Como o desmonte do patrimônio público ameaça a população mais pobre

Para Getúlio Vargas, da Conam, postura antidemocrática e a agenda de retirada de direitos sociais de Bolsonaro só agravam a crise

A resistência e a luta da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), em defesa da democracia e dos direitos sociais, visam barrar o retrocesso representado pela política de austeridade de Paulo Guedes, ministro da Economia de um governo com tendências fascistas. É o que aponta Getúlio Vargas Júnior, presidente da Conam e membro do Conselho das Cidades, em entrevista ao portal da Fenae.

Segundo Getúlio, a Emenda Constitucional (EC) 95/2016 contribuiu para o desmonte da política de desenvolvimento urbano no país. “O fim do programa Minha Casa Minha Vida foi um duro golpe na luta por moradia e fez com que o deficit habitacional retomasse a um patamar elevadíssimo, com o governo apontando solução com busca no mercado”, denuncia.

Confira a entrevista:

Fenae: Como a crise do coronavírus afeta a população dos bairros das periferias do Brasil?
Getúlio Vargas: A pandemia do coronavírus tem várias dimensões. Primeiro, não se trata exatamente de uma nova crise, pois aprofunda a que o Brasil já vivia com o desemprego ou a falta de emprego, com a fragilização dos direitos dos trabalhadores e com a mudança recente nas regras para a aposentadoria, através da reforma da Previdência, prejudicando os que começam a trabalhar mais cedo, ganham menos e ficam grandes períodos sem carteira assinada. Enfim, é uma crise dentro da crise. É claro que essa situação afeta ainda mais os bairros e as comunidades periféricas do país, porque, muitas vezes, as pessoas trabalham de dia para comer à noite.

No momento que é necessário o afastamento social, há pessoas que estão saindo até do mapa e não possuem cadastro. No Brasil, existem milhões de pessoas que vivem sem documento ou cadastro. Como ainda há o agravante de o governo Bolsonaro dificultar o acesso à renda básica emergencial, aprofundando assim situações de vulnerabilidade, muitas pessoas não seguem as orientações sanitárias de isolamento social. Em muitas comunidades, inclusive, ficam complicadas as questões relacionadas à higiene e ao saneamento. Como exigir, por exemplo, em um barraco de uma ou duas peças, onde moram seis a sete pessoas, que exista o afastamento social necessário? Então, com certeza, a população que mora nos bairros é a mais atacada e a que mais sofre os danos de uma pandemia como essa.

Fenae: Mais Sistema Único de Saúde, menos coronavírus? Qual o significado dessa reivindicação para o movimento comunitário?
Getúlio: Essa reivindicação dialoga, intrinsecamente, com a realidade do movimento comunitário. Hoje, inclusive, a presidência do Conselho Nacional de Saúde está sob a responsabilidade da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), na pessoa de Fernando Zasso Pigatto, que é o diretor de Saúde da nossa entidade. Isso mostra a relação da luta comunitária com a pauta sanitária no Brasil.

Temos procurado fortalecer as ações do Conselho Nacional de Saúde e traduzir, para as diversas comunidades das periferias, um debate que acontece desde a ponta, com base em um movimento comunitário desde o bairro. Precisamos do SUS e, claro, de gestão e de qualificação.

A questão central do SUS é de financiamento. Por isso, temos lutado pela revogação da Emenda Constitucional 95, o chamado teto dos gastos, porque fragilizou muito a saúde, a educação e um conjunto de políticas sociais no país. Estima-se que, de 2016 para cá, a EC 95 já retirou R$ 22 bilhões e meio de recursos da saúde. Ou seja: precisamos revogar essa emenda constitucional para ter mais SUS e menos coronavírus.

Precisamos também olhar, com muito cuidado, para a militarização do Ministério da Saúde e o que isto representa de ameaça ao Conselho Nacional de Saúde. Esse órgão não atua apenas como um conselho por si só, mas ajuda a criar mobilização em rede, com o propósito de reforçar as instâncias estaduais e municipais.

No Brasil, hoje, os conselhos de saúde atuam em rede. O Conselho Nacional de Saúde ajuda conselhos de bairro, conselhos gestores de postos de saúde, e até o Conselho Estadual de Saúde, a cumprirem um papel importante. Existem comissões do Conselho Nacional de Saúde com atribuições previstas em lei, como, por exemplo, a Comissão de Finanças e Orçamento (Cofin), encarregada de avaliar o nível de investimentos em saúde do próprio governo federal. Essa atribuição, aliás, está respaldada na Lei Complementar 141, que regula o financiamento da saúde pública.

Fenae: Na visão da Conam, como a Caixa Econômica Federal e os demais bancos públicos podem ajudar no processo de enfrentamento da pandemia?
Getúlio: O papel social da Caixa Econômica Federal é indiscutível, assim como o de outros bancos públicos. A Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa (Fenae), que representa o movimento nacional associativo dos empregados do único banco 100% público do país, tem sido uma histórica parceira dos movimentos urbanos e da Conam. Precisamos fortalecer a relação em defesa da Caixa, porque a Caixa é o banco do povo e dos que não têm banco. É a instituição que oferece, como nenhuma outra, acesso a uma diversidade de serviços.

