Vacine-se contra tudo

Saber porque se vacinar é uma questão central na atualidade, principalmente devido ao movimento antivacinas (anti-vax) que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como um dos dez maiores riscos à saúde global.

Charge ilustra Revolta da Vacina no início do século XX no Rio de Janeiro.
Momtchilo Russo – Foto: Arquivo pessoal

Por que se vacinar?

Esta é uma questão central na atualidade, principalmente devido ao movimento antivacinas (anti-vax) que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como um dos dez maiores riscos à saúde global. Esse movimento se baseou em estudo que associava o desenvolvimento de autismo em crianças vacinadas, publicado em conceituado periódico científico (Lancet), mas os dados apresentados eram fraudulentos e o artigo foi retratado. Mesmo assim, no entanto, o movimento antivacinas persistiu.

O primeiro argumento a favor da vacinação leva em consideração que o Homo sapiens deixou de viver num mundo “natural”, contribuindo sobremaneira para isso o crescimento exponencial e descontrolado da população humana em relação às outras espécies animais. No caso da atual pandemia (covid-19), fica clara a contribuição da globalização e dos meios de transporte na disseminação da doença no planeta. Em outras espécies que também vivem em bandos, as infecções ficam restritas à região do seu habitat e a seleção natural atua há milênios nessas espécies, preservando uns e atingindo outros.

Em qualquer infecção há variáveis como carga infecciosa e padrão genético, tanto do hospedeiro como do agente infeccioso, que poupam alguns de sucumbir às infecções. Porém, deixar a seleção natural operar na espécie humana é retroceder alguns séculos no tempo, negar os benefícios evidentes da medicina moderna e ignorar as mortes que poderiam ser evitadas.

Um breve histórico das vacinas

A história das vacinas é fascinante, porém vou me ater apenas aos fatos mais marcantes. No fim do século XVIII, o médico inglês Edward Jenner resolveu vacinar o filho do seu jardineiro com um material obtido de lesões (pústulas – pox no inglês) semelhantes à varíola de peles de ordenhadoras de vacas que haviam contraído essa infecção no manuseio com as vacas (causada pelo vírus cowpox). Já se sabia na época que ordenhadoras de vacas eram protegidas contra a varíola (causada pelo vírus smallpox). Para provar que o menino estaria protegido após a vacinação, Jenner inoculou o menino com material obtido de pessoas com varíola, um experimento que não seria permitido hoje em dia considerando o risco e a bioética. O fato é que o filho do jardineiro não desenvolveu varíola e Jenner publicou o seu trabalho sobre esse procedimento, que denominou variolae vaccinae (a “vacina da varíola”, sendo que vaccinae deriva do latim vacca), em 1798.

A astúcia de Jenner foi juntar dois fatos conhecidos: 1) as ordenhadoras de vacas eram protegidas da varíola; e 2) a variolização, um procedimento praticado na China e em outros países, que consistia em escarificar a pele de indivíduos sadios com líquido obtido de crostas de varíola de paciente infectado, como uma tentativa de prevenir a varíola, o que nem sempre dava certo. Ou seja, juntando esses dois fatos, Jenner conseguiu vacinar o filho do seu jardineiro com mais segurança que o método usado na variolização.

O problema maior da vacina de Jenner na época era como obter esse material em quantidade para vacinar mais pessoas. Uma saída foi fazer a passagem do material vacinal de uma pessoa para outra e, evidentemente, isso acarretou a disseminação de outras infecções, como erisipela, sífilis etc. Esse problema da produção da vacina e seu armazenamento só começou a ser resolvido dois séculos depois. A mortalidade da varíola na sua forma grave (varíola major) chegava a níveis elevados (acima de 30%) e estima-se que ao longo do século XX tenha causado 500 milhões de mortes, dez vezes mais que a gripe espanhola (A history of immunology).

Um pouco mais de história

Somente no fim do século XIX é que se estabeleceu a relação entre doenças e microrganismos, devido aos trabalhos de Louis Pasteur e Robert Koch, dois cientistas fundadores da microbiologia e de duas escolas (uma na França e outra na Alemanha) geradoras de vacinas eficazes contra infecções, que foram fundamentais para o surgimento de um novo ramo do conhecimento, a imunologia.

