Deputados veem omissão do governo em depoimento de Mayra Pinheiro na CPI

Parlamentares constatam mentiras, descaso e negacionismo no Ministério da Saúde durante a pandemia em depoimento de secretária da pasta

À mesa na CPI da Covid, secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro | Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

Deputados federais avaliam que o depoimento da secretária de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, revela falta de responsabilidade do governo frente à maior crise sanitária das últimas décadas e preocupa por posições contrárias às orientações de entidades científicas. A secretária informou à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que não averiguou a escassez de oxigênio em visita à Manaus no início do ano, reforçou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento de Covid-19 e culpou as gestões estaduais e municipais pelo alto número de mortes causadas pela doença.

Assim como os ex-ministros Eduardo Pazuello e Ernesto Araújo e o ex-secretário de comunicação Fábio Wajngarten, Mayra exime o governo federal pelo número elevado de mortes, muitas vezes contrariando as próprias palavras reproduzidas em vídeos e áudios durante a sessão da CPI da Covid. Segundo a médica, o presidente da República, Jair Bolsonaro, não teve participação efetiva em nenhuma medida de combate à doença.

Os parlamentares denunciaram a omissão do ministério da Saúde e do governo federal no combate à pandemia.

O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) questionou a atuação das autoridades durante a crise sanitária em Manaus em janeiro deste ano. “As pessoas morrendo sem oxigênio e nada é responsabilidade do Ministério da Saúde!”, escreveu em seu perfil no Twitter.

O deputado também apontou para a omissão do presidente Jair Bolsonaro, que se reuniu apenas uma vez com a equipe do ministério da Saúde para tratar do combate à pandemia e que nunca demonstrou apoio ao distanciamento necessário para evitar a transmissão do vírus.

A deputada Alice Portugal (PCdoB-BA) também considerou “inadmissível” a alegação de Mayra sobre a atuação positiva do governo Bolsonaro na pandemia.

O líder do PCdoB na Câmara, Renildo Calheiros, questionou a afirmação de Mayra Pinheiro sobre o sucesso do país no combate à pandemia. “450 (mil) mortos quer dizer que estamos bem?”, perguntou o deputado.

O deputado Daniel Almeida (PCdoB-BA) classificou o depoimento da secretaria do ministério da Saúde como uma “zombaria”.

A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apontou também para mentiras no depoimento de Mayra Pinheiro na CPI da Covid. Durante a argumentação contra às orientações da OMS (Organização Mundial de Saúde), a secretária afirmou que a entidade havia errado no passado quando recomendou que mulheres vivendo com HIV não deixassem de amamentar os seus filhos, mesmo com o risco de transmissão. A deputada federal apontou o equívoco.

Não só em relação à amamentação de mães com HIV Mayra passou informações equivocadas. Segundo a equipe de checagem de informação contratada pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), a depoente mentiu em 11 ocasiões.

Depoimento

Durante o depoimento, Mayra Pinheiro foi pressionada para se posicionar objetivamente em relação ao uso do medicamento cloroquina no combate à Covid-19, ao desenvolvimento do aplicativo TrateCov e à atuação do ministério da Saúde na crise de oxigênio em Manaus. Na maior parte das vezes, Pinheiro relativizou as perguntas e argumentou que “na covid, tudo é incerto”.

Imunidade de rebanho

Logo no início da sessão, a médica Mayra Pinheiro negou ser favorável à imunidade de rebanho e foi desmentida por vídeo transmitido na própria CPI a pedido do relator. Na gravação, a médica defende que parcelas da população deveriam permanecer expostas ao vírus para o avanço natural da doença sem grandes prejuízos à saúde da população.

Diante das gravações, Mayra Pinheiro ainda tentou negar suas posições: “Eu preciso que isso seja contextualizado. Eu acho que o efeito rebanho não pode ser usado indistintamente para as populações, senador, porque não é possível que a gente vá prever quanto eu tenho que expor da população para que eu atinja esse benefício”, afirmou.

Cloroquina e outros medicamentos

Ao negar a teoria de imunidade de rebanho, Mayra Pinheiro reforçou a importância de medicamentos que ainda não possuem eficácia comprovada. Segundo a médica, em momentos de crise sanitária como a atual, é possível se apoiar em evidências como os relatos clínicos apontados por médicos em municípios brasileiros e em outros países que possuem protocolo com remédios off label.

“Eu trouxe para vocês todos os trabalhos publicados até hoje. A gente não está falando em nível máximo de evidência porque não vamos obter isso nem para os medicamentos antivirais”, justificou a secretaria.

O tema tem sido amplamente debatido na comissão, que foi apelidada nos primeiros dias de CPI da Cloroquina. No entanto, a comunidade científica já abandonou a cloroquina como um possível remédio para o tratamento da doença.

Há mais de 2.500 artigos científicos devidamente revisados e publicados sobre cloroquina no âmbito da Covid-19 no mundo, mas os resultados não apontam para avanços significativos no combate à doença. Os Estados Unidos – um centro no desenvolvimento de pesquisas sobre novos medicamentos –, por exemplo, registraram 58 pesquisas sobre cloroquina em 2020 e nenhuma em 2021.

Para defender o “tratamento precoce” com uso de medicamentos sem comprovação, Pinheiro citou que todos em sua casa tomaram remédios sem comprovação científica como forma de prevenção e combate à doença no estágio inicial. Seu pai, apesar de medicado com cloroquina, encontra-se internado com Covid-19.

O senador Otto Alencar (PSD-BA) questionou a defesa de Mayra Pinheiro sobre a cloroquina e os estudos por ela defendidos. “Isso não é sério, não é honesto, não é direito. A medicina, Vossa Senhoria sabe, exige integralidade, verdade, consciência, pesquisa para se aplicar uma droga”. O senador ainda relembrou que o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reconheceu o risco à saúde do paciente no uso de cloroquina sem a devida observação às melhores práticas médicas.

