A cultura e o pós-pandemia

Aparelhos culturais públicos precisam ter planejamento para voltar da pandemia com novas funções e buscar recursos para sobreviver devido à redução de público, inclusive turístico.

Teatro Municipal de São Paulo não deve reunir público nos próximos meses, enquanto pandemia vigorar. Foto: Cezar Xavier

Por (2013-16)Editorias: Artigos – URL Curta: jornal.usp.br/?p=333552109

Luiz Armando Bagolin – Foto: Cecília Bastos/USP Imagem

Bastou as autoridades locais adotarem medidas de relaxamento ao isolamento social, para as pessoas rapidamente saírem às compras, lotando estabelecimentos comerciais de rua, shoppings populares e feiras livres. O “novo normal”, pelo menos por aqui, é algo impensado, porque as nossas gentes, por motivos diversos, alguns justificáveis, outros não, estão dando pouca atenção às medidas coletivas de combate à pandemia. Vão retomando a vida cotidiana de idas e vindas, de trocas, conversas e negócios, como se nada de mais grave houvesse acontecido, ou pior, como se à nossa volta milhares de pessoas não estivessem ainda doentes e outras muitas morrendo.

No campo da cultura, das artes e do entretenimento, entretanto, a velocidade da retomada, mesmo quando em algum momento a pandemia for debelada e a doença controlada (pois ela não desaparecerá), o comportamento será bem diferente. Com museus, centros culturais, bibliotecas e outros espaços dedicados à cultura fechados, exposições e espetáculos cancelados, e toda a pirâmide de produção nos mais diversos gêneros, da assim chamada alta cultura à cultura popular, bem como a de massa, atingida, não é possível ter prognósticos muito positivos sobre o que acontecerá num futuro próximo.

Olhando na direção dos países desenvolvidos, que já passaram pelo pico da pandemia, e estão planejando ou recomeçando a abrir museus e instituições culturais, percebemos que mesmo em lugares onde, ao contrário do Brasil, a visitação a espaços culturais, a exposições de arte, livrarias, concertos etc. é um hábito cultivado, incentivado pelo Estado e caro a uma percentagem grande da população, está havendo uma mudança quanto ao padrão de comportamento em relação ao status anterior à disseminação da doença.

Em média, a nova circulação de pessoas nos principais museus europeus foi reduzida de 30 a 40%. Erike Schmidt, diretor das galerias Degli Ufizzi, declarou que agora é o momento “ideal para experimentar as exposições de maneira calma, relaxada e tranquila, como era possível há décadas e décadas atrás”.

Outros museus na Itália também estão reabrindo com orientação de receber menos pessoas ou de controlar a entrada para receber apenas pequenos grupos. Na Espanha, o Prado reabriu com a meta de receber no máximo 1.800 pessoas por dia; o Museu do Louvre, assim como o Beaubourg, promete reabrir a partir do dia 1º de julho também com controle e redução de visitantes. No Reino Unido, as instituições nacionais abrirão a partir do dia 4 de julho; a Tate Modern, no entanto, não tem planos de reabertura para tão logo.

Bernard Blistène, diretor do Pompidou, diz que é o momento para se pensar numa nova relação com o público, mais qualitativa: é hora para “desacelerar”. O KW de Berlim, instituição voltada à arte contemporânea, abriu desde o final de maio, recebendo no máximo 40 pessoas por dia. Karoline Köber, porta-voz do instituto, diz que “aqueles que vão ao museu ver arte amarão o silêncio”.

No ambiente do mercado de arte, das grandes feiras internacionais, como Basel, Arco etc., o tema é o mesmo: a desaceleração. Há marchandsdealers, curadores e outros profissionais ligados às feiras que passam meses viajando de um lugar para outro, de feira para feira, participando de encontros, coletivas de imprensa, jantares e reuniões infindáveis no intrincado e cada vez mais supérfluo e hiperinflacionado mercado da arte contemporânea. Mas agora esses profissionais estão se perguntando: para que isso tudo? O que realmente importa? O que é essencial?

O mercado, as galerias, suas feiras, assim como os grandes museus e suas coleções continuarão a existir e a tendência é retornarem à normalidade, à recepção tanto dos amantes das artes, especialistas ou não, quanto dos amantes de selfies. Isso ocorrerá novamente, não tenho dúvidas, e dentro de muito pouco tempo. Do ponto de vista psicológico, as pessoas tendem a voltar a se comportar de acordo com os hábitos adquiridos, sobretudo quando se deseja superar ou esquecer um processo traumático.

Com cuidados de higiene e limpeza ampliados e reiterados, controle do número de acessos de visitantes e redução da programação de mostras, ampliação do tempo das exposições, as coisas vão pouco a pouco se ajustando. Concha Iglesias, diretora de comunicação do Museu Reina Sofia, diz que “o pós-pandemia será um período sem exposições de grandes nomes e longas filas. Esta é a hora de buscar novas colaborações entre as diferentes instituições, entre o público e o privado, e intensificar o trabalho em rede”.

