O mito da independência do Banco Central

O contribuinte, que de fato paga por todas as operações do Banco Central, sejam elas positivas ou negativas, não terá mais influência sobre a instituição – nem mesmo indiretamente, pelos seus representantes eleitos democraticamente.

Edifício-sede do Banco Central em Brasília - Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A ideologia do liberalismo é constituída de grandes mitos. O primeiro deles é a própria nomenclatura, pois a palavra “liberalismo” presente nesta corrente se refere à liberdade para os grandes donos da riqueza e do dinheiro, ou seja, a corrente ideológica em questão prega essencialmente o liberalismo econômico, muito distante do liberalismo social e jurídico. E mesmo em termos econômicos, os ditos “liberais” não advogam em favor da liberdade econômica para os trabalhadores, micro e pequenos empresários ou para grande maioria da população. Basta lembrar que este mesmo liberalismo defendeu por longos séculos a escravidão (racismo) colonial como forma de manutenção das liberdades dos proprietários da terra (saqueada violentamente pelo colonizador) e da renda (exploração do trabalho escravo).

O segundo grande mito refere-se à autorregulação ou autonomização do mercado em relação às outras esferas da vida, como no campo social, jurídico, cultural e político. Nos termos do intérprete do capitalismo, Karl Polanyi, desincrustar o “mercado” da sociedade não pode ser bem-sucedido, pois as principais mercadorias desse suposto mercado autonomizado não são produzidas e nem pertencem a ele. São mercadorias fictícias (terra, trabalho e moeda).

(a) A terra é um bem dado pela natureza sendo insumo primário para produção de alimentos que garantem a vida do ser humano no planeta e, portanto, não produzida ou pertencente ao mercado em sua essência;

(b) Os seres humanos não são meros objetos cujos preços possam ser exclusivamente determinados pelo mercado, visto que sua existência e compreensão precedem e ultrapassam qualquer noção mercadológica da vida;

(c) E, por último, a moeda é bem público historicamente criada e gerenciada pelo Estado, sendo este o grande garantidor da legitimidade e valor do dinheiro na sociedade. Embora objeto de enriquecimento privado, a criação, destruição, gestão, volume, fluxo e regramento da moeda são de responsabilidade do Estado através da figura do Banco Central.

Isto quer dizer que objetivos da política monetária não pertencem única e exclusivamente ao mercado, é algo muito mais além, uma vez que os objetivos econômicos e sociais dos trabalhadores e da grande massa populacional devem ser também satisfeitos.

O Banco Central deve controlar a influência da moeda na inflação com mesmo afinco para outras instâncias econômicas, deve garantir condições monetárias favoráveis a um nível crédito às micro e pequenas empresas, financiamento tecnológico em setores estratégicos nacionais, redução do spread bancário para o varejo, câmbio competitivo para exportações de todos os produtos nacionais e importação de insumos para geração de emprego e renda dentro do país.

Assim, não existe qualquer embasamento teórico (sustentável) e real para a “independência” do Banco Central, haja vista que seus objetivos contemplam uma gama muito maior de metas do que simples controle da inflação.

Desse modo, o atual Projeto de Lei Complementar (PLP) 19/2019 aprovado pelo Senado Federal, no dia 3 de novembro de 2020, busca bloquear as demandas sociais da gestão estatal do bem público “moeda”.

A partir da criação de mandatos fixos para presidente e concessão, jamais antes vista, de poder de criação do regimento interno próprio do Banco Central do Brasil (Bacen) para Política Monetária e consequentemente, a Política Econômica do país, o PLP 19/2019 elimina qualquer influência direta das demandas da sociedade dentro da instituição.

Em outras palavras, o contribuinte que paga de fato por todas as operações do Bacen, sejam elas positivas ou negativas, não terá mais influência sobre a instituição nem mesmo indiretamente pelos seus representantes eleitos democraticamente. As decisões sobre a gestão da moeda na sociedade estarão nas mãos de meia dúzia de tecnocratas e totalmente descoladas das reais necessidades da população brasileira.

Com isto, chegando ao terceiro grande mito do liberalismo: de que as decisões do mercado são racionais e desprovidas de viés político. Nada mais irreal e falacioso. Na história econômica dos mercados, as únicas variáveis constantes são a incerteza e os erros de previsão dos economistas. Da crise do subprime à pandemia, o que mais temos são erros de previsão econômica, os economistas não conseguiram acertar fidedignamente nem mesmo um período trimestral, são revisões atrás de revisões dos valores estimados.

E a suposta neutralidade do viés político mostra que o próprio processo de institucionalização das regras de mercado é altamente viciado, as regras são feitas com muito lobby por meio de muito dinheiro privado do mercado, remunerando fortemente os tomadores de decisão, seja no Congresso Nacional (financiamento de campanha legal) ou em organizações não governamentais de controle social (patrocínio privado para eventos).

O verdadeiro mercado, aquele constituído de pele e osso por cerca 238 bilionários ou 0,0001% da população brasileira, produz esse caráter simbólico imagético para instituições ou processos para se apropriar do Estado e declarar a independência das suas vontades em relação aos outros 99,9998% da população brasileira.

Referência

Polanyi, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro, Campus, 1980.

Fonte: Brasil Debate

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