“A única herança que vou deixar para vocês é o diploma universitário”

A frase é de Florestan Fernandes, que sempre prezou os estudos e incentivou os filhos a seguirem o mesmo caminho.

Ele sempre trabalhou muito, dava aulas e escrevia artigos e livros sem parar, a fim de complementar a renda para conseguir pagar pelos estudos dos filhos. Ele não deixou os filhos estudarem em colégio público porque acreditava que seria muito errado tirar a vaga de uma criança que não tinha condições financeiras”, afirma o filho do sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), o jornalista Florestan Fernandes Júnior. Casado desde 1944 com Myriam Rodrigues Fernandes, Florestan Fernandes teve seis filhos: Heloisa, Noêmia, Beatriz, Silvia, Miriam Lúcia e Florestan Júnior. Estudou até o terceiro ano do primeiro grau porque teve que trabalhar muito cedo,  e só conseguiu retomar os estudos mais tarde. Queria se graduar em Química, mas, por ser um curso de período quase integral e com materiais muito dispendiosos, acabou optando por Ciências Sociais.

Sua mãe, Maria Fernandes, o criou sozinho, e ele não chegou a conhecer o pai, fato que, segundo Florestan Júnior, marcou a vida de Florestan. “Minha avó era uma camponesa portuguesa, que veio para o Brasil no início do século passado, com 13 anos de idade, fugindo da fome. Aqui, desceram no porto de Santos e foram para Bragança trabalhar em uma fazenda de café. Segundo minha avó contou, ela se apaixonou por um jovem de família italiana, que também trabalhava na fazenda, mas seu pai já havia prometido sua mão para um amigo, filho de português. Sem coragem para fugir com o namorado italiano, ela se casou com o português. Com a chegada da gripe espanhola, ficou viúva, e não quis voltar para a casa dos pais, vindo para São Paulo”, conta. “Ela foi trabalhar na casa de uma família, e só no final da vida confessou para minha mãe que, nessa casa, teve um affair com o irmão do namorado italiano. Grávida e envergonhada, fugiu, e foi só também no final da vida que, questionada sobre o pai de Florestan, enfim falou seu nome, Galileu. Minha mãe descobriu o telefone e endereço, anotou e entregou para o meu pai, mas ele disse que não tinha interesse em saber. Mas guardou o papelzinho na carteira. Ninguém sabe se procurou pelo pai, mas quando ele morreu lá estava o papel na sua carteira”, relembra Florestan Júnior.

Florestan Fernandes com sua mãe,
a portuguesa Maria Fernandes, em 1934

Quando Florestan nasceu, a mãe trabalhava na casa de Hermínia Bresser de Lima, que se tornou madrinha de Florestan. O nome Florestan tem origem mais remota num personagem da ópera Fidelio, de Beethoven. “Claro que minha avó deu esse nome não porque conhecesse a obra, mas porque nessa família o motorista era alemão e se chamava Florestan, por causa do personagem de Fidelio. Como esse motorista ajudou muito a minha avó, ela quis fazer uma homenagem para ele”, explica Florestan Júnior. “Meu pai ainda teve uma irmã, Tereza, de outro relacionamento da minha avó, mas ela faleceu muito cedo, aos 4 anos de idade, de câncer. Minha avó tinha se separado e a filha do casal havia ficado com o pai, o que o deixou muito mal na época; ele tinha então uns 6 anos”, comenta, dizendo ainda que, anos mais tarde, para Florestan era uma situação como a relatada no livro A Escolha de Sofia, de William Styron: sua mãe teve que escolher entre ele e a irmã, já que não tinha condições de criar os dois.

A vida em família

Florestan Fernandes tentou reproduzir uma família da maneira mais tradicional, como conta Florestan Júnior. “Ele sentava na ponta da mesa, todos os filhos ao redor e minha mãe no meio. No horário do almoço e do jantar, todos tinham que estar juntos à mesa. De manhã, era ele quem fazia o café, e do jeito que cada um gostava”, lembra. A mãe cuidava das tarefas da casa e o pai, do sustento da família. Todo ano, as férias eram sempre na praia: no Rio de Janeiro ou no litoral sul de São Paulo, Itanhaém ou Praia Grande. “Ficávamos 20, 30 dias na praia, mas sempre nos horários apropriados para o sol, ou seja, íamos bem cedo e voltávamos entre 10 e 10h30, e depois íamos de novo no final da tarde, por volta das 16 horas. Nesse meio tempo, ele trabalhava.”

