O que mantém o neoliberalismo brasileiro

Nessa crise profunda, aumentou a necessidade de desvelar, compreender e combater esse fenômeno da persistência do neoliberalismo com características brasileiras

Manifestações cada vez mais constantes cobram liberalismo de Bolsonaro - Ilustração: Elvaso Mediovac

A crise sanitária, econômica e social, no contexto da pandemia da Covid-19, tem provocado fissuras na política neoliberal no mundo. O neoliberalismo tem sido nos últimos quarenta anos a doutrina política e ideológica adaptada à etapa do capitalismo em que se combinam financeirização e globalização. As decisões de política econômica são influenciadas por um quadro mundial polarizado, cada vez mais, pela ascensão econômica, produtiva e tecnológica da Ásia, sobretudo da China como a nova superpotência do século XXI, em contraste com a estagnação europeia e o declínio relativo da hegemonia dos Estados Unidos.

Mas no Brasil o neoliberalismo parece inabalável em seus dogmas, apesar da gravidade da crise atual. O que explica essa persistência neoliberal tipicamente brasileira? O objetivo aqui é discutir rapidamente alguns elementos da resposta a essa questão no cenário da crise mundial, com menção a algumas medidas adotadas em alguns países.

Em meio à crise, o ministro Paulo Guedes, economistas, financistas e jornalistas não se cansam de semear terrorismo fiscal e propagandear futuras reformas neoliberais. Alardeiam que se o governo gastar, a inflação volta, ignorando o colapso econômico e as ameaças deflacionárias. Dizem que não há dinheiro para os gastos, desconsiderando as possibilidades de emissão monetária na crise.  Tocam o terror, alardeando que a dívida pública vai explodir e, por isso, o país vai quebrar. No início da pandemia, a equipe econômica do governo comparecia à televisão para, com desfaçatez, dizer que a única saída era reformas, reformas e reformas.

É verdade que o ultraliberalismo do governo foi obrigado, pela imposição do Congresso, pela pressão dos fatos da crise e pelo isolamento político de Bolsonaro, a aceitar algumas flexões. Aceitou algumas medidas de alívio temporário para trabalhadores, estados e municípios e empresas. Mas continuam subestimando o prolongamento e profundidade da crise. Guedes diz que tudo voltará a ser como era antes, já, já. Por exemplo, promete privatizações de grandes estatais nesses próximos meses.

Hoje, nessa crise profunda, aumentou a necessidade de desvelar, compreender e combater esse fenômeno da persistência do neoliberalismo com características brasileiras. Esse não é um fenômeno de histerese ou inércia, é permanência com exacerbação, é aprofundamento em espiral, entropia, sobre a economia brasileira. Diante dos patentes fracassos de suas promessas nos últimos anos, como a geração de emprego com as reformas trabalhistas e previdenciária, o neoliberalismo brasileiro, em suas diversas formas, dobra a aposta.

O neoliberalismo brasileiro, assim como em outros países, aparece sob diversas formas. No Brasil, o traço comum a todas as suas variantes combina três faces interligadas, a saber: (i) horror à ação econômica autônoma e desenvolvimentista do Estado; (ii) compulsão irrefreável à liquidação de direitos sociais e trabalhistas; (iii) subordinação vexaminosa aos interesses imperialistas, especialmente aos Estados Unidos.

Como lembra Luiz Gonzaga Belluzzo, o governo Fernando Henrique Cardoso, em seus dois mandatos, foi a peça decisiva para implantação do tipo brasileiro de neoliberalismo. Podemos lembrar que a contribuição específica de FHC é evidenciada pela liberalização comercial e financeira, privatizações, políticas de fortalecimento do poder dos bancos, esvaziamento das políticas públicas e cerceamento da política econômica com o tripé macroeconômico. O banqueiro e economista Pérsio Arida é um representante da forma tucana do neoliberalismo brasileiro. Neste momento de crise devastadora, Arida propõe novas rodadas de reformas da previdência e administrativa, grandes privatizações e mais abertura comercial.  Armínio Fraga, tucano glorificado na mídia, começou a falar em desigualdades sociais, embora, ao mesmo tempo, insistisse na preservação da política econômica neoliberal, que é uma das fontes dessas mesmas desigualdades, hipocritamente lembradas.

O neoliberalismo brasileiro não dá sinais de esmorecimento. Não entrega os pontos, como se diz. Enquanto isso, internacionalmente, o neoliberalismo como doutrina ideológica e política para orientação da economia e da sociedade depara-se com dois movimentos adversos. O primeiro decorre da ascensão do nacionalismo de direita em oposição ao chamado globalismo neoliberal, como aparece na onda neofascista de Donald Trump, Victor Órban na Hungria, Mateo Salvini na Itália. O segundo movimento decorre das flexões em política econômica no contexto da atual crise global, com o reconhecimento de amplas, inclusive não convencionais, medidas fiscais e monetárias contracíclicas.