Associada ao nome do remédio, Mayra Pinheiro questionou apenas a designação “capitã”, pois a médica não é vinculada às forças de segurança. A secretária não apresentou nenhuma objeção à associação de seu nome com o medicamento.

TrateCov

O aplicativo desenvolvido no ministério da Saúde que recomendava o uso de medicamentos sem eficácia para o “tratamento precoce” de Covid foi um dos motivos que levou Mayra Pinheiro à CPI. Ela e sua equipe foram apontadas pelo ex-ministro Pazuello como responsáveis pela elaboração da plataforma que recomendava dosagens de hidroxicloroquina indiscriminadamente, até para crianças.

Sobre o tema, Pinheiro confirmou a versão de Pazuello de roubo de dados e defendeu a utilização da “calculadora médica”. Segundo a secretária, o aplicativo deveria acelerar o diagnóstico da doença e indicar ao paciente o tratamento mais adequado. No entanto, independente dos sintomas registrados e das características dos pacientes, o aplicativo recomendava dosagens similares dos mesmos remédios.

Questionada sobre os parâmetros do aplicativo, Pinheiro afirmou que o projeto foi elaborado de acordo com a pesquisa internacional “AndroCov” e que a publicação do protótipo ‘roubado’ dos sistemas do ministério não interferia nos parâmetros do aplicativo, mas as simulações feitas foram inadequadas. Apesar do ato ilegal, a plataforma saiu do ar apenas para cumprir a lisura da investigação e não porque apresentava problemas, segundo a médica.

O pesquisador Estêvão Gamba, doutor em Ciências pela Unifesp, encontrou o artigo “AndroCov” em um portal eletrônico de artigos científicos e constatou que não houve nenhuma citação ao estudo na comunidade científica, que é um indicativo de que o estudo não possui relevância para embasar um protocolo de atendimento mesmo durante uma crise sanitária.

Crise em Manaus

O aplicativo foi desenvolvido inicialmente para atender à demanda por diagnósticos mais rápidos em Manaus, que agonizava sem leitos, testes e oxigênio. A secretária integrou uma missão no início do ano para avaliar os recursos disponíveis na capital amazonense antes do ápice da segunda onda de Covid-19. Acompanharam a gestora técnicos do ministério da Saúde e uma equipe de médicos voluntários.

A médica alega que encontrou falta de leitos, de medicamentos, de equipamentos de segurança, de testes para diagnosticar a doença e atribuiu aos governos estaduais e municipais a inação durante a crise. A depoente afirmou que não foi avisada da eminente falta de oxigênio.

O aviso sobre a escassez de oxigênio que levou centenas de amazonenses à óbito só chegou à Mayra Pinheiro quando já se encontrava em Brasília e teria alertado Eduardo Pazuello sobre o tema no dia 8 janeiro, o que contraria a versão do general da ativa. O ex-ministro da Saúde afirmou à CPI que soube da escassez de oxigênio apenas no dia 10 de janeiro.

Para o deputado Orlando Silva, Mayra e Pazuello foram “pegos na mentira” com as versões contraditórias sobre o fornecimento de oxigênio na capital amazonense.

Pinheiro ainda afirmou que não é competência do ministério da Saúde monitorar ou fornecer oxigênio e que não seria possível se antecipar à demanda por tubos de oxigênio porque “a covid-19 é uma doença grave de desfecho incerto.”

A secretaria confirmou à CPI que o ministério enviou ofício à Secretaria de Saúde de Manaus para estimular a gestão municipal a usar medicamentos contra a covid-19, entre eles, a cloroquina. No documento, ela classificou como “inadmissível” a não adoção da orientação pela capital amazonense.

Orlando Silva voltou a criticar a falta de responsabilidade do governo com a população e questiona a omissão do governo.

A deputada Jandira Feghali também ironizou a visita de membros do ministério da Saúde à Manaus dias antes do colapso do sistema de saúde sem o reconhecimento da iminente falta de oxigênio.

Orientações de entidades científicas

Defensora de um tratamento repudiado pela comunidade científica internacional, Mayra Pinheiro foi interrogada em diversos momentos pela insistência com medicamentos sem eficácia comprovada. Como resposta, a secretaria reforçou a posição de independência entre o ministério da Saúde e demais entidades científicas nacionais e internacionais que publicaram recomendações de combate à pandemia.

Como exemplo de entidades que se posicionaram contra o “tratamento precoce”, foram citadas a Organização Mundial de Saúde, Sociedade Brasileira de Pediatria, Anvisa, Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), FDA dos Estados Unidos (Food and Drug Administration) entre outras.

Apesar de concordar com o uso de máscaras e distanciamento social, a médica condenou o lockdown e defendeu com afinco a prescrição de cloroquina e outros medicamentos.

Orlando Silva classificou o posicionamento como “lamentável, mas esperado” e a deputada Professora Marcivânia (PCdoB-AP) questionou a autoridade da médica perante às outras entidades.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) abordou a relação do ministério da Saúde com as institutições de pesquisa no país e reproduziu um áudio da secretária acusando a Fundação Fiocruz, um centro de pesquisa e produção de vacina, de ser “refém de política de minorias”. O áudio de Mayra Pinheiro enviado para outro funcionário do ministério cita que constam no local adesivos do líder revolucionário Che Guevara, homenagens à Marielle Franco e um balão inflável em formato de um órgão de reprodução masculino.

Nas redes sociais, internautas afirmam que secretaria provavelmente se confundiu com a logo de comemoração de 120 anos da instituição.