Governo Bolsonaro diminui recursos e nega a quilombolas direito ao território
As instituições responsáveis pela garantia do território às comunidades tradicionais tiveram reduções drásticas nos orçamentos e apresentam os piores números da série história nos processos de certificação e titulação
Publicado 16/04/2021 22:37 | Editado 16/04/2021 22:48
As comunidades quilombolas estão sendo privadas do direto constitucional à propriedade de seus territórios durante o governo Bolsonaro. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) determina que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. No entanto, os processos na Fundação Cultural Palmares (FCP) e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) seguem parados e os recursos são menores a cada ano.
O primeiro passo para uma comunidade quilombola acessar a política de regularização de territórios é abrir um processo de certificação na Fundação Cultural Palmares, que é responsável por formalizar o reconhecimento das comunidades quilombolas e assessorá-las para garantir o acesso a direitos.
Em 2020, o número de certificados emitidos chegou aos menores níveis desde 2004, com o total de 29 certificações, cerca de 58% a menos que em 2019. A taxa de processos que tiveram sua resolução no ano acompanhou a queda e marcou o pior índice desde 2004. No último ano do governo Temer, em 2018, foram atendidos 45% dos processos em andamento no período. No ano seguinte, já sob a gestão Bolsonaro, a taxa de resolutividade chegou à 25% e, em 2020, apenas 11%.
Após a certificação, o processo segue para o Incra, responsável pela titulação do território. Os passos do processo envolvem elaboração de relatórios, publicação no Diário Oficial da União, desapropriações, reconhecimento entre outros. O número de processos de titulação tramitados passou de 45 em 2018 para quatro em 2020, o menor desde o início da série histórica em 2005.
Os números são do relatório “Direito à terra quilombola em risco – Reconhecimento de territórios tem baixa histórica no governo Bolsonaro”, elaborado por consulta em sites oficiais e por meio de requerimento via Lei de Acesso à Informação pelo projeto Achados e Perdidos. A iniciativa é realizada pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e pela Transparência Brasil em parceria com a agência de dados Fiquem Sabendo.
A estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é que existem mais de 5 mil comunidades quilombolas no país. São 3.477 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares, mas apenas 162 delas detêm a titularidade de suas terras, o equivalente a quase 5%.
O número total de processos de titulação aberto no Incra é próximo a 1,8 mil. O coordenador-geral de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra, Erico Goulart, explicou à Agência de Notícias da Câmaras que a demora nos processos se deve principalmente à falta de servidores públicos e de recursos financeiros.
Segundo Erico Goulart, não há recursos para desocupar imóveis. “Não conseguimos avançar porque temos muitos imóveis pendentes de indenização”, comentou. “Os expropriados nunca concordam com o valor de avaliação dos imóveis e recorrem à Justiça. Essa insegurança aumenta o conflito social.”
Manifestações públicas
Jair Bolsonaro não escondia o preconceito contra os quilombolas e o desejo de retirar os recursos destinados para demarcação de terras antes da presidência. Em 2017, durante palestra no Clube Hebraica, Bolsonaro prometeu que não demarcaria nem um centímetro a mais de terras indígenas ou quilombolas se chegasse ao Palácio do Planalto. Durante o discurso, ele afirmou que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”, referindo-se ao quilombo em Eldorado Paulista (SP). “Não fazem nada! Eu acho que nem para procriadores servem mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gastado (sic) com eles”, completou Bolsonaro. A fala lhe rendeu um processo de racismo, do qual foi absolvido em 2018 e o processo foi encerrado em junho de 2019.
Em 2018, Bolsonaro defendeu em uma transmissão ao vivo pelas redes sociais o arrendamento dos territórios para exploração da mineração, o que é proibido pela pelo Artigo 231 da Constituição Federal.
Quando chegou ao Palácio do Planalto em 2019, Bolsonaro promoveu reformas ministeriais que enfraqueceram a capacidade de atuação da Fundação Palmares e do Incra. A FCP, que era ligada ao Ministério da Cultura (MinC), foi transferida para o Ministério da Cidadania após o MinC ser reduzido a uma secretaria da pasta de Turismo.
Para presidir a instituição, Bolsonaro escolheu em novembro de 2019 o jornalista Sérgio Camargo, que teve a nomeação suspensa sob o fundamento de que o ato contrariava frontalmente os motivos determinantes para a criação da Fundação Palmares. Bolsonaro insistiu na nomeação e publicou em suas redes sociais o vídeo em que Camargo afirma o “Dia da Consciência Negra tem que acabar”, pois é uma data com o propósito de “propagar vitimismo e ressentimento racial”. Sérgio Camargo assumiu o cargo definitivamente em fevereiro de 2020.
O presidente da Fundação Palmares já declarou que a escravidão foi “benéfica para os descendentes” e teve um áudio vazado no qual se referiu ao movimento negro como “escória maldita” e se referiu ao líder quilombola Zumbi dos Palmares de “filho da puta que escravizava pretos”. A Fundação Cultural Palmares é órgão federal responsável pela promoção da cultura afro-brasileira.
O Incra, por sua vez, foi transferido da Casa Civil para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que está sob o comando de Tereza Cristina, ex-deputada que comandou a Frente Parlamentar da Agropecuária. Os movimentos ligados ao agronegócio são tradicionalmente contrários à titulação de terras para povos tradicionais, especialmente em áreas de interesse econômico.
Menos recursos
Colocando em prática o que havia anunciado, o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) 2021 enviado pelo governo Bolsonaro ao Congresso prevê corte de mais de 90% na verba para ações de reconhecimento e indenização de territórios quilombolas, concessão de crédito às famílias assentadas e aquisição de terras. Os valores foram checados pela Folha de S.Paulo junto ao Incra. O PLOA ainda está em debate no Legislativo.
A Fundação Palmares não escapa aos cortes e o governo enxuga mais o orçamento a cada ano. A FCP teve orçamento de R$25,9 milhões em 2019, o menor da década. No ano seguinte, o valor caiu para R$19,4 milhões. O PLOA de 2021 prevê o total de R$9,6 milhões de orçamento para o órgão, um corte de 50,5% em relação ao ano anterior. Os valores foram ajustados de acordo com a inflação e constam no relatório do projeto Achados e Perdidos.
Com informações de Achados e Perdidos e Agência de Notícias da Câmara