Então a defesa da Caixa, e contra a privatização ou o fatiamento de partes estratégicas do banco, é uma reivindicação histórica do movimento comunitário e de bairro. O papel central da Caixa, dentro dos seus limites, é ajudar milhões de brasileiros que nunca tiveram conta bancária, para que, nesse momento de pandemia, possam ter acesso à renda básica emergencial. A equipe econômica do governo Bolsonaro tem de mudar a sua postura e garantir o acesso a esses recursos para a grande maioria da população em todo o Brasil.

Outra questão fundamental é a flexibilização. Enfim, a suspensão temporária das parcelas dos financiamentos habitacional e educacional. Diante da crise causada pelo coronavírus, o conjunto da população teve um baque muito grande na sua renda. Mesmo quem manteve a sua remuneração de uma forma ou de outra, e tendo outras despesas, em home office acaba trabalhando e gastando igual a outras situações. A Caixa, então, cumpre um papel muito importante na ajuda àqueles que mais precisam. Atua, inclusive, como o banco daqueles que nunca possuíram conta em uma instituição financeira.

Fenae: Como conciliar a luta por cidades sustentáveis com a ausência de políticas de desenvolvimento urbano no país?
Getúlio: Desde a Emenda 95, que trava os investimentos em saúde e educação, o programa Minha Casa Minha Vida acabou, o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) foi descaracterizado, a mobilidade urbana e as políticas de desenvolvimento urbano ficaram, na prática, sem nenhum orçamento. Precisamos reverter algumas políticas. Isso só poderá ocorrer pela luta popular e por algumas ações diretas junto ao Congresso Nacional. Essas iniciativas podem aumentar a possibilidade de avançarmos nas muitas questões consideradas fundamentais para o movimento comunitário.

Nesse momento, a luta por cidades sustentáveis passa pelos “Fora Bolsonaro” e “Fora Mourão”, porque a política que esses caras querem implantar no país não dialoga com o que a Confederação Nacional das Associações de Moradores definiu em seus congressos e com o que o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) tem construído no último período em relação à questão urbana. O FNRU é um lugar de articulação de ideias e diálogo nacional, e reúne as entidades que lutam pela moradia popular no país.

A nossa luta é de resistência democrática, para que não percamos os direitos duramente conquistados, de 1988 até 2016. Trata-se de uma luta muito difícil, mas os movimentos populares urbanos vão seguir resistindo em defesa do direito à cidade e com base numa visão muito mais ampla. Nosso entendimento é de que o direito à cidade não significa só o teto, o ônibus ou o saneamento, mas se refere a todos os serviços e equipamentos públicos e ao direito de as pessoas sentirem-se seguras e ficarem bem.

É, enfim, o direito à cidade como um todo. Não só o trabalhador ajudar a construir a cidade, mas depois poder usufrui-la em toda a sua plenitude. No debate sobre a construção de cidades justas e democráticas, a sociedade brasileira precisa ser ouvida. Continuaremos na luta para que esse processo seja o mais abrangente possível.

Fenae: O que caracteriza a atuação das entidades do movimento comunitário na atual conjuntura do país?
Getúlio: Para a Conam, conforme definido em seu último congresso, realizado em 2017, a atuação das entidades do movimento comunitário se dá com base em um tripé. Primeiro, a luta histórica pelo direito à cidade, com reivindicações sobre moradia, saneamento, mobilidade e programas urbanos, de uma maneira geral. Temos ainda, no Brasil, muitos despejos e muita violação de direitos.

Outra questão que nos mobiliza é a luta pela saúde e pelas políticas sociais. No último período, por exemplo, a Conam tem dedicado ainda mais energia na colaboração a suas afiliadas que participam de diversos conselhos estaduais e municipais de saúde, como também do Conselho Nacional de Saúde.

O terceiro e último ponto desse tripé é a luta contra o desemprego e pela retomada do projeto nacional de desenvolvimento para o país. Tudo isso deve vir combinado com todo um esforço pela unidade, na busca pela construção de amplas frentes de resistência democrática, na defesa da Caixa e do patrimônio público. Essas questões estão presentes no dia a dia do movimento comunitário.

Nesse momento, diante de um governo com tendências fascistas como o de Bolsonaro, o que permeia a nossa atuação é a defesa da democracia, é o direito à livre manifestação, é o direito às mobilizações das comunidades das diversas regiões. Entendemos que, hoje, a democracia encontra-se ameaçada. Daí a necessidade de construção de frentes amplas, não de uma frente única, mas diversas de cunho democrático e antifascista, que reúnam os setores progressistas da sociedade brasileira em defesa do povo e de seus direitos.

Em uma frente democrática, cabe todos os setores progressistas, mesmo que economicamente ou pontualmente algumas questões não sejam compartilhadas em relação aos ideais históricos do movimento comunitário. A Conam tem procurado fortalecer a Frente Brasil Popular e vem dialogando, em alguns locais, com todos os segmentos que reforçam o Estado Democrático de Direito. Temos procurado construir amplas frentes de resistência, subscrevendo documentos, materiais e notas que venham reafirmar esse compromisso com a democracia no Brasil, hoje tão ameaçada.

Fonte: Fenae

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