Resta, no entanto, saber qual será o impacto econômico sobre essas instituições, haja vista que uma boa parte, 50% das suas receitas ou mais, vem de ingressos e da venda de souvenirs, livros e catálogos.

Aqui no Brasil, no entanto, a situação das instituições e lugares da cultura, que já era bem complicada, com um aparato que se espalha por uma região de dimensões continentais, falta de recursos e principalmente de políticas públicas abrangentes que entendam a cultura como um ativo econômico importante, tende a se agravar ainda mais.

Nos últimos anos, o investimento em cultura, ainda que tenha sofrido pequenos aumentos em aportes aqui e acolá, não foi suficientemente significativo para salvaguardar o nosso patrimônio, aprofundar as ações de pesquisa e de preservação de acervos, que são obrigatoriamente mantidos por lei, assim como ampliar o interesse e a visitação do público, em seus mais diversos estratos sociais, e que, em última análise, é o destinatário principal dessas ações e o vedor destes acervos.

Houve nos governos anteriores uma preocupação mais evidente, pelo menos, com a manutenção de grupos e dinâmicas sociais descentralizadas, não necessariamente vinculadas às instituições culturais formais, buscando iniciativas que pudessem ser expressões políticas do conceito de “cidadania cultural” (Michel de Certeau reconhecera essas expressões como “forças ou operações táticas”), o que favoreceu e dirimiu em parte, ainda que minimamente, os agravos históricos cometidos contra as minorias sociais, assim como a impossibilidade de acesso das mesmas aos bens culturais estabelecidos.

Houve o justo reconhecimento do Estado de que o que faziam e ainda fazem é arte e é cultura. A Lei Rouanet continua sendo, por aqui, o principal instrumento para o financiamento público da cultura (com isenção ou devolução parcial de impostos devidos principalmente por pessoas jurídicas), embora a maioria dos projetos contemplados ainda estejam muito concentrados nas regiões Sudeste e Sul, e atendam particularmente à produção de grandes espetáculos ou iniciativas com retorno comercial.

Se a lei já era insuficiente para dar conta da abrangência e diversidade cultural brasileira num cenário com tíbia recuperação econômica, na atual situação, com o aprofundamento da crise e diante da recessão que se aproxima, sem precedentes na história do País, ela não poderá ser vista como a única carta na manga para a recuperação das atividades culturais. Soma-se a isso a percepção de que o governo atual não tem nenhum projeto para a área, nenhuma política, a não ser a evidente habilidade de gerar crises simultâneas.

As pessoas e instituições estão se reinventando, por necessidade e iniciativa própria, desenvolvendo atividades que dependem cada vez mais das plataformas digitais. As próprias atividades na Universidade (aulas e reuniões, sobretudo) estão sendo feitas em formatos não presenciais. Mas há uma gama enorme de outras atividades – aulas em ateliês, exposições, encontros e pesquisas nos acervos físicos, além do contato in loco com o patrimônio material e imaterial – que teve de ser suspensa, não se sabe por quanto tempo ainda. Blistène acredita que “o espaço do museu terá que ser mais do que nunca uma plataforma de intercâmbio e educação”.

Julgo ser interessante pensar nessa direção, investindo em novas formas de comunicação que permitam às instituições, notadamente as detentoras de acervos, sejam as públicas, sejam as particulares, institutos e fundações, aproximarem-se cada vez mais de propostas educacionais e interdisciplinares com conexões nacionais e internacionais.

A reconstrução de tudo que perdemos, por desventura ou desgoverno, passa pela construção de um ambiente melhor do que o que presenciamos até agora para as nossas crianças e jovens.

A universidade pública brasileira, junto a órgãos como o Icom e outros, poderia ajudar no momento pós-pandemia a criar um observatório sobre as dinâmicas e práticas culturais, mapeando o que se perdeu, o que foi reinventado e se manteve, o que se transformou. Os dados obtidos pelas pesquisas desse observatório seriam úteis para se traçar iniciativas de amparo e apoio às instituições, aos coletivos e indivíduos relacionados direta e indiretamente com o ambiente cultural, facilitando a criação ou a aproximação de redes integradas interessadas em parcerias para a sustentação de nosso sistema cultural.

A presença e apoio do Estado são muito importantes para se atender não somente às necessidades das pessoas, consideradas individualmente em seu bem-estar e segurança, mas também para preservar e estimular aquilo que produzimos como comunidade e que nos torna parte dela. Porém, somente com a ajuda de todos poderemos superar num tempo não demasiado distante os efeitos danosos desta crise que é sanitária, econômica, cultural e social.

Luiz Armando Bagolin é docente e pesquisador do IEB/USP e ex-diretor da Biblioteca Mário de Andrade

Publicado no Jornal da USP

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