Com risco de insegurança e judicialização, Enem pode inviabilizar universidade em 2022
A educadora e sindicalista Madalena Guasco analisa a crise no Inep e denúncias de invasão ao sistema de provas do Enem, que ocorre a partir deste domingo (21). Para ela, trata-se de um política deliberada de destruição do acesso universal à educação superior pública.
Publicado 19/11/2021 10:54 | Editado 19/11/2021 11:26
O Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, é a principal porta de entrada para a universidade pública, mas, neste ano, se vê mergulhado em uma crise alarmante que envolve a organização responsável pela prova, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Há poucos dias da avaliação, que será aplicada a partir deste domingo (21) até 28 de novembro, um grupo de servidores do Inep solicitou afastamento dos seus atuais cargos e funções. O que começou com um pedido coletivo de dispensa de cargo, inicialmente assinado por 13 servidores, cresceu para englobar um conjunto de 37 funcionários que, até o dia 8 de novembro, citaram ”falta de comando técnico” e “clima de insegurança e medo”, promovido pela gestão atual do presidente do Inep, Danilo Dupas Ribeiro.
Para a secretária-geral da Contee (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino), Madalena Guasco, a situação é ainda mais grave do que aparenta, porque pode inviabilizar o funcionamento da universidade. Entrevistada pelo portal Vermelho, ela também é diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP, Doutora em Filosofia e História de Educação pela PUC-SP e Pesquisadora em Políticas Públicas.
Insegurança e invasão ideológica
Para ela, o problema mais grave deste exame é a falta de segurança. Ela lembra que a maioria dos servidores que se demitiram do Inep fazem parte da equipe técnica de segurança do Enem. “Isso cria um risco muito grave, pois os problemas que ocorressem em alguma unidade do exame eram imediatamente comunicados. Hoje, o Inep vai ficar sabendo pela imprensa se uma escola não conseguiu aplicar o exame”, diz ela, que conhece o Inep por dentro.
No ímpeto ideológico de interferir na elaboração da prova para evitar viés progressista nas questões, há acusações de que a gestão bolsonarista invadiu o sistema de provas. “Essa denúncia de censura tem sido constante, e já sabíamos. O Inep é responsável pelo censo da educação superior e básica, e por todos os dados educacionais do Brasil. A denúncia é de que pessoas estranhas ao Inep entraram na sala protegida que contém os dados, para ler provas elaboradas pelo sorteio do supercomputador”, diz.
A dificuldade para avaliar o legado desse Enem, segundo Madalena, é que não há informações claras sobre ele. “A gente já sabe que vai ser uma desgraça, mas não sabemos o quanto. Eles não divulgaram dados sobre quantidade de inscrições para comparar com a última edição. Eu entro todo dia no sistema em busca desses dados, e nada. Não sabemos se tem como salvar este exame. Também não sabemos o nível de segurança desse Enem. Mas que está todo mundo de olho, está”.
“Se esse Enem for inseguro e entrar a justiça no meio, acabou a universidade. Ninguém vai entrar, porque não vai ter validade”, alarma-se a sindicalista. Além disso, ela observa que as universidades aderiram ao Enem e não fazem mais seu vestibular próprio. Mesmo a maioria das escolas privadas aproveitam a nota do Enem. “Já sabemos que vai dar uma desestruturada nesse sistema”.
Exclusão e racismo
Embora os números sejam preliminares, segundo reportagem do UOL, a edição de 2021 registrou o menor número de inscritos, além da menor taxa de participantes negros e vindos de escolas públicas dos últimos anos.
Por outro lado, houve aumento no número de pagantes e de brancos. Antes mesmo de ser realizado, é considerado o Enem mais excludente e desafiador para estudantes pobres e vulneráveis.
Apenas 3,1 milhões de pessoas estão confirmadas para realizar as provas nos dias 21 e 28 de novembro. É o menor número desde 2005. Entre os participantes pardos e pretos, a diminuição foi de 52% (de mais de 3,4 milhões no ano passado para 1,6 milhão em 2021).
Os dados de 2021 “compõem o cenário da exclusão escolar” no Brasil, amplificado pelos desafios da pandemia do novo coronavírus, e são a ponta do iceberg dos problemas educacionais no país.
Para Madalena, o caráter excludente deste Enem se dá pelas dificuldades da pandemia, que revelou muitas desigualdades. Com muitos alunos do ensino médio que abandonaram os estudos para trabalhar.
Outro aspecto que ela menciona, é que o Ministério da Educação (MEC) retirou a possibilidade de isenções de taxas no último Enem, o que deixou de fora justamente os estudantes mais pobres. “Conseguimos reverter, ele teve que recolocar a isenção, mas exigiu participação presencial ou remota. Ambos foram tumultuados e mal feitos durante a pandemia”.