A primeira experiência de Pasteur com as vacinas relacionava-se com a cólera aviária, que causa grandes prejuízos aos criadores de galinhas. A vacina foi descoberta por acaso, pois, ao usar uma cultura de Pasteurella multocida, bactéria causadora da cólera, que havia sido esquecida na bancada por um assistente que saíra de férias, foi verificado que a injeção dessa cultura não causava cólera nas galinhas. Mais ainda, se esses animais fossem inoculados com uma cultura nova que causava cólera também não desenvolviam a doença.

Pasteur resolveu homenagear Jenner e cunhou o nome de vacina para qualquer agente usado para imunizar contra infecções.

Em 1885, Pasteur aplicou a vacina antirrábica, usando o mesmo princípio de envelhecimento do agente infeccioso, numa criança que foi mordida por um cão com raiva. A criança sobreviveu e o trabalho de Pasteur teve grande repercussão social, dando início à aplicação de conhecimentos da microbiologia/imunologia na medicina.

A vacina antirrábica havia sido desenvolvida anteriormente, por Emile Roux, em cães, usando amostras de tecido nervoso envelhecido contendo o vírus da raiva. Robert Koch, por sua vez, descobriu o bacilo da tuberculose, obtendo sucesso em cultivá-lo em laboratório e, em seguida, conseguindo reproduzir a doença em animais com o produto dessa cultura.

Esses três eventos fazem parte do postulado de Koch e, junto com Pasteur, estabelecem a teoria microbiana (germes) das doenças.

Koch não conseguiu desenvolver uma vacina para a tuberculose, mas seus discípulos e colegas Behring, Ehrlich e Kitasato desenvolveram uma nova maneira de produzir vacinas para a difteria e o tétano. Na realidade, essas vacinas se basearam no trabalho pioneiro de Shibasaburo Kitasato, que mostrou ser possível proteger um animal contra o tétano transferindo soro de animal que havia sido infectado anteriormente. Por exemplo, quando o soro de coelhos infectados com Clostridium tetani era transferido para camundongos, estes se tornavam protegidos contra a bactéria ou a toxina tetânica.

Essa prática recebeu o nome de soroterapia e o procedimento foi denominado de imunização passiva, pois era passivamente transferido, sendo aplicado em soldados feridos na guerra para evitar o desenvolvimento de tétano, o que era comum na época. Posteriormente, foi demonstrado que a mistura do soro (anticorpos) com a bactéria neutralizava o efeito da bactéria e que os animais tornavam-se imunes a ela. Esse processo dependia de uma resposta ativa do animal ao estímulo, sendo a base imunológica de todas as vacinas.

Paralelamente aos trabalhos do grupo alemão, Émile Roux e Alexandre Yersin, do grupo francês, caracterizaram a toxina da difteria e utilizaram cavalos para obter soro antitoxina em grande quantidade e puderam comprovar a eficácia da soroterapia na redução de casos fatais de difteria na população.

Chama a atenção que tanto a patologia da difteria como a do tétano se deve a toxinas e que os soros (parte fluida do sangue denominada de humoral e que contém anticorpos) previnem totalmente essas doenças. Isso revela que a imunidade humoral – que hoje sabemos ser mediada por anticorpos – é fundamental para controlar essas infecções. Porém, o mesmo princípio não foi possível ser aplicado na tuberculose, o que na época gerou grande frustração. Hoje sabemos que a imunidade à tuberculose é dependente de imunidade celular, um mecanismo imunológico que depende de células e que não é transferido por anticorpos.

Vacinas no século XX e XXI

No século XX a produção, armazenamento e vacinação em massa tornaram-se uma realidade. O exemplo da primeira vacina contra a varíola é icônico, pois mostra o início do conceito de vacinas, as dificuldades de se produzir, estocar e distribuir a vacina e o efeito da vacinação em massa. No Brasil a vacinação em massa erradicou a varíola em 1973, a poliomielite em 1989 e controlou o sarampo, tétano e outra infecções, fatos que comprovam a eficácia do Programa Nacional de Vacinação, que infelizmente sofre abalos atualmente.

