O país sob a minha pele, por Ananda Marques

A minha história e a do Brasil estão entrelaçadas, eu escrevo a minha até o ponto em que não posso mais escrever a dele.

Oito de março de 2021, o dia em que não posso marchar com outras mulheres. O dia em que trabalho ao invés de grevar, porque não é possível parar. No último ano ainda havia chão e eu fiz o que faço há tempos, me reuni com o feminismo nas ruas da cidade que habito. Agora já não posso. Agora eu sinto o peso do mundo me cansar as pernas e braços, me doer a cabeça e me impedir de respirar. 

As mulheres, como era de se esperar, foram as mais afetadas pela pandemia. Há muito somos as mais pobres dentre os mais pobres (junto das crianças) e diante de uma crise sanitária e econômica o mundo governado por homens faria o que sempre fez conosco: explorar nossa força de trabalho, usar nossos corpos como máquinas, para manutenção da vida pública e privada. Nada novo sob o sol. 

Dentre os demitidos da pandemia, fomos a maioria. Na linha de frente contra a Covid-19 também somos maioria. Em casa, o que parecia impossível aconteceu, a sobrecarga aumentou. A violência doméstica também, assim como a mortalidade materna. Todos tiveram um ano difícil, mas para as mulheres, foi pior, e para mulheres negras e pobres, pior ainda. 

São tempos dolorosos, meu país é uma terra estranha que nos sentencia à morte. Um genocida está no poder e a cada dia atenta contra a vida, nada parece conter seus absurdos. Nunca achei que viveria este presente, porque cresci numa época em que havia futuro. Hoje assisto o Brasil em queda livre num poço sem fundo, sairemos do outro lado do planeta? Provavelmente queimaremos no magma da Terra, injuriada com as estirpes que povoaram este continente e construíram uma nação colonial e racista. Os homens não estão preocupados em resolver qualquer coisa porque eles não têm medo de estupro.

Este não é o país que quero para mim, para nós mulheres. Eu gostaria de viver aonde mulheres não fossem mortas por existir (estou falando também de mulheres trans), aonde a maternidade fosse uma escolha e não destino e pudéssemos parir em segurança. Gostaria de viver num país no qual o governo trabalhasse pela vida, garantindo renda básica para o cumprimento do isolamento social, e vacinas! 

Gostaria muito de viver num país diferente, mas este foi o país que herdei. Uma terra que até tentou escrever outra história, mas que se perdeu na própria bandeira e tem sido conduzida pelo inferno por uma classe média raivosa e ressentida. 

Apesar do governo que planeja nos matar ainda vivo. E como pessoa viva que estou, dedico minha vida essa à luta. Porque mulher, porque daqui. Eu nasci entre dois rios e já vi o sertão branco se cobrir de verde. Eu vi pouco, mas vi muito. O Brasil ser pentacampeão, o Brasil referência de combate à pobreza, o Brasil de uma mulher presidenta. 

A minha história e a do Brasil estão entrelaçadas, eu escrevo a minha até o ponto em que não posso mais escrever a dele. É o limite. Mas, o Brasil tem limitado as linhas da minha própria história. Então, neste oito de março de 2021 eu me comprometo em romper as amarras do Brasil sobre meu corpo e minha existência de mulher. Quando não se tem mais nada a perder é que a gente entende que não há caminho a não ser seguir adiante, de cabeça e punho erguidos. Juntas. 

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