oficinas culturais e esportivas a que a ONG se dedica.

Mas a história de Carlos Jorge, o menino favelado que idealizou e comanda esse empreendimento social, não precisa ser mais detalhada. Como faz no seu programa de TV, é apenas um gancho para que Huck apresente “a cura”. Luciano simplifica o diagnóstico, a receita e, mais ainda, o preparo e os tempos de cocção. Assume subliminarmente uma espécie de culpa de classe ao levantar o problema da desigualdade, da falta de mobilidade social e de oportunidades, sempre com um olhar no indivíduo.

Sua frase “ninguém pode se sentir rico enquanto houver tanta pobreza por aí”, indica que seu projeto de alívio ao sofrimento dos mais pobres não se articula a nenhuma discussão de redistribuição de riqueza. Alinha-se, pelo contrário, a uma agenda histórica imposta pelo Banco Mundial aos países “emergentes”, por organizações que imaginam “cidades sem favelas”. Aliviar a pobreza é, afinal, uma cortina de fumaça para que não se enfrente a real produção de desigualdades.

Mas o assunto principal do seu artigo são as favelas e a vida nas favelas. São a doença, a realidade “inaceitável” das nossas cidades (como ele escreveu em outro artigo na mesma Folha de S.Paulo, em 15/05/2019) e que “não podem continuar assim”. A associação explícita das favelas e dos bairros populares à doença não é nada nova na história desses assentamentos. Foi com base nesses argumentos que uma série de ações higienistas expulsou populações e extinguiu muitos bairros populares nas cidades brasileiras. São argumentos especialmente incensados em momentos de epidemias que atingem a sociedade como um todo, como se a favela e os seus moradores fossem os culpados pela própria doença, ou, de modo mais perverso, fossem a própria doença.

Para sua poção mágica, Huck se mostra disposto a mobilizar o que seriam os melhores ingredientes já produzidos pela sociedade civil, pelas lideranças religiosas, pelos economistas, acadêmicos, pensadores e pela política. Para essa “arte”, ele apresenta uma definição bem particular: “entender as pessoas e fazer as pessoas se entenderem”, algo que a ciência política costuma chamar consenso ou conciliação. Contudo, antes de entender, ele já traz uma resposta bem definida: soluções de mercado, contrapartidas a empreendedores, iniciativa individual.

Trata-se de uma receita que já vem sendo utilizada, ganhando espaço no debate nacional sobre favelas, com um pensamento urbanístico inspirado equivocadamente em experiências internacionais fora de lugar. Huck se defende costumeiramente dizendo-se bem informado, bem acompanhado de entendedores das favelas, mas ignora todo um acúmulo da sociologia, da historiografia, do urbanismo, da política pública e da trajetória de luta de populações das favelas no Brasil.

Não por acaso, Luciano se esquece do que o próprio Estado brasileiro já produziu. Esquece-se dos moradores das favelas, das organizações populares e dos movimentos sociais que há mais de um século lutam pelo direito de que seus territórios e sua forma de moradia sejam efetivamente reconhecidos como parte da cidade. Ao se apropriar de um repertório que foi construído nessa luta, Huck, de algum modo, assalta a despensa.

No seu texto, ele menciona a importância de que as favelas recebam investimentos “da porta para fora” – infraestrutura, lazer, educação e cultura – e fala sobre o direito à moradia adequada por meio de iniciativas de melhoria habitacional “da porta para dentro”. Fala do “morar perto” como estratégia do “morar bem” e da produção habitacional em áreas centrais como formas de promover o “desadensamento” das favelas.

Essas reivindicações já antigas, apresentadas como novidade, fazem parte de uma agenda em defesa de uma ação estatal coordenada nesses territórios, numa disputa progressista por intervenções financiadas com fundo público. Trata-se da luta pelo reconhecimento dos direitos dos seus moradores tradicionalmente culpabilizados pela sua forma de morar.

A tecnologia que foi desenvolvida, por décadas aqui – o Brasil é o país que tem o maior repertório em intervenções em favelas – se deu na tensão dialógica com os moradores das favelas e com as diferentes formas de organização popular. Porque a política não se faz apenas no consenso e na conciliação – e já tivemos demonstrações recentes de que o preço que a democracia paga por essas práticas pode ser alto, porque os de cima não querem perder nada, não estão dispostos a conciliar. A política acontece no dissenso, no conflito. E o conflito fundamental advém da concentração de renda, de propriedade e de poder que, por sua vez, reproduz a pobreza e a forma dos pobres morarem e viverem.

Diferentemente do que o apresentador mostra, a favela não é “opção”, mas a forma de produção da habitação e da cidade no capitalismo, sobretudo daquele de natureza dependente. Não existem os bairros de Farol nem de Pajuçara sem o Vergel do Lago em Maceió; não existe o Morumbi nem os Jardins sem Paraisópolis ou toda a ocupação dos mananciais no Grajaú em São Paulo; não existe a Gávea ou o Leblon sem a Rocinha ou a Baixada Fluminense no Rio de Janeiro.

A nossa desigualdade não é apenas um desvio, está na própria estrutura da sociedade brasileira, com uma elite e uma dita classe média que concentram as propriedades imobiliárias (no campo e na cidade), que ocupam os espaços urbanos cruelmente denominados como “nobres”, numa cidade que fica cada vez mais cara e restrita. Para se ter uma ideia, entre 2009 e 2014, segundo dados do Fipe-ZAP, a valorização imobiliária média dos imóveis no País foi de 195%, enquanto a inflação ficou em 56%.

