Poxa, capitão-Presidente e generais: parem de odiar a Constituição!

“Pergunto pela enésima vez: Até quando deixaremos que se use o direito a favor de quem prega a sua extinção?”

Foto: Reprodução

Acordo domingo e recebo um vídeo (vejam, para entender o grau da insanidade!) feito na noite do dia 13 de junho para o dia 14 em frente ao Supremo Tribunal Federal. Um foguetório lançado para cima do prédio da Suprema Corte. Vozes ao fundo pregando o fechamento. Escarnio puro à Corte. Contempt of Court feito por inimigos da democracia. Claro que em sintonia com os mestres que impulsionam esse constante (agora o delito é permanente) Contempt contra a nossa Suprema Corte.

Pergunto pela enésima vez: Até quando deixaremos que se use o direito a favor de quem prega a sua extinção?

Sabem o que é uma contradição performativa (em alemão performativer Widerspruch)? Explico, para ser bem simples. Contradição performativa é o mesmo que alguém afirmar: “eu estou morto”. É isso. Pregar o fechamento do STF ou do Parlamento é dizer: eu estou morto.

A verdadeira contradição performativa esculpida em carrara: em nome da liberdade, alguém pregar a não liberdade.

E todos os dias vemos manchetes: Juristas fulano e beltrano dizem que o art. 142 da CF dá direito às forças armadas serem os moderadores da política… Isso é replicado por milhões de seguidores de redes sociais impulsionadas por robôs. Nota técnica: essa conta ainda virá e será entregue, por AR, aos juristas que incentivaram essa torta interpretação do artigo 142 (Ives Gandra, Adilson Dallari, entre outros).

Que o jovem deputado Carlos Jordy e a Dep Zambelli interpretem o artigo 142 sob a ótica da NHB — “Nova Hermenêutica Bolsonariana” —, é até explicável. Afinal, apedeutas não conseguem entender letras conjuminadas.

Mas é imperdoável que professores importantes incentivem esse tipo de coisa, a ponto de um Ministro do STF ter de dizer que isso é terraplanismo constitucional, ao arquivar um mandado de injunção.

Tempestade perfeita: somem-se as “interpretações” ao art. 142 às declarações do Presidente da República, seu vice, seus generais e temos um quadro de constante tensão. Todos os dias uma nova ameaça, uma nova tensão. Ninguém mais aguenta isso. Mais de 43 mil mortos pela Covid e o Presidente fazendo caja chino todos os dias.

Vem outro general e diz: ah, não vai ter golpe (ufa!), desde que a oposição não estique a corda. E ele é do governo. Mas quem ele pensa que é, para ameaçar a nação? Ameaça com uma locução subordinativa condicional. Lendo a contrario sensu, disse: se a oposição esticar a corda haverá golpe. O general é o próprio contraditório performático. Fala em nome da democracia e ameaça com a não-democracia.

Essa catilinária antihermeneutica (isso só pode ser culpa do ensino jurídico brasileiro que permite que se discuta tantos absurdos e da falta de filtro, pela qual é possível dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa porque sempre haverá uma multidão de aplaudidores) teve que chegar ao Supremo Tribunal, justamente a instituição vítima do Contempt of Court tão bem analisado pelo Ministro Edson Fachin no voto sobre o Inquérito 4.781. Explico:

Para afirmar a obviedade do óbvio (no Brasil é necessário), partidos políticos entraram no STF buscando esclarecer, de uma vez por todas, que o artigo 142 não da às FA o papel de moderar a política. E o STF, agora pela voz de Luiz Fux, disse, de novo, o que os juristas mais importantes, o Congresso, a OAB, já haviam dito: que as Forças Armadas não têm atuação como poder moderador!

Mas não adiantou. A peleja não acabou.

E lá vieram o Presidente da República, seu vice e um general para dizerem: “As FFAA do Brasil não cumprem ordens absurdas, como p. ex. a tomada de Poder. Também não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos.”

Pronto. Explico de novo: O Presidente, seu vice e um general deram ao voto de Fux uma interpretação modelo Humpty Dumpty (dou às palavras o sentido que quero!): “Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”.

Ou seja, pode o STF, a doutrina, a ONU, a Corte de Haia dizerem que x é x e o governo vai dizer que… não é bem assim. E vitamina a crise. O Brasil é o único país hoje que tem três crises. Todos os demais têm duas (pandêmica e econômica). O Brasil tem mais uma: a política, incentivada pelo Presidente todos os dias. Tudo é culpa dos governadores, dos prefeitos e do STF. E as ameaças de golpe. E invocação patética do art.142 da CF. E tudo começa de novo.

