Kaingang: o retrato de uma cidade desigual

Curitiba tem sido palco de heroica resistência da nação Kaingang, particularmente nesse mês de dezembro quando aqui estão para realizar a venda de seus artesanatos

No acampamento indígena (estacionamento do Palácio Iguaçu)

Há séculos os povos indígenas do Brasil resistem bravamente contra a imensa violação a seus direitos, que mesmo protegidos pela Constituição Federal, tem sido constantemente desrespeitados. Enfrentando diversos tipos de agressões, os povos indígenas, desde a grilagem, sofrem com o roubo de suas madeiras, as invasões de suas terras tradicionais, a violência contra as mulheres, o desmatamento, a morte de suas populações, feitos por mineradoras, madeireiras, grandes latifundiários, muitas vezes com a complacência e o abandono do Estado.

Atualmente a cidade de Curitiba (PR) tem sido palco de heroica resistência da nação Kaingang, particularmente nesse mês de dezembro quando aqui estão para realizar a venda de seus artesanatos, como o fazem todos os anos, mas encontraram como resposta do poder público a discriminação e o descaso da prefeitura e do governo do Estado.

Jovina Rehn Ga: mulher, kaingang, que lidera a resistência indígena (Foto: Daniel Giovanaz)

Como integrantes da União Brasileira de Mulheres e da Frente Feminista de Curitiba, temos acompanhado cotidianamente o drama dos Kaingang, especialmente das mulheres e crianças que compõe o maior contingente de mais de 50 famílias e quase 300 pessoas que estão dormindo pelas ruas da cidade da capital do Paraná. Uma parte delas está acampada na frente da Prefeitura Municipal de Curitiba (estiveram no estacionamento do Palácio Iguaçu por quase duas semanas), persistindo na luta pela reabertura da Casa de Passagem Indígena, uma conquista histórica dos povos originários desde 2015 e fechada a pretexto da pandemia, mas que não se justifica a permanência de seu fechamento. É uma necessidade emergente a sua utilização, considerando que os demais equipamentos públicos encontram-se abertos e funcionando, justamente a Casa dos indígenas continua fechada, sem justificativa plausível da prefeitura municipal. Quem tem assumido o papel que cabe ao Estado são os movimentos sociais, fundamentalmente o movimento feminista que presta solidariedade atendendo diversas demandas materiais apresentadas, principalmente, em produtos alimentícios e de higiene, banho e lavagem das roupas, inclusive recebendo em suas casas seus irmãos e irmãs.

Ocupação em frente à Prefeitura de Curitiba

Os slogans: “Cidade modelo”, “Cidade Sorriso”, “Cidade Ecológica” que já foram usados para fazer a propaganda de Curitiba, novamente são questionados, diante dessa desumanidade e mesmo crueldade no tratamento aos povos originários. Sem dúvida, Curitiba encanta aos visitantes com seus belos bosques, parques, atrativos no centro da cidade e belíssimos bairros em regiões nobres. No entanto, é preciso descortinar os territórios mais distantes para enxergar a Curitiba das desigualdades e vulnerabilidades sociais, já que segundo o Fórum Urbano Mundial da ONU, encontra-se entre as mais desiguais do mundo. Não precisa ir muito longe para ver a realidade dos Kaingang pois eles se encontram no Centro Cívico, bairro que abriga os Órgãos de governo municipal e estadual, o Museu Oscar Niemeyer – Museu do Olho entre outras edificações.

Os povos Kaingang, que ocuparam o terreno ao lado da Prefeitura, estão entre os mais numerosos povos indígenas do Brasil, possuem uma língua pertencente à família linguística Jê como o povo Guarani a língua Tupi. Desenvolveram-se próximos aos pinheirais, ocupando a região sudeste/sul do território brasileiro. A economia dessas comunidades indígenas baseia-se na produção de roças de subsistência, pomares, criação de galinhas e porcos. Para complementar a renda familiar, produzem e vendem artesanato como cestos, balaios, chapéus, arcos e flechas. Segundo o IBGE (2010), eles ocupam na atualidade, pouco mais de 30 áreas reduzidas distribuídas sobre seu antigo território nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Com uma população hoje estimada em torno de 50 mil pessoas, constitui-se um dos cinco povos indígenas mais populosos no Brasil. (http://www.portalkaingang.org/index_povo_1default.htm).