Diferentemente dos últimos 10 anos de austeridade fiscal, na Europa, falam agora em momento hamiltoniano, em alusão a Alexander Hamilton, primeiro secretário do Tesouro dos EUA, que transformou as dívidas das 13 colônias depois da guerra de independência, em títulos de dívida federal. Agora, a Alemanha, em momento hamiltoniano, faz um giro de 180 graus em seu granítico conservadorismo fiscal e aceita o endividamento por títulos da União Europeia. É um começo de compartilhamento de responsabilidades fiscais entre os Estados europeus.

A Indonésia, do lado dos assim chamados mercados emergentes, aparece através do seu banco central com o primeiro caso, neste momento, de aplicação do Quantitative Easing (QE, flexibilização quantitativa), caracterizando o financiamento monetário da dívida pública. Até agora afirmava-se que essa forma não convencional de política monetária estava simplesmente vedada aos países sem moedas conversíveis e sem proteção de suas contas externas. Nesse caso, de fato, um dos riscos prováveis é a fuga de capitais e crise cambial.  Alguns chegavam a falar que esse era um privilégio só cabível aos Estados Unidos com o dólar como a moeda de reserva internacional. A esse respeito, é preciso lembrar que não foram os EUA os primeiros a usar o QE, nesse caso na crise de 2008. Na verdade, essa inovação surgiu pelas mãos do Banco Central do Japão em 1997 em face da chamada crise asiática.

No debate internacional, que vem desde antes da própria crise atual, destacam-se três pontos: 1. desemprego e desigualdades sociais; 2. meio-ambiente, onde há a proposta de Green New Deal; e 3. ciência e tecnologia, abordando diversos problemas como a disputa tecnológica entre EUA e China, bem como as novas condições da produção e da sociedade com digitalização, inteligência artificial e processos virtuais pela internet. E sobre esses três pontos o neoliberalismo brasileiro diz o quê? São três áreas em negligência ou destruição no Brasil. Isto é uma prova e uma das definições de que o neoliberalismo, com características brasileiras, é um movimento de sabotagem do projeto nacional de desenvolvimento.

A forma bolsonarista de neoliberalismo distingue-se pela sua combinação com o neofascismo e satisfeita condição subalterna do Brasil perante os Estados Unidos. Essa é uma particularidade dessa principal forma brasileira do neoliberalismo neste momento. No passado, na experiência internacional do século XX, o fascismo tradicional caracterizava-se pela forte intervenção do Estado na economia com uma orientação nacionalista de extrema-direita. Mas hoje no caso brasileiro temos o neofascismo bolosonarista que combina a violência política reacionária com a submissão dos interesses nacionais, inclusive econômicos, ao imperialismo dos EUA. A agressão à democracia é o ponto de unidade entre Bolsonaro, Trump, Órban etc. O bolsonarismo foi a maneira política extremista de preservação do neoliberalismo no Brasil, à qual recorreu a burguesia cosmopolista brasileira.

Parece haver um ciclo vicioso do neoliberalismo brasileiro em que (i) os limites da dinâmica econômica no Brasil (padrão de crecimento medíocre, estagnação e recessão) levam às (ii) políticas de austeridade fiscal e reformas neoliberais sobre o Estado, o trabalho e as relações internacionais,  e daí colhe-se o agravamento dos limites daquela dinâmica econômica, voltando a novas rodadas de austeridade e reformas, e assim por diante.  Uma coisa leva à outra, ininterruptamente. As respostas pioram os problemas, cada vez mais. É essa a lógica férrea do neoliberalismo brasileiro. O atraso relativo da economia brasileira não é um obstáculo às vantagens da burguesia brasileira cosmopolita, sobretudo sua fração financeira e bancária. Ao contrário, esse atraso material produtivo do país serve para a subordinação e aliança com o imperialismo.

Quais são as razões desse neoliberalismo particular, as razões desse ciclo vicioso do neoliberalismo no Brasil? A razão profunda parece ser uma visão liberal sobre o capitalismo em associação ao poder da finança. É isso que faz o neoliberalismo funcionar como um moto-contínuo. Para quebrar e interromper sua marcha destrutiva, a resposta depende de viragens na luta política, mobilização social e alternativa de rumos para o país.

O grande economista marxista Michal Kalecki explicou que a longa vida da chamada lei de Say (“a oferta gera sua própria procura’, e daí equilíbrio e autorregulação do mercado, com impossibilidade de superprodução e crise) se devia a dois fatores. Primeiro, era um dogma que servia aos interesses da permanência do capitalismo. E, em segundo lugar, a tal lei parecia decorrer da experiência cotidiana de cada indivíduo. Por exemplo, se um indivíduo ou uma família, isoladamente, não gasta todo seu fluxo de renda, então a sua poupança pessoal cresce. Mas se todos na sociedade cortam gastos, a economia recua, a renda social diminuirá e por conseguinte a poupança também declinará. Keynes chamou isso de paradoxo da parcimônia.

A explicação de Kalecki serve para entender a persistência do neoliberalismo brasileiro. De certa forma, esse neoliberalismo, por aqui, é uma forma bruta de sobrevivência ou renascimento da lei de Say, que já tinha sido ridicularizada, dado seu irrealismo patente, por Karl Marx.

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