Bolsonaro, o invencível?

Parte da esquerda acha que o capitão não perde espaço – e, ao contrário, cresce ainda mais – quando vem à luz a reunião ministerial monstruosa de 22/4. É um erro grave, que se baseia em saudosismo e leva à paralisia

Quem perdeu a capacidade de formular projeto, e pensar mesmo a médio prazo, vive esperando uma bala de prata que destrua o adversário e encerre o pesadelo. Não há isso na fita da reunião ministerial de 22 de abril. Dada a ausência, muita gente de esquerda, em análises e conversas nas redes sociais, voltou a entrar em depressão. Bolsonaro estaria fortalecido. Seus apoiadores fascistas já preparariam uma contraofensiva. Moro teria parido um rato. Estas avaliações expressam almas feridas, mas não são capazes de analisar objetivamente os fatos – o que impede de projetar as ações seguintes.

O que fez a força de Bolsonaro não é a mimetização das táticas políticas de uma suposta “era Bannon” – mas a conjunção de certos fatores políticos particulares. Nesse aspecto, há semelhança com o fascismo. É preciso haver vasta desconfiança nas “elites políticas” aparentes. É necessário um suposto “inimigo do povo”. Mas é indispensável, também, uma amplíssima unidade, em torno do “líder”, dos atores que controlam os aparatos de poder. Parlamento, Judiciário, mídia e em especial o grande poder econômico – todos estes precisam cooperar, por meio de ações e omissões, para que as monstruosidades do projeto ultradireitista passem em branco. E mais: uma vez no poder, é preciso que o novo governante não se limite a manter a retórica que permitiu sua ascensão; mas que também ofereça, às multidões que o viram como salvador, algum conforto.

No cenário brasileiro atual, os dois primeiros fatores continuam presentes. Os xingamentos de Bolsonaro ao “establishment”, durante a reunião, ajudarão a coesionar sua tropa de choque – e até a deixar em dúvidas quem está se distanciando do capitão agora. E o antipetismo ainda é um filão que pode render. Mas as duas últimas condições estão se desfazendo rapidamente – e o vídeo ajudará a dissolvê-las. Mais ainda: devemos agir para acelerar esta desconstrução, se não quisermos nos limitar à posição de comentaristas de uma conjuntura tenebrosa.

Faz brutal diferença uma Rede Globo que, ao invés de passar o pano para os ataques do ex-capitão à democracia, dedica-se a desconstruir, com bom jornalismo, seus argumentos. Os noticiários da emissora demonstram ontem como é inconsistente a alegação de que Bolsonaro não quis intervir na PF para proteger seus filhos e “amigos”, procurando apenas garantir sua segurança pessoal. O trabalho foi feito com profundidade e didatismo. Repercutirá ao longo dos dias, mesmo entre os bolsonaristas – que, ao contrário do que às vezes julgamos, em nossas visões persecutórias, são pessoas deste mundo, imersas e sujeitas às pressões e contrapressões do diálogo social.

Também é muito animador que o presidente da OAB – esta mesma instituição que apoiou abertamente o golpe de 2016 – tenha dado uma resposta à altura, curta e grossa, ao general Heleno. Ou que o ministro Celso Mello, do STF, não tenha até o momento se deixado intimidar. Ou que a grande rede conservadora, armada até há pouco no Judiciário, esteja rompida, ainda que seja por solidariedade a Sérgio Moro. Ou que, no Legislativo, o presidente seja agora obrigado a barganhar com o Centrão, o que abre enorme espaço para escancararmos a falsidade de seu discurso “anti-establishment”.

A brecha pode alargar-se ainda mais porque o quarto fator indispensável ao avanço da ultradireita – oferecer alguma dignidade material às maiorias – está cada vez mais distante. A reunião mostrou uma equipe espantosamente alienada da realidade. Enquanto o país afunda em pandemia e mortes, os ministros alimentam seus próprios delírios, vociferam contra a China (e o presidente refere-se a Donald Trump com o “tio”), tramam (e ocultam) a privatização do Banco do Brasil, planejam “aproveitar a oportunidade” para “passar a boiada” contra a Amazônia.

Como destacou Fábio Malini, esta demonstração aberta de que são dementes perigosos não passará batida. Repercutirá nas redes sociais, na TV, nos jornais brasileiros e internacionais. E Bolsonaro não terá outro caminho, exceto continuar alimentando seu universo de seguidores que, segundo mostram as pesquisas, encolhe lenta mas nitidamente.

Que fazer, diante deste cenário? Há duas opções. Uma é lamentar que não veio a bala de prata; que nosso desejo de sair do pesadelo não se cumpriu; e que podemos, portanto, nos dedicar ao culto dos tempos felizes que passaram. É o que parece fazer Lula quando, em meio a uma conjuntura tormentosa, julga importante afastar-se de… Ciro Gomes e Marina Silva!

A outra opção é construir alternativas políticas – baseadas nos objetivos possíveis agora. Se estamos diante de uma ameaça fascista; se o presidente fala sem pudor em armar seus seguidores contra os adversários; se a peste alastra-se agora pelo interior do país e pelas periferias, não pode haver confusão sobre o alvo de nosso combate – nem dispersão de esforços.

A meta agora é derrotar Bolsonaro; estreitar cada vez mais seu espaço de manobra; reduzir sua base de apoio; ao final, condená-lo por seus inúmeros crimes de responsabilidade e comuns, tirando-o do poder e levando-o à cadeia. Nesse percurso, ou ao menos em parte dele, os nossos antigos adversários podem ser aliados. Entre eles – é bom ser claro – estão a Rede Globo, o juiz Sérgio Moro e os governadores que, embora eleitos com campanha à direita, estiverem dispostos a combater a pandemia e a defender a democracia.