O MEC resolveu oferecer o benefício de isenção da taxa de R$ 85 apenas para quem tivesse justificado a ausência na edição de 2020. Participantes que faltaram por medo de ser contaminados com o coronavírus não puderam contar com o benefício, mesmo com a prova tendo sido realizada no auge da segunda onda da pandemia.
No estado do Amazonas e em dois municípios de Rondônia, a Justiça determinou o adiamento da prova, de janeiro para fevereiro, devido ao colapso no sistema de saúde.
Para o MEC, não era uma justificativa válida. À época, o governo federal pressionou cidades a não barrarem o exame, afirmando que não garantiria a reaplicação em todas as localidades. O Brasil já tinha até aquele mês um total de 209 mil mortos pela covid.
Só após uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), as inscrições para os faltosos foram reabertas. Ainda assim, o aumento foi de apenas 9% nas inscrições, ou ao todo 280.145.
Pesquisa feita pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e pelo Cenpec apontou que 5 milhões de crianças e jovens não tiveram acesso à educação no Brasil no ano passado. A exclusão educacional afetou ainda mais estudantes negros e pobres.
Declarações recentes do atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, mostram que ele não defende a inclusão de jovens negros e pobres no ensino superior. Para ele, “universidade deveria ser para poucos nesse sentido de ser útil à sociedade”. Com a repercussão negativa, tentou se explicar, mas depois afirmou ter jogado R$ 300 milhões “na lata do lixo”, porque muitos “simplesmente não compareceram na prova”, referindo-se ao recorde de abstenção da edição de 2020, que aconteceu em janeiro deste ano. Mas ignora que muitos não conseguiram fazer o exame por falta de espaço nas salas, já que era necessário obedecer ao distanciamento social.
A competência destrutiva do bolsonarismo
Para Madalena, este cenário configura a destruição de uma política pública de acesso. Ela explica que o exame é a porta de entrada para a universidade pública e substituiu os vestibulares que ocorriam em cada universidade federal, e tornavam impraticável disputar vaga em várias faculdades. Hoje, a classificação do aluno serve a várias opções de universidades e cursos. “Isso é uma democratização do acesso à universidade pública. O exame também elimina as vagas ociosas que ocorriam antes”, resume.
Ao contrário do senso comum que observa o aparente caos na gestão, com demissões e políticas públicas mal elaboradas, como incompetência, Madalena é enfática: “Eles têm um projeto de destruição da educação como um direito universal. Destruição do estado nacional, que elimina direitos universais”.
Para ela, achar que o MEC é incapaz e incompetente é uma percepção equivocada da gestão. “Eles são extremamente competentes naquilo que se propuseram, que é destruir as políticas públicas de inclusão, acesso e garantia universal de direitos. A educação, com o Enem, é uma das políticas, junto com saúde”, declara.
A sindicalista diz ainda que o Inep é um instrumento de pesquisa fundamental para elaborar planos para desenvolvimento da educação pública nacional. “Inviabilizar um instituto como o Inep, significa voltar à década de 1930”.
Desde o primeiro ano de covid-19, os especialistas criticam a omissão do MEC e a falta de um planejamento para evitar o desastre dos efeitos da pandemia na educação de crianças e jovens. Em meio a declarações negacionistas e revisionistas de confronto ideológico do ex-ministro Abraham Weintraub, não houve qualquer estratégia nacional ou coordenação central que garantisse a aplicação da Lei de Diretrizes e Bases. Não houve sequer campanhas motivacionais, ou apoio técnico e financeiro aos municípios
Ainda não existe nenhum plano de combate à profunda evasão escolar que garante o retorno de crianças e adolescentes que abandonaram a escola, neste período.
“Esse pessoal tem duas capacidades, de fazer uma destruição ideológica, uma luta cultural, uma censura para retirar todos os dados verdadeiros e científicos, sem entrar numa crítica à ditadura militar. O segundo é destruir o direito universal à educação”, pontua a educadora.
Mas Madalena também sinaliza que há resistência em meio ao poderoso aparelho bolsonarista de governo, que garante algumas vitórias. A resistência, de acordo com ela, se dá pela denúncia e vitórias pontuais no Parlamento, como ter obrigado o presidente do Inep a se explicar no Congresso, aprovar o Fundeb permanente, derrubar a portaria que acabava com a isenção da taxa do Enem, ou a que impedia as escolas de discutir questões de gênero. “Mas a nossa correlação de forças é desfavorável, por isso, o que nos resta é a ampla aliança para tentar derrotar, com muita luta, este governo, mas sem perspectiva de derrotar o bolsonarismo e o neofascismo no curto prazo”, recomenda.