As metas do duplo centenário e o papel do futebol para o “Sonho Chinês”

Nesta quinta feira, 1º de Julho, Xi Jinping exaltou os recentes avanços da China e reafirmou o norte das políticas públicas chinesas no “rejuvenescimento da nação”, plano no qual o futebol entra com grande protagonismo

Nesta quinta-feira 1º de julho de 2021, o Partido Comunista Chinês comemorou os seus 100 anos de existência. De uma agremiação fundada por 50 militantes na cidade de Xangai, o PCCh chega ao seu centenário contando com mais de 95 milhões de membros. Um partido que, ao longo de sua história, tem como algumas de suas principais marcas a capacidade de inovação, adaptação, reinvenção e resiliência. Apropriando-se do marxismo-leninismo, os Comunistas da China moldaram a teoria revolucionária marxista às suas circunstâncias e, principalmente, à conjuntura histórica e cultural do seu povo. Estabelecendo, assim, seu próprio processo dialético, construindo o socialismo com características chinesas, em que o marxismo não apenas é adaptado às necessidades e ao contexto chineses, mas se combina com outros elementos da milenar história da China, como o confucionismo.

Em um discurso de cerca de uma hora, na cerimônia de celebração do centenário realizada em Pequim na manhã desta quinta (no horário local), o Secretário-Geral do Partido e Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, anunciou que o Partido e toda a nação haviam alcançado a primeira das metas dos Centenários ao cumprir com a construção de uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos, enaltecendo o feito histórico de erradicação da pobreza no país, permitindo que se marche com firmeza rumo à segunda meta dos Centenários, a ser realizada quando a RPC completar 100 anos, em 2049: a concretização de uma sociedade socialista moderna, um país forte, próspero, democrático e culturalmente avançado. Que seja cumprindo, enfim, o “Sonho Chinês”, ao se alcançar o grande rejuvenescimento da nação chinesa. E, para isso, as autoridades do país contam também com o futebol, através do Plano de Desenvolvimento a Médio-Longo Prazo (2016-2049), publicado em 2016.

Mas, antes de irmos para o Plano do Futebol, é importante explicar o que é o “Sonho Chinês” de rejuvenescimento da nação, especialmente o que significa o termo “rejuvenescimento” no discurso político chinês. Foi o atual presidente Xi Jinping quem trouxe estas expressões para a linguagem oficial. Apontado como sucessor de Hu Jintao no cargo de Secretário-Geral do PCCh pelo 18º Congresso do Partido, a 15 de novembro de 2012, Xi falou pela primeira vez sobre o tema em seu discurso “Alcançar o rejuvenescimento é o sonho do povo chinês”, proferido em 29 de novembro, ao visitar a exposição “A rota para o rejuvenescimento”.

Em seu discurso inaugural no 12º Congresso Nacional do Povo, em 17 de março de 2013, já na condição de Presidente da República, Xi fala nove vezes sobre o “Sonho Chinês”, enfatizando que realizar o “Sonho Chinês” de grande rejuvenescimento da nação significa transformar a China em um país próspero e forte, alcançando a revitalização da nação chinesa e aumentando a qualidade de vida do povo chinês. No fim de abril, Xi menciona as metas do Duplo Centenário, do Partido, em 2021, e da República Popular, em 2049, ressaltando a importância dos Valores Socialistas Fundamentais (prosperidade, democracia, civilidade, harmonia, liberdade, equidade, justiça, estado de direito, patriotismo, dedicação, integridade e amizade) para o cumprimento do Sonho Chinês.

A concretização das metas do Duplo Centenário – uma sociedade moderadamente próspera, erradicação da pobreza (cumprida conforme prevista no Centenário do Partido Comunista) e uma sociedade socialista moderna, um país forte, próspero, democrático, harmonioso e culturalmente avançado (Centenário da RPC, 2049) – implica, portanto, na realização do “Sonho Chinês” de modernização e sucesso econômico, mas, mais ainda, a consumação da ascensão da China como protagonista e líder global, ou seja, uma China rejuvenescida, revigorada, recolocada em seu lugar central na história e geopolítica, como outrora foi o Reino do Meio.

