As bravatas do bolsonarismo e as exportações brasileiras para a China
Existe a imagem errada de uma China que se especializou em manufatura para se tornar a fábrica do mundo e, em troca, importa produtos agrícolas, seguindo assim a máxima de especialização no comércio internacional. Na realidade, porém, a China investiu muito para aumentar a produção e a produtividade no setor agrário.
Publicado 22/06/2020 16:08 | Editado 22/06/2020 16:09

Em meio à turbulência com a saída de capitais de curto prazo da economia nos últimos tempos, a balança comercial brasileira se manteve relativamente estável. Em grande parte, devido à persistência das exportações para a China, que chegaram, em maio, a representar 40% do total nacional,frente a um patamar de 35% no mesmo mês do ano passado. Os destaques continuam sendo a soja, o petróleo e o minério de ferro. O bom desempenho do setor primário também camuflou mais uma vez a contínua perda dos industrializados na pauta exportadora.
A pergunta que surge é até que ponto essa relação é sustentável diante das crescentes manifestações pouco amistosas por parte de autoridades do governo brasileiro em relação ao país asiático. As contradições entre os discursos político-ideológicos à la Trump e a realidade de uma crescente simbiose na relação econômica entre o Brasil e a China podem refletir uma deliberada ambiguidade ou uma esquizofrenia com potencial disruptivo.
Há algum tempo, a própria representação chinesa no Brasil, por meio da sua Embaixada, critica as gratuitas ofensas, mas sem qualquer consequência prática. No dia 22 de maio deste ano, o renomado jornal South China Morning Post publicou um artigo a respeito da necessidade da China diminuir sua dependência de importações de soja dos EUA e do Brasil, considerando que as relações com ambos teriam piorado muito. A reportagem menciona a necessidade de se apostar em uma política de diversificação de fontes, mencionando Rússia e países integrantes da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative), também conhecida como Nova Rota da Seda. Nesse contexto, o prof. Li Wei da Universidade Renmin de Beijing citou explicitamente as infundadas críticas do governo brasileiro às políticas adotadas pela China para conter a pandemia do novo coronavírus.
Mas qual é exatamente o grau de interdependência que se criou em torno da soja entre Brasil e China?
Existe a imagem errada de uma China que se especializou em manufatura para se tornar a fábrica do mundo e, em troca, importa produtos agrícolas, seguindo assim a máxima de especialização no comércio internacional. Na realidade, porém, a China investiu muito para aumentar a produção e a produtividade no setor agrário.
Dados compilados pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, em português) mostram que, com uma população bem acima de um bilhão de habitantes, a China tornou-se a partir de 2016 não somente o maior consumidor, mas também o maior produtor de alimentos em termos de volume. No caso dos cereais, o país aumentou sua produção anual de 249 milhões de toneladas, em 1978, para 610 milhões, em 2018. Considerando a produção por habitante, os números continuam impressionando: de 259,6kg/hab/ano em 1978 para 437,4kg/hab/ano em 2018. No mesmo período, a participação da População Economicamente Ativa (PEA) empregada na agricultura recuou de 70,5% para 26,9%. Esses números refletem políticas agrícolas persistentes ao longo dos anos priorizando o uso intenso de tecnologias, aumento da área irrigada, uso intensivo de fertilizantes e aumento da capacidade de geração e consumo de energia nas áreas rurais. Isso foi fundamental para que a China pudesse alcançar o conhecido crescimento econômico nas últimas três décadas.
Acontece, entretanto, que houve uma deliberada política de focar na expansão da produção de milho, trigo e arroz, estagnando a produção de soja, como se observa na tabela a seguir.
Tabela 1 – Produção e importação de açúcar, arroz, milho, soja e trigo, em milhões de toneladas, pela China. Comparação entre 1995 e 2018
Ano | Trigo | Milho | Arroz | Soja | ||||
Prod. | Imp. | Prod. | Imp. | Prod. | Imp. | Prod. | Imp. | |
1995 | 102,2 | 12,4 | 112 | 3 | 126,9 | 0,8 | 13,50 | 0,8 |
2018 | 126,8 | 4,50 | 222,6 | 4,65 | 140,8 | 4,9 | 15,95 | 98,5 |
Fonte: elaboração própria baseada em dados da FAO/STAT (2019), OCDE (2019)
Assim, a China buscou e conseguiu uma autossuficiência de cerca 95% no caso de trigo, milho e arroz, mantendo a dependência de importação coeficientes mínimos. Já a produção de soja cresceu apenas marginalmente, gerando, em consequência, uma explosão das importações desta oleaginosa.
Tal aumento drástico das importações de soja reflete a expansão da produção pecuária chinesa, que dobrou entre 1990 e 2018, de 448,56 milhões de toneladas para 197,77 milhões de toneladas de carnes de boi, suínos, aves, ovinos peixes e leite conforme dados publicados pela OCDE. As expectativas futuras apontam para a continuidade desse aumento do uso da soja, ligada a uma mudança no padrão de consumo do mercado interno chinês, priorizando carnes, aves, ovos, produtos lácteos e óleos,em detrimento dos cereais tradicionais. Esse movimento é fruto do crescimento da renda e do processo de urbanização do país.