Florestan Fernandes com a família – Foto: Arquivo pessoal

“A infância passamos em uma casa na Alameda Jaú, quase esquina com a Alameda Joaquim Eugênio de Lima. Mas comecei a crescer e, como era o único menino na família, uma psicóloga amiga do meu pai aconselhou que mudássemos para um bairro que tivesse mais meninos. Mudamos então para uma casa na rua Nebraska, no Brooklin, próximo à casa do general Leônidas Cardoso, pai de Fernando Henrique Cardoso”, relata Florestan Júnior. “Eu tinha a mesma idade do filho do Fernando Henrique, estudávamos juntos e brincávamos na rua.” Além disso, o pai gostava de jogar futebol com ele e, como estudava o folclore brasileiro, cantava muitas canções para os filhos. “Outra brincadeira que ele gostava de fazer com a gente, quando estava no carro e parava no farol, era ler de trás para frente uma palavra e os filhos tinham que descobrir de onde ele tinha lido, e isso era muito divertido”, lembra Florestan Júnior, que até hoje consegue dizer seu nome completo de trás para frente. Mas Florestan era muito severo em relação à educação e, como não tinha tempo nem muita paciência, sempre que um filho pedia sua ajuda para um trabalho escolar “ele fazia uma pilhazinha de livros e dizia que aquilo resolveria, mesmo que o prazo de entrega fosse pequeno”.

Seu lugar de trabalho era o escritório, mas as provas e trabalhos ele corrigia na sala de jantar – “com uma caneta de tinta roxa, e geralmente os comentários eram maiores do que os textos dos estudantes”, ressalta. “Ele trabalhava muito, estava sempre lendo, escrevendo ou dando aulas. Muitas vezes dormi com o som da máquina de escrever.” Ainda estava no segundo ano do curso de graduação em Ciências Sociais da então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP – onde ingressou em 1941 – quando começou a escrever artigos para os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. “Ele estreou na Folha no mesmo dia em que estreou no Estadão. Naquela época isso era permitido. Em um jornal escrevia sobre questões dos índios e dos negros e em outro escrevia artigos sobre literatura”, informa Florestan Júnior.

O exílio no Canadá

Em 1969, Florestan Fernandes foi aposentado compulsoriamente pela ditadura militar e ficou proibido de lecionar, dar palestras e falar em público. Aceitou então o convite para ser professor na Universidade de Toronto, no Canadá. A princípio levaria a mulher e seus dois filhos mais novos, já que a filha mais velha estava casada e as outras duas cursavam a faculdade, mas por questões familiares acabou indo sozinho. “Foi muito ruim para a família e para o meu pai também. Ele ficou muito solitário. É uma época em que escreve muitas cartas, muito fortes. Na correspondência com minha mãe, fala de sua solidão e da tristeza por estar longe do País”, relata Florestan Júnior (leia abaixo artigo da professora da USP Heloisa Fernandes Silveira, filha de Florestan Fernandes, que escreve sobre esse período de exílio no Canadá).

Invasão do campus da USP pelo Exército quatro dias após a edição do Ato Institucional Número 5 (AI-5), em 1969 – Foto: Acervo Agência Estado

Florestan escreve para todos os filhos e também para o crítico literário e professor da USP Antonio Candido, um amigo da vida toda. Com dois anos de diferença, Florestan era mais novo que Candido, e  se correspondiam por cartas. “No período do exílio, essa correspondência se intensifica. Por várias vezes meu pai disse que queria voltar, mas Antonio Candido o aconselhava a esperar mais um pouco”, afirma Florestan Júnior. Nesses três anos e meio em que esteve no Canadá, Florestan se encontrou ocasionalmente duas vezes com Candido. Um desses encontros causou muita comoção: “Meu pai fez um voo de Toronto para os Estados Unidos para dar uma palestra e quando estava desembarcando viu pelo vidro Antonio Candido e a professora Gilda (de Mello e Souza, esposa de Candido) embarcando. Eles tentaram se falar, mas o vidro blindado não permitia que um ouvisse o outro, e foram andando juntos até que não pudessem mais se ver”, relata Florestan Júnior.

