Conflito na Ucrânia e os desafios para por fim à exploração dos povos

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Sejam quais forem os desdobramentos do conflito no leste europeu, os fatos que vêm se acumulando indicam, pela dimensão e repercussão dada aos atuais acontecimentos, que movimentos de fundo emergem na geopolítica mundial, abalando-a. O imperialismo sente-se ameaçado com mais força em diversos aspectos político, econômico, tecnológico e militar. As contradições se aceleram entre a hegemonia dos EUA, com sua OTAN, e os interesses nacionais ou de blocos; entre a voracidade estéril do capital financeiro e a necessidade premente de desenvolvimento socioeconômico. As necessidades de fortalecimento da multipolaridade se acentuam.

Há tempos que a paz não era tão propalada, exigida em tamanha veemência, presença obrigatório nos discursos mais reacionários. A hipocrisia perdeu a mão e a palavra o sentido. No geral, fala-se de a paz enquanto artigo de pronta entrega, dádiva incólume, sem as vicissitudes e as agruras de sua construção. A voz uníssona da grande mídia e sua total parcialidade de narrativa dirigem os atos-notícias, os sofrimentos e a indignação alheios com o mesmo roteiro: a “paz do mundo” ameaçada pelo “inimigo” de sempre, que muda de nome, fisionomia e circunstâncias conforme as inconveniências feitas.

Diante dessa torrente de (des) informações opiniosas e sincronizadas, verdadeiro massacre, para desqualificar e isolar o “inimigo da hora”, é fundamental discernir “por quem os sinos dobram”, pois aparentam para todos. Porém, na geografia concreta, existem 8 bilhões de pessoas que se interrelacionam, habitando 195 países, divididos em expropriados e proprietários, exploradores e explorados, opressores e oprimidos, pobres e ricos. Desse total, apenas 520 mil são bilionários (0,01% mais rico) com 11% da renda mundial; 1% do topo da pirâmide detém 38% de toda riqueza produzida; 10% mais ricos possuem 76% da riqueza global; enquanto os 50% mais pobres e miseráveis dividem 2% desse montante. A imensa maioria não teve acesso a vacina contra a covid-19 ou teve de forma limitadíssima.

Se a paz é um desejo e uma necessidade de toda a humanidade, há uma guerra declarada, assimétrica, consentida e não silenciosa contra os povos, que pilha suas riquezas e os frutos de seu trabalho. Uma guerra sem trégua para manter esse sistema hegemônico concentrador e de privilégios. Assim, a paz defendida pelo maior promotor de guerra de rapina (USA) é o silêncio dos amordaçados e a paralisia dos grilhões para a grande maioria; o cenário que normaliza e legitima todas as atrocidades, perpetua as injustiças, destrói direitos, promove morticínios em nome da insaciabilidade do lucro e da renda. Portanto, tudo o que perturbe essa Pax Americana vira “bárbaro”, “ditador”, inimigo do “mundo ocidental” e da “democracia”.

O império lastreia o capital com suas canhoneiras terrestres e flutuantes (800 bases militares), seu arsenal atômico, seus milhares de marines, espalhados pelo mundo afora. O avanço do sistema financeiro, dominando países com suas consequências devastadoras para os povos, exige maior subserviência e espaços para se realizar, seu crescimento precisa destruir autonomias e quaisquer movimentos contrários. Não foi à toa que a OTAN se expandiu quase 100% para cima da Rússia, promoveu um golpe na Ucrânia, tornando-a satélite, após a retomada do protagonismo russo, com Putin a partir de 2000; que os acordos e as ações buscam isolar a China; que um golpe limitou o papel do Brasil nos BRICS e no Mercosul.

A ascensão da China, maior economia do mundo, e a recuperação da Rússia, maior arsenal atômico, em meio a crises frequentes e cada vez mais profundas do sistema; a derrota do neoliberalismo e as respostas à pandemia realçaram a importância do Estado para o desenvolvimento nacional. Apresentou-se com mais visibilidade e capacidade de realização uma alternativa de crescimento econômico mais autônomo, assentado em tecnologia avançada, infraestrutura, ampliação de comércio e expansão de capital produtivo, que vem ao encontro das necessidades de países em desenvolvimento e pobres. A China lança a Nova Rota da Seda, com seus U$ 5 trilhões, conectando o mundo ao seu profícuo desenvolvimento, reforçando a parceria e o comércio com 2/3 dos países. A Rússia, por sua vez, constrói junto com a Alemanha (economia líder da UE) o gasoduto Nord Stream, garantindo energia para a Europa.

O padrão de dependência imperial foi abalado. Agora não se trata mais de alimentar só conflitos localizados, mas avançar no isolamento dos atores principais do contraponto. Assim, a Ucrânia transformou-se em aríete do imperialismo pela sua importância estratégica de corredor de energia entre a Rússia e Europa. Sua entrada na OTAN é determinante ao estrangulamento russo e a manutenção do continente sob controle. Ironicamente, independente dos motivos imediatos expostos e das acusações feitas, o que está em jogo no tabuleiro internacional, no fundo desse conflito é a contradição entre a subserviência aos ditames do Império e a soberania dos povos, entre a realidade multipolar e a força de um condomínio que deseja manter o controle do mundo e seus privilégios.

As condições materiais e subjetivas para o avanço de mudanças na correlação de forças geopolíticas e movimentações importantes na luta anti-imperialista amadurecem. A declaração conjunta dos presidentes chinês e russo nos Jogos de Inverno de Pequim e a ação bélica pensada na Ucrânia confirmam. Além de considerar como muito emblemático serem atitudes vindas de um país que constrói o socialismo e de outro que construiu a primeira experiência socialista, que o levou a ser a potência que é hoje.

Longe de menosprezar a imensa capacidade de forças, resiliência, manobras e de amarras do sistema financeiro internacional, entendemos que a ação russa na Ucrânia foi um passo significativo, que emparedou a OTAN, colocando-a em xeque enquanto protetora do continente europeu; deixou aos EUA e a seus aliados o ônus de uma guerra generalizada, de uma possível crise energética e alimentar  na Europa, desta ser palco de grandes danos caso suas ações belicistas ampliem e agudizem o conflito. Portanto, os passos seguintes exigem cautela e perguntas a serem respondidas, diante das contradições existentes nessa ampla aliança arranjada contra a Rússia: quais as consequências das sanções para o mundo? Como reagirão os países com as crises instaladas? Qual o papel da China nesse episódio?

Assim, muito superficialmente, procuramos entender esse momento crítico que se passa. Obviamente, torcemos pela paz, que o conflito tenha o tempo mais curto possível e que as soluções em benefício dos povos ucraniano e russo sejam encontradas. No entanto, apostamos na paz que seja resultado da diminuição cada vez maior das ações nefastas de um sistema explorador, opressor, excludente e anti-humanidade. Afinal os sinos da grande mídia e do capitalismo não dobram por nós.

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