Significa que nossa luta política terá de ser limitada e moderada? É óbvio que não. Em defesa da vida das maiorias e do combate ao fascismo há um vastíssimo leque de ações a desencadear. Algumas, defensivas e cautelosas. Defender as finanças dos estados e municípios, diante dos ataques de Paulo Guedes, requer trabalhar em sintonia com governadores como Dória e Witzel. Desarmar as milícias políticas, que começaram a se formar em Brasília, exige recorrer a decisões do Judiciário e a ações da Polícia Militar. Mas outras iniciativas, tomadas em nome da Saúde e da democracia, podem ser mais radicais – e abrir caminho para recuperar terreno perdido.

Por exemplo: o prolongamento da pandemia (devida, em grande parte, à negligência do governo), precisa abrir, agora, um debate político sobre a extensão do auxílio emergencial de R$ 600 – e sua transformação numa Renda da Cidadania autêntica, equivalente a, ao menos, um salário mínimo. Há um imenso espaço para defender esta ideia; para apresentá-la, nas periferias, como alternativa ao “dá ou desce” (trabalha ou morre) de Bolsonaro; para transformá-la num instrumento pedagógico que demonstre como é possível fazer a redistribuição de riquezas também por meios monetários. Nesta defesa – e em muitos outros pontos – é evidente, estaremos em campo oposto ao da Globo.

A proposta de obrigar os bancos a reestruturar compulsoriamente as dívidas dos inadimplentes – com juros muito próximos de zero e prazos compatíveis com a renda dos devedores – permite denunciar a oligarquia financeira. A proibição das demissões (já em vigor em países como a Argentina) permite dialogar com os trabalhadores da economia formal e os sindicatos. No novo cenário, há espaço inclusive para ações diretas mais radicais. Será ótimo se se multiplicarem, por exemplo, manifestações como a de torcedores corintianos em São Paulo, ou dos coletivos antifascistas em Porto Alegre, que se confrontaram cara a cara, nas ruas, com manifestantes direitistas.

A disputa política pode ser, sempre, um território de mobilização, criatividade e inovação. Mas desde que não seja feita com base no passado, nem no próprio ego. Resta saber se haverá disposição.

Publicado originalmente no Outras Palavras

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2 comentários para "Bolsonaro, o invencível?"

  1. Namy Chequer disse:

    Concordo inteiramente com Antonio Martins e acrescentaria o seguinte: a fala do Guedes na fatídica reunião revela uma divisão dentro do ministério do Bolsonaro quanto à questão econômica. Também lá já há quem não acredite que o setor privado vai alavancar a economia no pós pandemia. Portanto, a frente ampla não deve ser buscada só na política. Também na área econômica a realidade segue abrindo chance para uma frente ampla, já que nem dentro do próprio governo há mais unanimidade ultra neoliberal.

  2. Darcy Brasil disse:

    Geralmente as análises de Antonio Martins contêm passagens de que discordo. Mas esse texto foi, sem dúvida, o que melhor me representou, disse o que eu, talvez, se ficasse uma semana ou mais trabalhando em um texto as minhas impressões políticas derivadas do vídeo da reunião ministerial macabra e das reações a ele que passei a ler, conseguisse igualmente expressar. Não quero parecer arrogante, a maior parte dos textos que leio me informam algo que eu não estava percebendo ou que não poderia perceber por não possuir algum conhecimento especializado, ou por não ter potencial cognitivo para conceber. Não foi o caso desta análise de Antônio Martins. Ele também me informou algo, mas que não era novo, pois correspondia a um turbilhão de idéias em circulação na minha cabeça, ideias soltas, que o brilhante trabalho de síntese de Antonio Martins tornou coerentes para mim mesmo. Absolutamente nada do que sua excelente análise me disse me pareceu estranho, mas revelador de meu próprio subconsciente político, da forma como estou percebendo a maior parte da esquerda, suas reações, sua incapacidade de formular uma práxis politica concreta e consequente, sua tendência em separar a análise política da prática politica, sua tendência a superestimar as forças do inimigo e substimar, não apenas as suas próprias forças, mas principalmente as forças das massas populares, sua incapacidade de distinguir o inimigo principal dos inimigos secundários, de admitir que uma Frente Antifascista deve ser tão ampla a ponto de abrigar qualquer indivíduo disposto a colaborar para derrotar uma ameaça de golpe fascista muito maior do que a implantação de um regime fascista comandado por alguém como o general Gueisel, mas um regime fascista controlado por gângsters, por milicianos, gente que expulsa trabalhadores comuns de suas casas próprias por falta de pagamentos de taxas de segurança, que queima os inimigos dentro de pneus de automóveis. A Frente contra Bolsonaro é a principal urgência politica do momento, nela cabe até mesmo a Rede Globo, enquanto Bolsonaro não tiver sido afastado do Palácio do Planalto. Ela pode, inclusive, obter até mesmo alguns compromissos políticos prementes da própria Rede Globo para o estabelecimento de uma politica nacional de combate às milícias que atuam dentro do Estado brasileiro, posto que, somente com o desbaratamento dessa rede criminosa, o bolsonarismo será definitivamente derrotado. Após a derrota de Bolsonaro, alguns inimigos secundários passaram a a fazer jus à condição de inimigo principal e demandarão outros tipos de alianças. Por último, Antonio Martins, além de ter revelado a situação de fragilidade política em que se encontra Bolsonaro, definiu em detalhes uma práxis política concreta, um algoritmo de procedimentos políticos bastante detalhado e coerente para ser observado pela luta que visa conquistar a retirada de Bolsonaro e seus milicianos do Palácio do Planalto. Sugiro a todos que relevem a importância dessa análise particular, feita por alguém incomumente inspirado pelos deuses das Ciências Políticas, que o escolheram como porta-voz.

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