Qual motivo levou a China a deliberadamente escolher importar soja, tendo em vista deque se trata, em verdade, de uma oleaginosa de origem chinesa?
O simples motivo é que cultura da soja ocupa extensas faixas de terra, consome muita água e aloca pouca mão de obra. Há de se lembrar que a China, com quase 20% da população mundial, detém somente 8% das terras aráveis (cerca de 122 milhões de hectares) e 5% da água potável do planeta. Ainda assim, o país consegue produzir 95% dos alimentos que consome. A escolha por importar soja faz parte dessa equação. Por isso, a soja sozinha representava, em 2018, 74% da tonelagem total de grãos importada pelo país.
Se a China fosse produzir a soja que importou em 2018, precisaria ter, pelo menos, 40 milhões de hectares (considerando sua produtividade média) a mais de terra do que tem hoje, algo em torno de 33% de sua área arável, sem contar a quantidade extra de água necessária, da ordem de 171 trilhões de litros (considerando consumo de 1.800 litros de água para produzir um quilo de soja). Fica evidente que a China não tem condições em curto prazo de diminuir sua dependência das importações maciças de soja.
O que a China fez, de outro lado, foi montar uma enorme capacidade de processamento de soja com mais de 90 milhões de toneladas/ano para, com isso, gerar renda e emprego internamente. Para tanto, o país prioriza importara oleaginosa em grãos, em detrimento de óleo e farelo, conforme se verá em seguida.
Quem produz soja?
Conforme pode ser observado na tabela 2, a produção de soja está altamente concentrada nas Américas, nos EUA e no Cone Sul, em particular o Brasil.
Tabela 2 – Produção de soja por país e participação no total mundial em 2018 (em milhões de toneladas e %)
País | Produção | Em % |
EUA | 123,66 | 35,5 |
Brasil | 117,89 | 33,8 |
Argentina | 37,79 | 10,8 |
China | 14,19 | 4 |
Índia | 13,79 | 3,95 |
Paraguai | 11,05 | 3,1 |
Canadá | 7,27 | 2 |
Mundo | 348,71 | 100 |
Fonte: FAOSTAT
Dados referentes a safra 2019/2020 mostram que houve uma diminuição da produção nos EUA. Como consequência, o Brasil se tornou pela primeira vez o maior produtor mundial, com cerca de 120 milhões de toneladas de soja, contra 96 milhões de toneladas dos EUA. Tal redução da produção norte-americana já é, em parte, reflexo dos atritos entre a China e os EUA. Se antecipando a uma possível queda da demanda chinesa, houve um movimento de substituição produtiva para o milho, que, nos EUA, é utilizado também para a produção de etanol.
Ao assumir a dependência da importação da soja pela China, o Brasil entrou em uma trajetória de incremento da produção, justamente para atender a essa demanda, dedicando grande parte da sua área cultivada para este fim. De acordo com dados do Conab a exportação de 66 milhões de toneladas corresponde a quase 20 milhões de hectares plantadas. E, segundo a Embrapa a área cultivada no Brasil está na casa de 65,91[1]milhões de hectares, a área destinada a soja soma 53%, e a área destinada a soja que vai para a China 30% do total.
A tabela 3 mostra a expansão em toneladas da exportação de soja brasileira entre 2000 e 2018. Revela também como o Brasil se encaixa na política chinesa de priorizar a importação de soja não-processada. A participação de óleo e farelo caiu para menos 0,5%, advindo de um patamar já baixo, de 7,31%. Observa-se, portanto, que o processo de primarização da pauta exportadora brasileira se deu até dentro do complexo da soja.
Tabela 3 – Exportação brasileira de soja em grãos, farelo e óleo para a China, em milhares de toneladas 2000-2018
Ano | Óleo de soja | Farelo de Soja | Soja em grãos | % de Óleo + Farelo em relação a Soja em grãos |
2000 | 63.049 | 67.389 | 1.783.628 | 7,31 |
2005 | 365.310 | 5.000 | 7.131.040 | 5,19 |
2010 | 935.964 | – | 19.064.458 | 4,91 |
2015 | 205.246 | 1.600 | 40.925.507 | 0,51 |
2018 | 229.025 | 89.053 | 68.556.624 | 0,46 |
Fonte: Ministério da Economia/Comex. Elaboração própria
Se, de um lado, a produção de soja no Brasil se tornou peça chave para as políticas de segurança alimentar e contribuiu para a estabilidade social da China desde o início dos anos 2000, de outro, se tornou o principal produto de exportação do Brasil, representando hoje, sozinho, mais de 20% do total, como pode ser visto na tabela 4.