A favela não é uma anomalia da sociedade brasileira – é o modo pelo qual 11,4 milhões de brasileiros (IBGE, 2010) conseguiram se estabelecer e viver nas cidades do país, numa aproximação numérica que é sabidamente subestimada, como revelam pesquisas científicas e mapeamentos públicos das condições de moradia no Brasil. Por exemplo, em São Paulo mais de 10% dos domicílios estão em favelas enquanto apenas 4,5% estão em unidades produzidas por programas públicos de habitação de interesse social.

No Caldeirão de Luciano estão também as velhas fórmulas mágicas da parceria público-privada. Sem mencionar a taxação das grandes fortunas e sem supor a progressividade geral nos impostos sobre propriedades e dividendos, prevalecerá o discurso de que não há recursos que possam inverter as prioridades dos investimentos urbanos, para que as favelas possam ser urbanizadas, melhoradas integralmente.

As experiências das Zonas Especiais de Interesse Social, nascidas das lutas das Comunidades Eclesiais de Base e implementadas em governos municipais progressistas em meados dos anos de 1980, já eram algo do que Luciano denomina “zoneamentos inclusivos”, para dialogar sem nenhuma profundidade com uma literatura internacional.

Mas a referência mais direta que ele faz é ao instrumento da “cota de solidariedade”, que aposta que incorporadores imobiliários produzam unidades habitacionais como contrapartida em empreendimentos de grande porte. Entretanto, na experiência recente do Plano Diretor de São Paulo, essa cota foi boicotada ao máximo, revelando que a “mistura social” proposta pelo instrumento, diante das abissais desigualdades de nosso contexto social, não é aceita pelo mercado imobiliário, pois não é rentável.

O que a legislação urbanística chama de potencial construtivo tem sido a demanda do mercado imobiliário para alcançar adensamento e com isso produzir mais propriedades em terrenos menores. Argumenta-se que essa estratégia é chave para se aumentar densidades, para se produzirem cidades compactas, que otimizem suas infraestruturas. Para as favelas, ao contrário, o argumento recorrente consiste na defesa de um desadensamento, referido como o procedimento inquestionável nos processos de urbanização.

Huck faz alusão a essa pauta de maneira breve e displicente, pois desconsidera que, em geral, o tal argumento engendra políticas de remoção de populações e extinção física de casas e territórios inteiros, substituídos por edifícios novos, verticalizados, que interessam aos setores mais influentes da construção civil. Contudo, essas intervenções não têm resultado em densidades realmente maiores. Paradoxalmente, a densidade habitacional das favelas mais consolidadas dos grandes centros urbanos revela uma inteligência presente na forma ocupação do solo, ainda que às custas de muitos sacrifícios familiares, ambientais, e que estes ensejem a importância e a necessidade de intervenções físicas e reformas capazes de dialogar com essa realidade.

Na receita rápida de Huck, a experiência internacional das Community Land Trust aparece como um preparado que poderia ser utilizado nos processos de regularização fundiária das favelas. É verdade que o ideário de formas comunitárias de gestão da propriedade é mobilizado há tempos por setores populares, inspirados não apenas nos EUA, mas também em experiências de cooperativas latino-americanas, como as que ocorrem há mais de 50 anos no Uruguai, onde praticamente um terço da população é cooperada. As concessões e usucapiões coletivas já fazem parte do nosso arcabouço jurídico de garantia de segurança na posse para os moradores que são secularmente ameaçados e efetivamente expulsos de suas casas. São algumas das pequenas vitórias nas lutas urbanas, que tentam reconhecer o direito de posse, mas têm dificuldade em dialogar com o sistema jurídico que está baseado na propriedade formal.

Regularizar a posse e a propriedade nas favelas não pode ser uma ação isolada, mas passa pela urgência de se discutir a questão da propriedade para toda a cidade, para não se produzir um movimento de inclusão de moradores de favelas como uma segunda classe no mundo da propriedade. Desestimular a concentração de propriedades e o seu crescente uso como investimento é estratégia central para a transformação de nossas cidades e deveria atingir fundamentalmente as poucas empresas ou pessoas que têm a maior parte das propriedades imobiliárias.

Mistura explosiva

A mistura apresentada pelo candidato é conhecida e é explosiva. A cidade já é mesmo um caldeirão e os possíveis remédios ou curas devem ser realmente amargos para aqueles que sugam os investimentos públicos no Brasil há cinco séculos. A pandemia tem servido para mostrar que nem mesmo o nosso corpo nos pertence, que não basta cuidar de si.

É necessário assumir a responsabilidade pelo outro, por aquele com quem vivemos juntos, que a saúde, a doença, a vida e a morte têm uma dimensão pública. Se as consequências do contágio nos territórios populares podem ser mais graves para os seus moradores, a luta popular mais estrutural e atual tem sido não incriminar e criminalizar, mais uma vez, esses territórios e essas pessoas.

O caldo já tinha entornado há muito tempo… – mas o chão da sala de jantar ainda estava brilhando. É tempo de saber o que já temos na geladeira e na despensa, reconhecer o valor do feijão com arroz que temos em casa. É preciso reconhecer que o tacho pertence àqueles que cozinham para o deleite dos poucos que se arrogam donos do caldeirão.

Publicado originalmente no BrCidades

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