Em relação à vacinação contra o tétano e a difteria, o francês Gaston Ramon, do Instituto Pasteur, e o inglês Alexander Thomas Glenny merecem destaque. Ramon, um veterinário, observou que cavalos que produziam um soro antitoxina mais potente apresentavam no local da injeção uma reação inflamatória maior do que aqueles com menor inflamação. Nesse sentido, ele tentou induzir uma inflamação mais intensa no local com substâncias inflamatórias que ele denominou de adjuvantes (do latim adjuvare, ajudar) que são atualmente utilizados em várias formulações vacinais e em imunoterapias.

Glenny, por sua vez, mostrou que a resposta imune ao toxoide (toxina inativada) diftérico era mais intensa quando a imunização (vacina) era feita com toxoide precipitado em sal de alumínio referido como alum. Alum é o nome genérico de adjuvantes que usam alumínio em sua composição e que são utilizados atualmente em várias vacinas, como a tríplice, hepatite A e B, papilomavírus, estreptococos, meningite, entre outras.

Vacinas para tudo?

É possível vacinar-se contra tudo? A resposta é não. Não se tem vacinas contra vários tipos de infecções, como malária, leishmaniose, sífilis, toxoplasmose, HIV, hepatite C e outras. No entanto, é possível prever para quais tipos de infecções será mais difícil produzir vacinas protetoras e eficazes. Isso porque as vacinas eficazes disponíveis são geralmente contra infecções que causam uma doença aguda que, quando resolvida de algum modo, o indivíduo nunca mais desenvolve a mesma doença, como no caso de sarampo, poliomielite, hepatite A. Por outro lado, doenças que se tornam crônicas, nas quais o indivíduo nunca se livra do agente infeccioso, como HIV, hepatite C ou doenças que acometem o indivíduo mais de uma vez, como malária, dificilmente terão vacinas. No caso de viroses, a taxa de mutação do vírus influencia a eficiência da vacina. Assim sendo, quanto mais mutações sofre um determinado vírus, como acontece na hepatite C e na Aids, mais difícil será desenvolver uma vacina.

O exemplo do vírus da influenza (gripe), um dos principais vírus respiratórios, é ilustrativo. As pessoas se infectam com um tipo de vírus específico e não se infectam mais com o mesmo vírus. No entanto, o vírus da influenza pode sofrer mutação extensa na sua estrutura molecular (antígenos), fenômeno denominado “deriva antigênica” (do inglês antigenic drift) ou sofrer pequenas mutações que acarretam pequena mudança na composição antigênica do vírus (antigenic shift).

Essas mudanças tornam o vírus muito ou um pouco diferente do original e o sistema imune deixa de reconhecê-lo. Daí a necessidade de vacinar a população a cada ano, pois sempre surgem vírus mutantes da influenza para os quais não existe memória imunológica. Esse também é o motivo que explica por que as pessoas podem ter gripe (influenza) várias vezes. A pandemia da gripe espanhola em 1918, que causou a morte de aproximadamente 50 milhões de pessoas, foi causada por uma deriva antigênica (mudança significativa) do vírus da influenza.

Como uma vacina funciona?

De modo geral uma vacina simula uma infecção causando o mínimo de dano possível, obedecendo ao princípio médico de não causar dano maior que o da infecção original (primum non nocere) e, para tanto, se usa agentes infecciosos atenuados, inativados ou fragmentados (diferentes moléculas que compõem o vírus).

No caso da vacina da influenza, são utilizados dois tipos de vacinas: uma inativada (vírus morto) e outra atenuada (vírus vivo). A vacina inativada usa o vírus fixado em formol ou partes ou subunidades do vírus incorporadas em adjuvantes ou partículas semelhantes ao vírus. Já a atenuada usa virions, que são vírus que infectam mas não são capazes de se replicar.