A amizade com Antonio Candido

Florestan Fernandes já lia os artigos de Antonio Candido no Estadão quando ainda cursava Ciências Sociais na USP, e passou a enviar cartas para ele. “Eram cartas enormes, discutindo, polemizando”, comenta Florestan Júnior. Eles marcaram então um encontro no intervalo das aulas, segundo o próprio Candido contou para Florestan Júnior: “Seu pai estava lá, encostado na parede, lendo A Vida de Buda”. Entre risos, Florestan Júnior reconhece: “Meu pai lia muito, tudo o que caía na mão dele ele estava lendo”. Daí em diante, a amizade entre os dois só foi crescendo.

Com Antonio Candido, na 1ª Jornada de Ciências Sociais, em Marília (SP), em 1986 – Foto: Revista Fapesp

“Quando se encontravam, eles se beijavam no rosto, o que era incomum para época, os anos 60.” E Florestan Júnior relembra um fato que mostra como era grande essa amizade: “Em 1964, quando houve uma invasão ao prédio da Faculdade de Filosofia pelo Exército, meu pai escreveu uma carta muita dura, e a entregou para a imprensa. Carta essa que foi publicada nas primeiras páginas dos jornais, e que o Exército ordenou que fosse retirada em até 48 horas ou Florestan seria preso. Ele não retirou e ficou três dias detido no quartel. Quando ele saiu, recebeu uma homenagem-surpresa no prédio da Filosofia, com todos os professores e alunos. Candido se aproximou dele e o beijou no rosto. Um repórter perguntou se os dois eram parentes. Candido respondeu: “Se eu fosse o senhor, ficaria preocupado, porque só faz essa pergunta quem não tem um amigo para beijar”.

Foi também Antonio Candido quem abriu as portas da Faculdade de Filosofia para Florestan, acredita Florestan Júnior. “Nos primeiros anos, meu pai se sentia marginalizado por não ter o mesmo status social que muitos dos alunos da USP. Ele só se tornou conhecido na faculdade por seu talento e por ser o melhor aluno da classe”. E continua: “Foi Antonio Candido quem puxou meu pai para dentro do grupo da Universidade, ele colocou meu pai no Estadão e levou meu pai para conhecer Mário de Andrade”. Aqui Florestan Júnior abre parênteses para dizer que há pouco tempo ficou sabendo – “Acho que nem meu pai soube” – que, no início dos anos 20, Mário de Andrade usou em alguns textos o pseudônimo de Florestan.

Essa amizade ganhou os palcos. O diretor teatral Oswaldo Mendes fez uma pesquisa sobre a relação entre Florestan e Candido a partir de correspondências, palestras, entrevistas e textos. O resultado é uma peça – intitulada Florestan e Antonio Candido, a História de Uma Amizade – que reproduz um encontro atemporal entre Florestan e Antonio Candido. A ideia era estrear a peça neste mês no Teatro da Universidade Católica (Tuca), mas, por causa da pandemia de covid-19, teve que ser adiada. Porém, está sendo preparada uma leitura dramática, dirigida por Eduardo Tolentino (primo de Antonio Candido), que será exibida no próximo dia 22, data em que Florestan completaria 100 anos, seguida de um debate. A apresentação acontece às 20 horas, no Youtube, em um pool que integra o UOL, o Sesc-SP, a Casa do Saber e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Florestan Júnior cita uma frase de Tolentino sobre a peça: “Este é um Brasil que não existe mais, uma humanidade que a gente perdeu”. 

Uma relação entre pai e filho

A correspondência também é uma questão muito forte para Florestan Júnior. Nos anos em que Florestan Fernandes viveu no exterior, a única maneira de se relacionarem era através de cartas. “É uma forma de lembrança e de registro”, afirma. Florestan Júnior lembra que um de seus primeiros textos, A Burguesia com Pressa, foi publicado no Opinião – jornal que, durante o regime militar, formava com o Pasquim e Movimento um conjunto de tabloides progressistas e de esquerda. “Meu pai estava em Toronto, e uma vez por semana ia até uma banca que vendia publicações do Brasil e comprava jornais e revistas. Em carta, ele diz que, como o dia estava bonito, decidiu sentar em uma praça e, como sempre costumava ler primeiro os jornais de oposição ao regime militar, começou pelo Opinião: ‘Aí eu abro e vejo seu texto. Comecei a chorar porque tinha a impressão que você estava ali do meu lado’.”