Incrível. Os neo-intérpretes Bolsonaro, Mourão e Azevedo “interpuseram” embargos declaratórios à decisão do Min Fux… e eles mesmos julgaram esses “embargos”… e esclareceram as “dúvidas” do voto. Conclusão: Fux não disse o que disse e o artigo 142 dá direito a…e tudo começa de novo. O tempora, o mores!

Levemos isso “em sério” e prestemos atenção. Para tanto, vou trazer de novo o passado para iluminar o presente. O jurista Bernd Rüthers avisou: a ascensão do autoritarismo na Alemanha nos anos 30 deu-se muito por causa da leniência da comunidade jurídica. É o que ele chamou de “uma Interpretação Não Limitada (constrangida)”, que pode ser lida como: um dos motivos de o ovo da ditadura ter sido chocado foi a ausência de uma interpretação que constrangesse os que assumiram o poder.

Bem assim ocorre no Brasil. Por aqui, além da falta de uma interpretação que constrange, há a falta da atuação politica da política e da falta de uma política institucional. Vejo Universidades, por seu corpo docente, denunciarem esse quadro perigoso.

Porém, institucionalmente, já de há muito Colégios de Tribunais de todos os matizes da República, associações como AMB, CONAMP, associações de fiscais, auditores, tribunais de contas, estudantes (a UNE sumiu?), sindicatos, etc., deveriam construir um discurso fortemente limitador-constrangedor (begrenzte, para usar o próprio nome do livro de Rüthers — Die unbegrenzte Auslegung). De todo modo, já há uma reação. As pessoas estão, aos poucos, percebendo o tamanho do abacaxi. Como bem disse o Ministro Gilmar Mendes: “A sociedade começa a tomar consciência disso. Houve uma certa anestesia, mas as instituições têm dado demonstração de resiliência, as manifestações de rua são muito importantes no sentido de dizer que tem limite para tudo isso.”

Por isso, cada dia sem constrangimento-limitação o ovo choca mais. Lembremos do filme de Bergman (O ovo da serpente). Será que não aprendemos nada com os livros, a arte e, fundamentalmente, com a história?

De todo modo, talvez uma literatura para crianças ajude a compreendermos melhor o fenômeno. Com efeito, o governo Bolsonaro parece muito com o Reizinho Mandão, do conto de Ruth Rocha (que aqui adapto). Eis. O reizinho assume o poder. Logo promove a maior bagunça no governo, pondo em prática sua maior diversão: fazer leis absurdas e sem sentido só pelo prazer de mandar em todo mundo. E negar a ciência. Seu lema: viva o anti-intelectualismo!

Os conselheiros, em vez de o aconselharem, ficavam concordando e incentivando o reizinho a fazer mais e mais diatribes. Era só alguém questioná-lo que o reizinho gritava bem alto: “Cala a boca! Eu é que mando!”

E, com tanto cala a boca pra lá e cala a boca pra cá, as pessoas foram aos poucos desistindo de responder e, à medida que o tempo passava, o reizinho não tinha mais com quem conversar, porque nem mesmo debaixo de seus gritos de ordem os habitantes do reino podiam obedecê-lo: nenhum deles sabia mais falar!

Será que ainda sabemos falar?

Post scriptum 1: poxa, se até a Deputada Zambelli constrangeu Moro, será que nós, dessa imensa comunidade jurídica, não conseguimos fazer a nossa parte e constranger esse surto de autoritarismo?

Post scriptum 2: quando vejo, leio e ouço um general ou o presidente ameaçando com golpe-intervenção militar, fico pensando e aqui digo: “poxa, general, poxa capitão-presidente, vi meu pai ser preso em 1964. Lutamos tanto para ultrapassar essas feridas. Lutamos tanto por democracia. E agora, passados mais de 50 anos do golpe e 31 da nova Constituição, tenho de ficar preocupado com as novas ameaças dos senhores?”

Por que tanto fascínio pelo arbítrio? Por que tanto ódio da Constituição?

Indago: Não valeu nada a prisão de tantas pessoas, as vidas perdidas? E os pais e mães de tantas pessoas?

Isso tudo não valeu para nada? Ora, vamos nos enxergar. Para não sentirmos vergonha no futuro. Ou já no presente.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados

Fonte: Conjur

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