Algumas vacinas, como a da febre amarela, só foram eficazes quando se usou vírus vivo atenuado, o que levou muito tempo e foi difícil de se conseguir. Max Theiler, trabalhando na Rockefeller, desenvolveu finalmente a vacina (17D) contra a febre amarela em 1937. Várias vacinas além da febre amarela usam vírus atenuados, como a vacina oral da poliomielite e as vacinas contra sarampo, caxumba, rubéola, entre outras.

Vacinas para Covid-19

Os vírus da família Coronaviridae infectam humanos e a maioria deles causa uma infecção respiratória discreta. Porém, alguns vírus recentes desta família causaram uma Síndrome Respiratória Aguda Severa (Sars) como é o caso do Sars-CoV-1, Mers-CoV (causador da Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e do Sars-CoV-2, este último responsável pela pandemia atual denominada de covid-19.

Uma característica marcante da covid-19 é que o vírus tem uma capacidade excepcional de transmissão, atingindo praticamente todo o planeta. A boa notícia é que a maioria das pessoas se recupera da infecção, indicando que construir uma vacina é factível. Realmente há em curso várias formulações vacinais em teste, sendo algumas em fase final.

No Brasil, pelo menos duas vacinas estão em fase final: a vacina chinesa (Sinovac Biotech), que utiliza vírus inativado incorporado em adjuvante (alum), e a vacina do Reino Unido, da Universidade de Oxford, que utiliza um adenovírus de chimpanzé que não consegue se multiplicar em humanos e que foi modificado para expressar a proteína S (spike-espícula), responsável pela entrada do vírus nas células.

No futuro é possível que se utilize uma combinação de vacinas e diferentes vias de administração, intramuscular e intranasal, em forma de spray, para potencializar o seu efeito protetor.

Vacine-se

Como mencionado, o programa de vacinação em massa no Brasil erradicou a varíola em 1973 e a poliomielite em 1989. É desnecessário dizer que a vacinação reduz a mortalidade e evita internações hospitalares que são onerosas ao País como um todo. Mesmo assim, a cobertura vacinal no Brasil vem caindo, como a de poliomielite, e doenças que já havíamos eliminado começam a aparecer, como o surto de sarampo em 2018. Para piorar, o movimento antivacinas ganha terreno em vários países, inclusive no Brasil.

Não é possível entender um movimento desse tipo à luz dos benefícios das vacinas na prevenção de infecções na primeira infância e provavelmente nas novas pandemias que temos e ainda teremos pela frente.

A covid-19 ilustra bem esse problema pois se trata de uma zoonose cujo vírus Sars CoV-2, que é endêmico em morcegos, para infectar os humanos teve que se modificar (mutação) e se adaptar aos humanos, e não o contrário. Ou seja, são os microrganismos/vírus que se adaptam aos hospedeiros, pois são eles que se multiplicam rapidamente e sofrem mutações permanentemente que permitem pular de espécies ou infectar várias vezes a mesma espécie. A adaptação dos animais é mais difícil porque depende de seleção natural, o que demora para se estabelecer uma vez que necessita ser passada de pais para filhos.

A vacinação é um direito, mas também uma obrigação. Vacinar-se não é uma opção individual, pois não se vacinar, além de afetar o indivíduo, afeta a sociedade como um todo. Além do mais, afirmar que só se vacina quem quer é induzir o cidadão a cometer um crime previsto no artigo 268 do Código Penal, referido como “infringir determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa”. Por se tratar de uma pandemia, a vacinação ganha contornos internacionais, ficando impossível viver ou se movimentar neste planeta sem se vacinar.

Na realidade, os vírus coevoluem com outras espécies e muitas vezes contribuem para a adaptação das espécies na natureza, como no caso da formação da placenta, e outras vezes infectam por acaso, como no caso da covid-19. No entanto, a nossa sociedade, da forma como está estruturada, não pode prescindir das vacinas, que cada vez mais utilizam conhecimentos científicos de ponta no seu aprimoramento.

Momtchilo Russo, professor titular do Departamento de Imunologia do ICB-USP e do Departamento de Moléstias Infecciosas da FMUSP

Publicado no Jornal da USP

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