Artesanato produzido pelas mulheres indígenas

É inegável a influência da cultura indígena no paranaense. Recebemos importantes conhecimentos, como na culinária, além do consumo da erva-mate fria ou quente, aprendemos e apreciamos alimentos como a mandioca, milho e pinhão. Ainda adotamos o mingau, a pamonha e a paçoca. O nome Curitiba é de origem Guarani e significa “grande quantidade de pinheiros, pinheiral”, e Paranaguá que expressa Grande Mar Redondo. Paranaguá é a cidade mais antiga do Paraná e fica entre as cidades  históricas de nosso país. O povoamento do litoral do Paraná começou por volta de 1550, na ilha da Cotinga, servindo mais de ponto referencial no processo de investigação e buscas auríferas. No Paraná temos diversas cidades de origem Kaingang, como: Goioerê, Candói, Xambrê e Verê.

O professor e pesquisador Pedro Puntoni ressaltou a necessidade do reconhecimento de que nossa sociedade foi formada em um processo histórico de constante violência e destruição das sociedades indígenas, do seu genocídio. É preciso ter compromisso com a defesa dos direitos e da autonomia dos povos indígenas remanescentes para perceber que a luta dos indígenas é também a nossa luta contra um Estado operador de um sistema extrativista, ecocida e colonizador. Para ele, é necessário atuar concretamente nessa realidade reconhecendo os povos indígenas como verdadeiros donos da terra e lutar contra o sistema que tem explorado ao limite o povo brasileiro, com um projeto de destruição da nação.

É dessa forma que integrantes dos movimentos sociais têm se colocado no apoio à justa reivindicação da população Kaingang, repudiando o abandono por parte do Estado e exigindo que a prefeitura de Curitiba devolva a Casa de Passagem Indígena (CAPAI). A casa de passagem, que deveria proporcionar o mínimo de dignidade a uma população migrante por força cultural e por necessidade de sobrevivência de venda de seus produtos artesanais, sofre o descaso das três esferas governamentais. Em julho de 2021 o Ministério Público do Paraná (MPPR) expediu recomendação administrativa ao Município de Curitiba e à Fundação de Ação Social para que fosse providenciado imediatamente um imóvel adequado para realocação e reativação dos serviços da Casa, de modo a garantir o devido acolhimento aos indígenas que estivessem na capital, no entanto a resposta da prefeitura tem sido o abandono e o descaso. Entendemos que o Sistema de Justiça precisa operar com mais contundência, como afirma a nota pública do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Paraná que manifesta totalmente contrária à violação de direitos, informando que foi repassado pelo governo do Estado um montante de R$ 1.900.000,00 (um milhão e novecentos mil reais), verbas destinadas à finalidade de abrigar crianças e suas famílias em situação de vulnerabilidade e custeio de casa de passagem regionalizada. A nota solicita à Polícia Federal, que investigue as possíveis violações, dolosas, de direitos constitucionais dos povos indígenas por parte da direção da Fundação de Ação Social – FAS, ao negar-lhes abrigo que contemple as necessidades de suas  crianças, dentro das perspectivas culturais que lhe são peculiares. Ainda, solicita que o Ministério Público Federal no Paraná, adote as medidas jurídicas necessárias para solução imediata da dramática situação das famílias indígenas hoje presentes em Curitiba. Igualmente mais de 100 (cem) organizações do movimento social e sindical assinaram a petição pública, que pode ser acessada nesse link: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR121885, que exige a abertura da Casa de Passagem Indígena e condena a ação higienista da prefeitura de Curitiba com a população mais vulnerável exigindo o respeito aos direitos humanos do povo Kaingang, reconhecendo seus valores culturais de respeito a terra e a todos os seres vivos. Na defesa de suas terras, nos somamos a essa luta e no entendimento de que suas lutas são nossas lutas.

Para apoio ainda pode ser enviado via PIX da liderança indígena Marilene Kixirrá Jamamadi 41 920015925. Ontem, participamos de reunião com integrantes do Ministério Público do Paraná, Conselho Nacional dos Direitos Humanos, representante da Frente Feminista de Curitiba e lideranças dos Kaingang no oferecimento de uma Casa de Passagem. As lideranças estavam avaliando se mudariam para esse espaço. A luta continua!

REFERÊNCIAS
https://www.museuparanaense.pr.gov.br/Pagina/Povos-indigenas-no-Parana

http://www.portalkaingang.org/index_lingua_2_1.htm

http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-artigos/reportagens/17165-resist%C3%AAncia-ind%C3%ADgena-na-hist%C3%B3ria-do-brasil

https://www.brasildefatopr.com.br/2017/03/06/jovina-rehn-ga-mulher-kaingang-lutadora-do-parana

https://www.youtube.com/watch?v=lRFz2Cc2t8U

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