O médico e o monstro nos tempos da pós-verdade

Nestes tempos sombrios, quantos de nós já não se espantou com amigos e parentes que, de repente, sem que soubéssemos por que, converteram-se em monstros da burrice, repetindo absurdos atrás de absurdos.

Certa vez, durante o segundo governo Dilma, em um grupo de e-mail formado por antigos amigos e conhecidos de Vila Valqueire (formoso bairro do subúrbio do Rio), um dos membros enviou um “alerta” contra o “chip do demônio”, que a Dilma, com o auxílio da ONU, iria implantar na pele das pessoas para melhor controlá-las.

Depois de, inutilmente apontar o absurdo do “alerta”, acompanhei o desenrolar da história, e percebi, estarrecido, que em um grupo de dezenas de pessoas, esse debate era levado a sério, e o máximo de “racionalidade” que consegui perceber foi o de um advogado (que quando menino tinha o apelido de “deixa-que-eu-chuto”) argumentando com toda a formalidade que implantar chips de controle sobre a pele seria “inconstitucional”…

Já mais recentemente, estava conversando por telefone com uma pessoa que havia acabado de conhecer e o interlocutor fazia observações argutas e instigantes sobre determinado tema do meu interesse até que surgiu o assunto das eleições estadunidenses, cuja apuração apontava para a vitória de Joe Biden. Para minha surpresa, o até então ponderado cidadão repetiu convicto toda a teoria trumpista da “conspiração comunista”, garantindo inclusive que Biden não assumiria a presidência pois a “fraude” restaria provada. Quando ele passou a falar que a pandemia era também fruto de uma conspiração comunista pensei comigo mesmo que eu iria conseguir a proeza de terminar de forma belicosa uma amizade que nem tinha começado. Por um acaso que só acontece muito raramente consegui me controlar e conduzir o rumo da prosa de forma adequada.

De qualquer maneira, veio de novo aquela sensação estranha, de que a verdade e os fatos estão ficando irrelevantes e de que um bom sujeito pode, a qualquer momento, revelar-se um fascista.

O jornalista William Shirer, conservador convicto, acompanhou in loco a conquista do poder pelos nazistas e relata, no livro Ascensão e Queda do III Reich (Volume 1):

Muitas vezes num lar ou escritório alemães, ou algumas vezes em conversações casuais com um estranho num restaurante, numa cervejaria, num café, eu deparei com as mais exóticas afirmativas de pessoas aparentemente educadas e inteligentes. Evidente que repetiam algum trecho absurdo ouvido pelo rádio ou lido nos jornais. Algumas vezes era tentado a dizer certas verdades, mas nessas oportunidades deparava-me com tal olhar de incredulidade, tão chocante silêncio, como se tivesse blasfemado contra o Todo-Poderoso, a tal ponto que compreendia a inutilidade de tentar tomar contato com um espírito que se pervertera e para quem os fatos da vida se haviam transformado naquilo que Hitler e Goebbels, com seu cínico desdém pela verdade, diziam ser”.

Não é, por óbvio, o caso de comparar o que acontecia na Alemanha de 1930 com o que acontece hoje no Brasil, mas que existem alguns pontos de contato existem e muita gente boa já os está apontando. Por exemplo: Enquanto na Alemanha nazista divulgava-se aos milhões um texto sabidamente falso chamado “Protocolos dos Sábios de Sião”, que atribuía aos judeus (criadores do bolchevismo, segundo Hitler) um plano secreto de dominação mundial, no Brasil do século XXI circulam nas redes, com alcance estratosférico, textos absurdos e cômicos como o “Decálogo de Lênin”.

O incrível é que um texto tosco como o “Decálogo”, perto do qual o livro “Protocolos do Sábio de Sião” é uma obra-prima da literatura, consegue convencer muitas pessoas de que o seu conteúdo é autêntico. E, mais incrível ainda, muitos dos que caem nestas mais do que evidentes patranhas são homens e mulheres que falam e se comportam normalmente, alguns até cordiais e aparentemente com algum grau de formação, mas que se transformam em monstros quando o assunto é política, lembrando o famoso livro “O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, de Robert Louis Stevenson (o livro ficou mais conhecido pelo filme com o título “O médico e o monstro”), sendo que, no caso atual, a “fórmula” que permite o surgimento de Mr. Hyde (que no livro era a personalidade demoníaca do pacato Dr. Jekyll) é a longa e contínua exposição a toda sorte de manipulação midiática de caráter reacionário.

A “tia (ou tio) do zap” (atenção: existem tios e tias do zap muito jovens) surgem precisamente quando o Mr. Hyde se apossa da personalidade e sufoca totalmente o que restava do bom Dr. Jekyll.

Nesta situação, chega-se a um ponto em que a imbecilidade se torna um vício irrefreável e não um acidente circunstancial, ao qual todos nós, ao longo da vida, podemos estar sujeitos.

Parafraseando William Shirer, muitas vezes somos tentados a deixar de lado, como ele deixou, quem se perverte e para quem os fatos da vida são aquilo que os membros da família miliciana, com seu cínico desdém pela verdade, dizem ser.

Temo, no entanto, que, ao contrário de William Shirer, não tenhamos opção senão enfrentar este debate, mesmo à custa da perda de amizades e grandes aborrecimentos.

Temos uma coisa a nosso favor. Divulgar teorias absurdas e reacionárias não passa, em geral, para as “tias (ou tios) do zap”, de um hobby e não, como se pensa erradamente, de uma profissão de fé. Pois uma verdadeira profissão de fé exigiria autenticidade, coisa que falta na imensa maioria dos tios e tias do zap, muitos dos quais se converteram há pouco ao reacionarismo e durante suas vidas tiveram trajetórias por vezes opostas aos valores que hoje dizem defender. Aliás, numerosos tios e tias do zap, no dia a dia continuam fazendo justamente o oposto do que pregam nas redes.

Ao buscar notícias para compartilhar, agem, por diletantismo, como um garimpeiro ao contrário: o que reluz não interessa, aproveitam apenas o sujo e o fétido. Assim, quanto mais absurda e inverossímil for a história, maior a chance de que ela circule com bastante sucesso em um meio que já está, de antemão, preparado a aceitar tudo que venha de determinada fonte.

O efeito de retroalimentação de um meio contaminado é que o faz com que a massa de tios e tias do zap deixem vir à tona o Mr. Hyde, o que torna mais fácil resgatar a sanidade destas pessoas através do combate dirigido prioritariamente, não contra elas, mas contra as fábricas de mentiras. É preciso desmoralizar estes espaços, reduzi-los a pó através de uma campanha implacável. Opção muito melhor do que um processo de desnazificação como na Alemanha, que custou milhões de vidas até poder ser iniciado.

Nem sempre o enfrentamento aberto é a melhor tática contra os tios e tias do zap possuídos pelo fascismo, pois isolá-los e estigmatizá-los irá fazer apenas com que procurem refúgio onde se sintam acolhidos, tornando-os mais impermeáveis à razão.

E tem mais uma coisa: vai que você está conversando com uma tia (ou tio) do zap, e depois de muita paciência, depois de tirar com grande trabalho todo o lixo do cérebro contaminado (“Ursal não existe”, “Foro de Davos não faz parte de uma conspiração comunista”), você consegue expulsar o Mr. Hyde daquele corpo enfermo e surge, diante dos seus olhos, a Juliana Paes! Falando de novo como uma pessoa normal e mais delirantemente bonita do que nunca. É sempre uma esperança.

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