Em seu discurso nesta quinta-feira, Xi mencionou 26 vezes a palavra rejuvenescimento (ou rejuvenescer, rejuvenescido). Porém, mais importante do que a quantidade, foi a assertividade. Xi afirmou que a nação chinesa alcançou uma transformação formidável, erguendo-se e crescendo prosperamente, tornando-se forte e assegurou: “o rejuvenescimento nacional da China já se tornou uma inevitabilidade histórica”. Este “Sonho Chinês”, como lembrou o líder comunista, encontra suas raízes na Guerra do Ópio de 1840, que gradualmente relegou o país à condição semifeudal e semicolonial, dividido e explorado por forças imperialistas Ocidentais.

Do “Século de humilhação” nasceu o Sonho de uma China rejuvenescida. E é desta longa experiência que os chineses retiram uma de suas principais características das suas relações internacionais: os cinco princípios de coexistência pacífica (respeito mútuo pela soberania e integridade territorial; igualdade e benefício recíproco; não-agressão mútua; não intervenção nos assuntos internos; coexistência pacífica). Como frisou Xi Jinping em seu discurso na cerimônia de comemoração do Centenário do PCCh, a China não intimida, ameaça, subjuga, nem oprime outras nações. Não por acaso, a Constituição da República Popular da China consagra tanto a busca pelo rejuvenescimento da nação chinesa, como a construção de uma comunidade internacional de futuro partilhado para toda a humanidade.

Futebol: mola propulsora do desenvolvimento da indústria esportiva

O Plano do Futebol chinês é um bom instrumento de análise para compreendermos como são formuladas, executadas e avaliadas as políticas públicas sob o socialismo com características chinesas. Olhando para este projeto percebemos, também, como funciona o que o professor Elias Jabbour define como “Nova Economia do Projetamento”, ao mesmo tempo em que é possível identificar de que forma o futebol se insere nesta conjuntura muito mais ampla que é a construção de uma sociedade socialista moderna, próspera, econômica e culturalmente avançada.

A China demonstra, através do seu sistema político e econômico, assente num Estado como indutor da destruição criativa e da inovação econômica, tecnológica e também social, que suas políticas públicas e/ou sua formulação de políticas são um processo aberto com um resultado incerto, impulsionado por interesses conflitantes, interações recorrentes e feedback contínuo (como Sebastian Heilmann explica). Além disso, como coloca Jabbour, há um “crescente papel do projeto enquanto expressão da razão sobre elementos mercantis/capitalistas”. É o Estado que se consolida como o grande gerador do encadeamento da economia.

No caso do futebol e desse plano específico não é diferente. Os chineses pretendem ter uma das maiores economias esportivas nacionais do mundo. Para isso, vêm implementando políticas públicas voltadas para o desenvolvimento de sua indústria esportiva. Tendo como objetivo o alavancar de toda a indústria esportiva, em 2014, o Conselho de Estado da China publicou as “Opiniões para a aceleração do desenvolvimento da indústria esportiva e promover o consumo do esporte”, considerado um marco para a decolagem da indústria esportiva chinesa.

No ano seguinte, foi publicado um documento preliminar, que serviu de base para o Plano do Futebol, lançado em 2016. O Plano é uma política pública sob tutela de um órgão do Conselho de Estado criado apenas para a sua execução, que reúne, entre outros, 11 ministérios, comissões de Conselho de Estado, órgãos dos governos locais e regionais e o Departamento de Propaganda do Partido Comunista. Este documento, em sua seção “Orientação ideológica”, identifica o futebol como “uma indústria emergente e verde” e que o seu desenvolvimento representa um novo setor de crescimento econômico, para além de representar os Valores Socialistas Fundamentais chineses.

Quando o Plano do Futebol foi publicado, esperava-se que a indústria esportiva chinesa gerasse US$ 460 bilhões até 2021, valor que foi alcançado já ao fim de 2019, segundo o National Bureau of Statistics. Espera-se que em 2025 este setor fature US$ 813 bilhões. A título comparativo, de acordo com publicação da Plunkett Research, a indústria esportiva mundial movimentou cerca de US$ 1,3 trilhão em 2017, US$ 519,9 bilhões apenas nos Estados Unidos. Portanto, como se vê, o futebol é uma espécie de mola propulsora para a indústria esportiva, contribuindo, assim, para que a economia chinesa siga crescendo a largos passos e atinja o objetivo do Duplo Centenário em 2049.