Tabela 4 – % da soja no total das exportações do Brasil
2011 | 2013 | 2015 | 2017 | 2019 | 2020 jan-maio |
9,4% | 12,8% | 14,6% | 14,6% | 14,5% | 22,4% |
Fonte: Ministério da Economia/Comex. Elaboração própria
Nos primeiros 5 meses de 2020, em meio a uma pandemia, houve um avanço na exportação de soja, chegando a 34,97 milhões de toneladas (+37 % com relação ao mesmo período no ano passado) das quais 73% destinadas à China. Por felicidade dos exportadores, a demanda mundial, puxada pela China, segurou os preços em dólar e fez os ingressos em reais aumentaram. Entre o início de fevereiro e o de junho, o preço de um saco de 60kg do grão se manteve estável em torno de US$ 18,70, mas aumentou em reais de R$ 79,5 para R$ 100,8[2]. Assim, enquanto parte do bolsonarismo se junta às críticas a China, uma parte da base que o ajudou eleger agradece ao antigo Império do Meio.
Tal processo de interdependência dos dois países teve início no ano 2000, quando a China ingressou na Organização Mundial do Comércio (OMC).Naquele momento, o mercado chinês absorvia apenas 5,5% do total da soja produzida no Brasil. Com o passar dos anos, em 2019, chegou a consumir 50,3% da safra brasileira. Há, portanto, uma relação simbiótica que não apresenta qualquer sinal de afrouxamento. Assim, o Brasil não teria a quem vender seus produtos se a China tivesse problemas em suas compras; a China, por sua vez, enfrentaria dificuldades se o Brasil reduzisse sua produção.
Tudo indica, no entanto, que a China está bastante confortável com essa relação. A tabela 5 mostra o aumento da participação brasileira nas importações totais chinesas.
Tabela 5 – Origem da soja importada pela China de 2015 a 2018
2015 | 2016 | 2017 | 2018 | |
Brasil | 50,7% | 44,7% | 55,5% | 80,9% |
EUA | 35% | 43,5% | 34% | 9,88% |
Argentina | 11,4% | 8,7% | 6,6% | 3,97% |
Canadá | 1,5% | 2,2% | 2,1% | 3,88% |
Uruguai | 0,92% | 0,5% | 1,36% | – |
Rússia | 0,38% | – | 0,38% | 0,72% |
Fonte: https://oec.world/en/profile/country/chn/#trade-products Obs: o ano de 2018 foi atípico para a exportação dos EUA
Estando a produção do cereal concentrada nos EUA e no Brasil, a Chinatem poucas chances de diversificar, em curto prazo, seus principais fornecedores. Na verdade, o que se verificava é que a chamada “guerra comercial” entre as duas potências estava gerando oportunidade para a produção brasileira. Ao mesmo tempo, a perspectiva do acordo comercial firmado no início deste ano entre as duas superpotências, chamado de Fase 1, apontava para o contrário: um compromisso da China em aumentar a importação de soja dos EUA em detrimento do Brasil. Ou seja, a lógica é que os exportadores de soja do Brasil tivessem vantagem em conflitos comerciais entre a China e os EUA. Mas isso tudo de forma limitada, porque, evidentemente, o Brasil ou o Cone Sul como um todo não teriam como substituir a produção dos EUA.
Há de se observar ainda que o Brasil se tornou também peça chave na política de importação de petróleo da China, a maior importadora mundial deste combustível. A participação do Brasil no total das importações chinesas aumentou de 2% em 2014 para quase 8% em 2019. Assim, o Brasil, neste caso, está disputando o terceiro lugar, com Angola e Iraque, atrás de Arábia Saudita e Rússia. Na pauta exportadora brasileira para a China petróleo já superou o tradicional minério de ferro.
Some-se a essas duas relações comerciais as oportunidades que o Brasil oferece para o investimentos produtivos chineses em diversas áreas, em particular energia e infraestrutura, e se chegará à inevitável conclusão: tudo indica que a China sabe que, no caso do Brasil, as retóricas anti-China não têm base entre os setores econômicos nem entre os atores sociais, ao contrário do que ocorre em relação aos EUA.
Assim, as chances de a retórica agressiva do governo Bolsonaro contaminar as relações econômicas e comerciais entre Brasil e China são mínimas, inclusive porque se trata de um padrão de relacionamento que agrada àqueles que convivem bem com a primarização da economia brasileira, ou seja, àqueles que mandam na política econômica do atual governo.
A curto prazo, por conseguinte, tudo indica que os exportadores de soja do Brasil não têm com que se preocupar. Um acirramento do conflito EUA-China vai resultar em ganhos marginais em volume e preço; uma eventual implementação do Acordo da Fase 1 gerará uma perda igualmente marginal. Há de se considerar, ainda, que, como foi explicado, a perspectiva é de um aumento do total da demanda chinesa.
Dito isso, é de se presumir, por outro lado, que a China não esteja confortável com tamanha dependência, e que, a médio prazo, buscará diversificar a origem da importação de soja, estimulando com capital e tecnologia a produção em outros países asiáticos, africanos e até da Europa do Leste.
Este artigo é do Observatório da Economia Contemporânea
Giorgio Romano Schutte é professor Associado Universidade Federal do ABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB).
Reinaldo Campos é doutorando em Economia Política Mundial da UFABC.
[1]Nesse total não estão contabilizadas as pastagens. Há de se observar ainda que a mesma área que está com soja no verão pode ter trigo, milho, girassol, aveia ou outra cultura no inverno.
[2] Preços referentes à soja de Paraná . Fonte: Cepea/Esalq.
Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil