100 anos da Semana de Arte Moderna: a refundação antropofágica do Brasil

“Voltando os olhos para o Brasil sem dar as costas para o mundo, em uma explícita postura de redescoberta e refundação da nação, os modernistas, cem anos depois, tal qual Dom Pedro I, promoviam uma espécie de ‘fico cultural’, ao repetirem a opção pelo Brasil em face da Europa”, escreve Antonio Carlos Bigonha.

Antropofagia, 1929, de Tarsila do Amaral Foto: Reprodução da Internet

A Semana de Arte Moderna completa, neste 2022, o seu 1º centenário. Realizada entre os dias 13 e 18 de fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, a mostra foi responsável pela introdução do modernismo no Brasil e integrou os festejos dos cem anos de nossa independência de Portugal, ocorrida em 1822. Dela participaram grandes nomes da cultura brasileira, como o compositor Villa-Lobos, os artistas plásticos Victor Brecheret, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti, e os escritores Manoel Bandeira, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, entre outros. Segundo Otília Arantes, o movimento, influenciado pelos elementos estéticos em voga na Europa no início do Século XX, buscava implementar, por um influxo externo, a releitura moderna do nosso passado, com referência a uma tradição despida de tradicionalismo: como um olhar retroativo na reinterpretação do nosso processo de formação.

Cem anos antes, em 9 de janeiro de 1822, Dom Pedro proferia a famosa expressão “diga ao povo que fico”, atendendo aos apelos das elites agrárias e dos cidadãos livres brasileiros para que não regressasse a Lisboa, como lhe ordenava seu pai, o rei Dom João VI. Havia o receio na população local de que a partida de Dom Pedro, naquele momento, precipitasse uma onda de violência e terror, tal qual ocorrera em Portugal em 1808, após a transferência da Coroa para o Brasil. Dom João VI conseguira, naquele momento, livrar-se do jugo de Napoleão Bonaparte, mas deixara Lisboa em estado deplorável, com os portugueses entregues à própria sorte e à espera da rendição pelos franceses. Uma orfandade que os brasileiros não queriam experimentar aqui, passados treze anos. A recusa de Dom Pedro entraria para História como o Dia do Fico, deflagrando o processo de independência do Brasil das Cortes portuguesas, movimento que seria consolidado ao longo dos oito meses seguintes, até o derradeiro brado retumbante proferido às margens do Ipiranga, no dia 7 de setembro.

A fundação da nação brasileira, tal como a conhecemos hoje, teve início, como afirmam os historiadores, com a transferência das instituições portuguesas para o Rio de Janeiro, em 1808. Mas este processo não foi interrompido e, ao contrário, consolidou-se em 1822 graças à disposição do Príncipe em descumprir as ordens do Rei, ao aqui permanecer e impedir que o Brasil voltasse à condição de completa subalternidade, como integrante do Reino do Brasil, Portugal e Algarves. Estabelecia-se, assim, uma fissura entre o ser português e o ser brasileiro que jamais seria reconstituída. Nada mais natural do que a coroação e sagração de Dom Pedro I, em 1o de dezembro daquele ano, como o primeiro imperador constitucional do País.

Voltando os olhos para o Brasil sem dar as costas para o mundo, em uma explícita postura de redescoberta e refundação da nação, os modernistas, cem anos depois, tal qual Dom Pedro I, promoviam uma espécie de “fico cultural”, ao repetirem a opção pelo Brasil em face da Europa. Provocavam os brasileiros a verem o mundo contemporâneo com olhos livres, despidos de qualquer fórmula e segundo uma epistemologia tropical. A antropofagia, nesse sentido, nos libertava de qualquer preconceito e nos autorizava a ingerir toda a influência alienígena, para degluti-la segundo o vetor da nossa formação cultural. Essa disposição à reconciliação e, ao mesmo tempo, independência em relação à Europa era uma estratégia para purgar o passado colonial. Como já foi tantas vezes dito, o ser moderno foi marcado, deste o início, por esta peculiaridade local: a capacidade, se não a necessidade, de articular vanguarda e tradição. Não por acaso, em Lucio Costa, um de seus expoentes ao longo do Século XX, ser moderno é, conhecendo a fundo o passado, ser atual e prospectivo. Uma habilidade que nossa arquitetura logrou concretizar nas formas puras de Oscar Niemeyer.

Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, afirma que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas quando estes elementos encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. O que pressupõe a superação do sentimento de inferioridade em relação ao estrangeiro, o desrecalque localista de que nos fala Antonio Candido: o desejo de criar uma cultura local com os ingredientes tomados avidamente aos estrangeiros, mediante a convergência entre a vanguarda internacional e a tradição local. O desdobramento histórico dessa nova maneira de ver o Brasil, moderna e desassombrada, é por todos conhecido: a Companhia Siderúrgica Nacional, a Petrobras, o Palácio Capanema, as universidades federais, a sede das Nações Unidas, Carmem Miranda, o Cinema Novo, Luiz Gonzaga, a Bossa Nova, Pampulha, Dorival Caymmi, Brasília, Zé Gotinha, a Constituição de 1988, o Tropicalismo, o Sistema Único de Saúde, Ciepes, os Institutos Federais, a MPB, o Bolsa Família, Ariano Suassuna, Rede Sarah Kubitscheck, Clube da Esquina, Fome Zero e tantos outros. Cada um destes exemplos é a afirmação de um marco civilizatório tipicamente nacional que foi possível graças à manutenção de nossa integridade territorial e política, decorrente do ato de insurreição de Dom Pedro I, apartando-nos, há exatos 200 anos, de Portugal, e graças à invenção de um Brasil moderno, há um século.

Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, afirma que somos mestiços na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. A extinção formal do escravismo, ainda recente, reclama pela adoção de ações afirmativas e reparadoras. Passados cinco séculos da ocupação europeia, assistimos perplexos o extermínio indígena disfarçado pelo manto da velha política integracionista. Em seu Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928, Mário de Andrade insistia no fato de que uma música verdadeiramente nacional seria resultante da convergência de elementos culturais negros, índios e brancos, fundidos em uma nova identidade, tipicamente brasileira, uma evidente alusão à música como metáfora de nação. Em seu discurso dirigido aos formandos do Conservatório de Música de São Paulo, no ano de 1935, afirmava que, àquela altura, no Brasil nós não estávamos ainda convencidos de que a cultura valia tanto quanto o pão. E nisto consistiria a nossa mais dolorosa imoralidade cultural.

O desabafo de Mário de Andrade permanece constrangedoramente atual, passados 200 anos da independência e 100 anos da Semana de 22. Não dispomos sequer de um Ministério da Cultura e há poucos dias o Instituto do Patrimônio foi vítima de ingerência autoritária do poder central, na condução dos interesses da preservação cultural. O obscurantismo que nos foi imposto pela elite do atraso, nos últimos anos, de que nos fala Jessé Souza, é o mesmo que nos ronda de tempos em tempos, há séculos, na escuridão de uma noite a que, por vezes, não se sucede a aurora libertadora. Não obstante, é preciso crer na objeção do próprio Mário, de que há sempre uma aurora para qualquer noite. Uma aurora cujo descortinar depende de cada um e de todos nós neste ano de 2022, para o renascimento do Brasil sonhado por Darcy: uma nova Roma, melhor que a dos romanos, porque lavada em sangue índio e sangue negro.

Fonte: Portal do IREE