Futebol, diplomacia do esporte e soft power

No discurso desta quinta-feira, Xi Jinping fez seis referências a palavras/expressões-chaves das relações internacionais chinesas: futuro partilhado, prosperidade comum e cooperação. A construção de uma comunidade internacional de futuro partilhado, como já foi dito, encontra-se consagrado até mesmo na Constituição chinesa, bem como na Constituição do Partido Comunista Chinês (neste último documento também encontramos referências à cooperação e prosperidade comum).

O Plano se apresenta, também, como instrumento de promoção de intercâmbio cultural e diplomático com outras nações. O documento explicitamente demonstra a percepção das autoridades chinesas da importância do futebol como instrumento de soft power. Por exemplo, discute a necessidade da intensificação do intercâmbio internacional, afirmando que as atividades futebolísticas são “parte fundamental da diplomacia do esporte”. Chama, ainda, atenção para a necessidade do fortalecimento da “cooperação internacional e trocas de talento na indústria futebolística”, acrescentando que os canais de intercâmbio internacionais do futebol devem ser expandidos, encorajando a todos os órgãos a promoverem variadas formas de atividades internacionais e a ida de especialistas de futebol para o estrangeiro para estudos e capacitações, além de incentivar a participação de representantes nos organismos internacionais. O Plano ainda refere a importância de elevar a abertura (‘opening up’) e a vantagem (‘win-win’) nas cooperações.

“Cooperação” e “intercâmbio” são duas palavras-chave tanto no Plano quanto no discurso político da Belt and Road Initiative (BRI) ou Nova Rota da Seda. A BRI é um dos mais ambiciosos projetos geopolíticos e econômicos do mundo, um plano de integração global, tendo o antigo “Reino do Meio” como o elo de união e interconectividade. A Rota da Seda, segundo Liu e Dunford, seria uma metáfora para a paz e cooperação, abertura e inclusão, aprendizagem mútua e benefício mútuo. O discurso em torno da BRI se coaduna com os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica.

Foi neste contexto, aliás, que a Nova Rota da Seda foi mencionada por Xi em seu discurso na manhã desta quinta-feira. O líder chinês afirmou que vão continuar a trabalhar para construir um novo tipo de relações internacionais e uma comunidade humana com um futuro compartilhado, promover o desenvolvimento de alta qualidade da Belt and Road Initiative por meio de esforços conjuntos e usar as novas conquistas da China no desenvolvimento para fornecer ao mundo novas oportunidades. Vale ressaltar que desde 2013 Xi Jinping assegura que o Sonho Chinês não irá beneficiar apenas o povo da China, mas também outras nações. Na celebração do Centenário do Partido Comunista, Xi ainda enfatizou que a China vai seguir priorizando a cooperação em detrimento do confronto.

Assim, percebe-se como as iniciativas no futebol podem exercer papel fundamental nas aspirações geopolíticas chinesas, além de mostrarem coerência com Os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica. Aliás, a questão da promoção da cultura chinesa foi expressa por Xi Jinping em discurso na 12ª sessão do grupo de estudos do Gabinete Político do 18º Comitê Central: “o fortalecimento de nosso soft power cultural é decisivo para que a China alcance os objetivos do Duplo Centenário e realizar o Sonho Chinês de rejuvenescimento da nação”.

O “Plano de Ação 2020 da Associação Chinesa de Futebol” reforçava este entendimento, renovando os objetivos lançados no Plano de 2016. Uma de suas metas principais é a popularização do futebol e a promoção deste esporte como uma construção cultural, que conta com o intercâmbio internacional para expandir a influência chinesa e promover a imagem da China em todo o mundo. A propósito, o Plano do Futebol, em sua seção “orientação ideológica” é inequívoco ao determinar que se deve tomar um caminho de desenvolvimento do futebol que siga a realidade da China, fazer grandes esforços para tornar real “o sonho da ascensão do futebol, o sonho de uma nação esportiva poderosa e o sonho de rejuvenescimento da nação”.

Sem o socialismo, não haveria a nova China

Na China, o Estado não é mero gestor dos interesses do capital. Pelo contrário, o capitalismo é colocado a serviço da construção do socialismo. O poder político e econômico se centralizam no Estado. Sem o Partido Comunista, não haveria uma nova China, nem o Sonho Chinês do rejuvenescimento da nação. Citando Xi Jinping, através do socialismo, o povo chinês “foi capaz não só de desmontar o velho mundo, mas também de construir um novo” e que apenas o “socialismo com características chinesas pôde desenvolver a China”. Inclusive no futebol.

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