Não olhe para o poder das bigtechs e seus algoritmos

Na TV Grabois, uma conversa sobre o filme Não Olhe Para Cima, a partir do prisma das corporações tecnológicas, com os jornalistas Fábio Palácio e Renata Mielli

Mark Rylance (centro) faz Peter Isherwell, caricatura dos CEOs de bigtechs, como Elon Musk, em ‘Não olhe para cima’

O programa Cultura e Movimento da TV Grabois discutiu, ao vivo, o filme Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up), com os jornalistas Fábio Palácio e Renata Mielli. A produção da Netflix monopolizou os debates nas redes sociais com sua sátira política escrita e dirigido por Adam McKay. O filme é estrelado por um elenco liderado por Jennifer Lawrence e Leonardo DiCaprio, que interpretam dois astrônomos de baixo escalão tentando, por meio de um tour pela mídia, alertar a humanidade sobre um asteróide que destruirá a Terra.

Quem conhece o trabalho de McKay não se surpreende com a sátira do filme, que acertou na atualidade da brutal polarização política que contaminou o mundo. Seu tema permanente é o universo complexo do poder, da mídia e do capital. Desde o sarcasmo político de Saturday Night Live, passando pela poderosa série Succession da HBO, um investigação sobre uma poderosa família da mídia, ele parte então para longas sobre os meandros dos meios de comunicação, como O âncora, a lenda de Ron Burgundy. A grande aposta é seu filme mais prestigiado sobre o colapso do mercado financeiro em 2007, com Oscar para o roteiro de McKay, seguido do também premiado Vice, que mostra como o poderoso vice-presidente Dick Cheney transformava George Bush num fantoche.

Assista à íntegra do programa Cultura e Movimento:

O ponto de vista de Renata Mielli sobre o filme é peculiar ao voltar o foco para o personagem Peter Isherwell, o magnata da tecnologia, e suas implicações na história.  Ela é doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e integrante da coalizão Direitos na Rede, e foi coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação de 2016 a 2020.

Para ela, o filme traz um conjunto de temas satirizados, em que as pessoas encontram paralelos entre as caricaturas com personagens da realidade, em qualquer lugar do mundo contemporâneo. Como disse Palácio, os temas da pós-verdade, hipermediatização, sensacionalismo, o poder das grandes corporações de tecnologia, crise da esfera pública, o negacionismo científico, entre outros plasmados no filme, acabam causando esse efeito de reconhecimento. Ele é professor de comunicação na UFMA e comando o programa na TV Grabois.

Porém, o tema que chama a atenção de Renata é o enorme poder das corporações tecnológicas, acima dos estados nacionais. Peter Isherwell representa os CEOs de bigtechs, como Elon Musk, Jeff Bezos, Steve Jobs, Bill Gates, que vão espraiando seus domínios sobre todas as áreas de tecnologia, acumulando trilhões de dólares e controlando eleições e decisões de todos os governos do globo.

Leia também o artigo de Renata Mielli: Não Olhe Para Cima alerta: as Big Techs podem destruir você e o mundo

Como Renata salienta, são justamente estas empresas poderosas as responsáveis, em grande medida, pela desestruturação e crise da esfera pública “a partir dos algoritmos que modulam os conteúdos e o comportamento individual nas redes sociais”. Renata também explica como o cabresto dos algoritmos criam o problema do “não olhe para cima”, em que as pessoas só olham para o que a ordem quer, menos para a política e sua importância. 

Palácio, por sua vez, destaca o modo como razão e emoção estão cindidas na contemporaneidade das redes sociais, expressas abertamente no filme pela recepção à mensagem dos cientistas. As pessoas não querem sair da sua atmosfera de positividade, observa ele. Sob o signo do Prozac, fogem da dor e da obrigação da reflexão. 

Renata, por sua vez, destaca o fato de cientistas mulher e negro estarem nesse lugar da incomunicabilidade com uma sociedade hegemonizada pela extrema direita. Para ela, não é coincidência que Kate Dibiasky e Dr. Clayton “Teddy” Oglethorpe sejam os personagens com discurso ignorado e ridicularizado pelo poder, o mercado e pelas mídias. Mesmo o cientista ouvido é esvaziado de seu conteúdo pelo sensacionalismo e machismo, inebriado que fica pelo modo como as mídias exacerbam a sobreposição da emoção sobre a razão.

Outro aspecto interessante do debate presente no filme é o modo como a mídia e o jornalismo competem com as estratégias sensacionalistas das redes sociais, e deixam de contribuir para o senso crítico da sociedade diante do risco da extinção. O sensacionalismo como um fenômeno tão antigo quanto a imprensa, na opinião de Palácio, pode estar assumindo uma nova qualidade neste ambiente contemporâneo de pós-verdade e redes sociais.

Assim, os temas se acumulam no filme como uma alegoria do nosso tempo, com a extinção humana podendo ser uma metáfora de tantos outros problemas que ameaçam a civilização humana, como a atual pandemia, o aquecimento global, e a ascensão da extrema direita com seu neofascismo tecnológico.

Da Fundação Maurício Grabois