Quanto vale a arte numa pandemia? Por Tereza Cândida A. Diniz

Tereza Cândida A. Diniz é pesquisadora da obra do xilografo do Cariri Stênio Diniz.

Por Tereza Cândida A. Diniz*

O Cariri cearense se constitui um importante espaço de produção, privilegiado por sua cultura, manifestações religiosas e pela variedade de expressões artísticas que se apresentam por meio de músicas, danças, literatura e imagens.

No que concerne à produção de imagens, a região possui um número considerável de xilógrafos em atividade, que sobrevivem exclusivamente da comercialização de xilogravuras, sendo uma das principais produtoras no Brasil no século XXI, juntamente com o estado do Pernambuco.

Durante a Pandemia da Covid 19, esses trabalhadores que, em sua maioria, sobreviviam pela comercialização de sua arte para turistas e romeiros, ficaram à mercê do auxílio emergencial do Governo Federal ou quando muito pelos escassos números de editais.

A Lei Aldir Blanc (Decreto 10.489/20), criada para socorrer os artistas imersos num estado de vulnerabilidade social, chegou tardiamente e como política de governo estruturada em regras burocráticas. As normas de flexibilização dos Fundos de uso emergencial caminham a passos lentos, mas é um fator relevante e imprescindível na atual conjuntura econômica.

Na atualidade, os profissionais que vivem exclusivamente do ofício estão em estado de precariedade, mesmo aqueles cujo título de Mestre da Cultura outorgado pelo Estado do Ceará lhes confere um custeio mensal, que não foi suficiente para manter as despesas básicas de uma família como aluguel, luz, água e comida.

Mas, qual a importância dessas imagens? O que apresentam essas xilogravuras e quais sobrevivências elas carregam?

Comumente, as xilogravuras do Cariri são apresentadas como representações do cotidiano da vida, da família, do trabalho, da religião, e essas, “quase” sempre associadas pela reprodução de figurações estereotipadas do Nordeste, o sol, a erosão, a seca, a fome, o sofrimento e a morte.

Digo “quase”, porque embora sejam recorrentes algumas dessas temáticas, as xilogravuras do Cariri são plurais, convergindo para quatro temas preponderantes: seca, religiosidade, política e realismo fantástico.

Um dos xilógrafos, de nome Stênio Diniz (1953-), criou uma terceira margem para trilhar. O artista, na década de 1970, não somente reproduziu essas imagens, como as transformou em instrumentos de transgressão frente à ordem política estabelecida no período da Ditadura Militar (1964-1985), burlando e escapando das redes de vigilância do sistema.

Em parceria com a artista plástica Mariza Viana (1951-2005), Stênio Diniz gravou um dos álbuns mais importantes da sua carreira, Retirada (1976), uma série de 13 xilogravuras inspiradas no cordel Retirada? do poeta Expedito Sebastião da Silva (1928-1997), ambos denunciavam o descaso político em relação à miséria da população.

O sofrimento e as injustiças sociais apresentados nas imagens de Retirada é quase engolfado pela genialidade dos dois artistas, como se a arte tivesse o poder de amenizar a dor nas imagens, tão somente pela arte, ou como diria Niezstche, “a arte existe para que a realidade não nos destrua”.

As imagens de Retirada estão impregnadas de memórias, mas também de sintomas sociais de uma dada temporalidade histórica, o que demonstra a importância dessa arte na atualidade e o papel social dos xilógrafos contra os governos ditatoriais e fascistas.

Embora pareça uma simples produção artesanal, Retirada possui uma complexidade que vai além da historicidade da imagem. As técnicas, a madeira, o papel e o desenho que compõem o processo de gravação são apenas a ponta do iceberg, ficando submersa uma amalgama de ideias, criatividade, imaginação, memórias, sobrevivências e o inconsciente. Este último escapa a qualquer explicação porque foge inclusive ao seu criador, isso porque existem elementos que tomam todo o plano de uma imagem, mas fogem à interpretação.

Qualquer que seja o tipo de produção artística, são trazidas marcas do seu tempo, como também vestígios de outros tempos. Nesse sentido, os estratos que compõem as xilogravuras são compostos pelas experiências vividas, marcas dessas memórias, de temporalidades que as atravessam, assim como das lutas, das falas e dos silenciamentos dos sujeitos que as produziram.

As imagens possuem vida póstuma que extrapola o tempo da sua fabricação quando se materializam. É possível localizar sua datação, denominar seu artista, mas é impossível buscar sua origem. A relevância dessa afirmação corrobora o pensamento do historiador da arte Aby Warburg (1866-1929), cujo interesse era compreender como as imagens vão se sedimentar nas culturas.

Warburg pensou as imagens numa constante repercussão infinita e possível, descartando a existência de uma origem, embora o percurso seja um elemento legítimo no processo de análise da imagem.

Nas xilogravuras, portanto, estão condensadas impressões do outrora e do agora. Nessa direção, cabe indagar: quanto vale a arte produzida numa pandemia?

Se as imagens instigarem a sociedade a refletir sobre a realidade, valem muito. Se na década de1970, foi possível denunciar ao mundo o abandono do povo, o que poderá fazer uma imagem numa sociedade cada vez mais globalizada?

Se viver é um ato de resistência, apoiar e comprar a produção desses xilógrafos é reafirmar o compromisso com a arte e com a sociedade na qual estamos inseridos. É resistir frente ao sucateamento da cultura e a toda forma de fascismo, ao que nossa geração será devedora.

* Doutoranda em História pela UFPE/PE