Demarcação de terras indígenas volta ao STF com debate do marco temporal
Está em discussão a tese do “marco temporal”, segundo a qual os indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam na data da promulgação da Constituição de 1988
Publicado 28/06/2021 16:22 | Editado 28/06/2021 16:30
O Supremo Tribunal Federal (STF) retomará, nesta quarta-feira (30), o julgamento de um dos casos mais importantes que chegaram à Corte neste primeiro semestre. Trata-se do debate sobre demarcações de terras indígenas no qual está em discussão a tese do “marco temporal”, segundo a qual os indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam na data da promulgação da Constituição de 1988.
O outro ponto em discussão é se o reconhecimento de uma área como território indígena depende da conclusão de processo administrativo de demarcação. O julgamento foi interrompido no dia 11 de junho, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu destaque. O relator, ministro Edson Fachin, já havia divulgado seu voto e foi contrário à demarcação do marco temporal.
Segundo ele, “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que (os indígenas) tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição) porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal”.
O caso rende discussões entre os defensores das populações indígenas. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) divulgou nota afirmando que o marco temporal “é uma interpretação defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras indígenas que restringe os direitos constitucionais dos povos indígenas”. Segundo a entidade, as populações só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse na data da promulgação da Constituição.
O processo trata de uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem indígenas Guarani e Kaingang.
Voto de Fachin
Em um extenso voto, de mais de 100 páginas, o ministro Fachin propôs a fixação da seguinte tese:
“Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sob os seguintes pressupostos:
a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena
a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;
a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.
o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;
o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência;
as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;
há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.”
Carta aberta
Na última quinta-feira (24), o Supremo Tribunal Federal recebeu uma carta aberta contra a tese do “marco temporal”, segundo a qual os indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam na data da promulgação da Constituição de 1988.
Trezentas e uma pessoas, dentre artistas, juristas, acadêmicos e membros da sociedade civil, assinam a carta. Ela foi entregue simbolicamente aos ministros da corte por lideranças indígenas do acampamento Levante Pela Terra, que reúne cerca de 850 indígenas de 48 povos de diversas regiões do país. A carta segue aberta até terça-feira (29/6) para novas assinaturas de pessoas e instituições.
“O tratamento que a Justiça Brasileira tem dispensado às comunidades indígenas, aplicando a chamada ‘tese do marco temporal’ para anular demarcações de terras, é sem dúvida um dos exemplos mais cristalinos de injustiça que se pode oferecer a alunos de um curso de teoria da justiça. Não há ângulo sob o qual se olhe e se encontre alguma sombra de justiça e legalidade”, diz a carta. “Este Supremo Tribunal tem em suas mãos a oportunidade de corrigir esse erro histórico e, finalmente, garantir a justiça que a Constituição determinou que se fizesse aos povos originários”.
Fonte: Conjur