Florestan Fernandes e Florestan Júnior: a troca de cartas durante o exílio era a única forma de se sentirem próximos – Foto: Arquivo pessoal

Outra coisa que Florestan Fernandes sempre dizia ao filho é que tinha se arrependido muito de ter dado o mesmo nome a ele, mas, como sua esposa tinha insistido, ele acabou concordando. “Ele sabia que era um peso muito grande para mim. Na escola, se eu ia bem era porque era filho do Florestan, se ia mal, eu ouvia: ‘Imagina, como o filho do Florestan não vai bem?’. Além disso, eu não tinha uma personalidade, era sempre o filho do Florestan”, lembra. Mas tudo isso mudou quando Florestan Júnior ingressou na TV Globo, época em que trabalhou no SPTVJornal Nacional e Jornal da Globo e ganhou popularidade. “Um dia meu pai entrou no banco, a caixa olhou o cheque e perguntou: ‘O senhor é pai do repórter?’. Isso foi muito bom para mim e para ele, porque delimitou as áreas de cada um, além de nos ter aproximado muito”, garante Florestan Júnior.

A volta para o Brasil

Em 1972, Florestan Fernandes voltou ao Brasil. “Ele estava muito deprimido, dizia que estava em uma ‘gaiola de ouro’. Ele queria muito voltar a dar aulas, mas estava proibido. Viajava para dar palestras no Chile, Argentina, até que, em 1977, foi contratado para dar aulas na pós-graduação da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Dom Paulo (Evaristo Arns, cardeal de São Paulo na época) me falou que os militares fizeram uma pressão absurda para que ele voltasse atrás, mas ele não voltou. E isso fez um bem enorme ao meu pai”, diz Florestan Júnior.

No plenário da Câmara dos Deputados,
durante a Assembleia Nacional Constituinte, nos anos 80 – Foto: Reprodução

Outro momento marcante na vida de Florestan Fernandes foi sua entrada na política. “Era época das Diretas Já, e o Suplicy e Zé Dirceu queriam muito que meu pai se filiasse ao PT (Partido dos Trabalhadores) para ser constituinte. Eles queriam alguém da Universidade, e sempre que me encontravam diziam que meu pai tinha que participar. Convidaram meu pai para ser deputado, dizendo que ele teria um papel importante na área da educação. “Ao voltar de um encontro com eles, meu pai me disse: ‘Olha filho, eu esperei minha vida inteira por um partido de esquerda que não surgiu e eu acho que não vou ter tempo de vida para ver surgir’”. Mas aceita o cargo porque, como o próprio Florestan Fernandes explicou: “Eu acho que é muito importante para mim, como sociólogo, como cientista político, ver o Brasil de dentro do Congresso, principalmente no momento de uma Constituinte”. Pelo PT, foi deputado federal por duas vezes entre os anos de 1987 e 1994.

“A família, minha mãe e algumas irmãs ficaram muito preocupadas por ele ingressar na política. Ele estava com problemas de saúde, e achavam que isso poderia piorar a situação, mas aconteceu exatamente o contrário. Quando ele saiu candidato, os jovens começaram a fazer campanha para ele, e meu pai começou a viajar para falar nas universidades, em Santos, Ribeirão Preto, Marília. Ele estava adorando aquilo tudo.” Essa foi uma forma muito bonita de se despedir de sua carreira, acredita Florestan Júnior.

“Na última noite em que estive com meu pai, na véspera do transplante de fígado, havia um recado da minha mãe na secretária eletrônica, avisando que estava indo para o hospital para o transplante. Fui direto para o hospital e cheguei na hora em que ele estava indo para o quarto. Ele ficou muito feliz quando me viu. Minha mãe se despediu e eu fiquei com ele até amanhecer o dia, quando foi levado para a sala cirúrgica. Foi também uma despedida nossa. Trocamos algumas conversas da vida, e de manhã, antes de ele ser levado para a cirurgia, liguei para minha mãe perguntando se ela ainda queria falar com meu pai, mas ela disse que eles já haviam se despedido pelo olhar.” Florestan Fernandes morreu no dia 10 de agosto de 1995, vítima de problemas do fígado, depois de um transplante mal-sucedido.

Fonte: Jornal da USP

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