Controladoria revela negligência com estoques de medicamentos e vacinas

Sanitaristas analisam dados da Controladoria Geral da União sobre as perdas da pasta em medicamentos, vacinas e insumos, que chegam a um total de R$ 104 milhões apenas no primeiro semestre do ano passado. Os médicos sugerem improbidade administrativa.

O desperdício de insumos médicos é parte de uma estratégia de desmonte da saúde no governo Bolsonaro

Relatório da Controladoria Geral da União aponta que o Ministério da Saúde perdeu R$ 104 milhões em medicamentos e vacinas no primeiro semestre de 2021. O documento ainda indica R$ 20 bilhões em distorções contábeis, ocasionando a perda de 500 mil vacinas contra a hepatite B, 200 mil contra a varicela, 87 mil vacinas tetraviral, 245 mil frascos de BCG e 800 mil kits de insulina não utilizados que perderam a validade.

Os impactos são analisados pelo infectologista Marcos Boulos que chegou a qualificar como improbidade administrativa a inércia do Ministério da Saúde no controle dos estoques. No entanto, com a reforma na lei de improbidade, que só caracteriza essa atitude se houver dolo ou intenção. Imperícia e negligencia não serão punidas além das penalidades terem sido amenizadas.

Segundo o médico, às vezes, perdem-se estoques porque não são utilizados, a procura não é a esperada, e o produto acaba vencendo. “Mas não tudo isso aqui; até porque nós sabemos que esse governo tem sido negligente com relação a vacinação. Quando se perde tanto, é porque há um estímulo para que não se utilize o produto”, observa Boulos, em entrevista ao portal Vermelho.

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Em se tratando das perdas diante do discurso da falta de recursos para cobrir as necessidades, ajuste fiscal, contingenciamentos e deslocamentos de verbas, é inadmissível imaginar a perda de mais de R$ 100 milhões em recursos

Ele admite que é difícil provar a intencionalidade, “porque sempre vai se encontrar uma justificativa”. “Mas é claro que os gastos foram incompetentes e não se dimensionou adequadamente”, afirma.

O especialista em saúde pública, também relata que as negociatas no processo de compras públicas são comuns, com oferta de vantagens para compras acima da margem. “Por isso, [o excesso de estoque] pode ser até proposital para ter lucro em cima. Isso é uma prática em várias áreas de governo. Buscar ter alguma vantagem, até quando o produto está próximo do vencimento. Por isso, se fala em improbidade administrativa”, explicou.

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Boulos também sente falta de campanhas públicas de vacinação que orientem as famílias sobre quem deve se imunizar e que vacinas tomar. Uma negligência que pode estar por trás desse desperdício de vacina. “Existe um risco enorme da volta de várias doenças, entre elas a poliomielite mesmo. Falta uma campanha mais contundente em relação a isso”.

Como médico que já atuou na gestão pública da saúde, Boulos até compreende que, num momento de pandemia, seja complicado conscientizar a população sobre tudo, mas não pode haver total omissão da saúde pública. “É lamentável como as coisas estão acontecendo no país, neste momento”.

Da mesma forma, seria preciso investigar o que ocorre com a perda de 800 mil kits de insulina, quando parte da população precisa recorrer à Justiça para ter acesso ao hormônio. “É previsível que se tenha um consumo de insulinas. Não se trata de uma epidemia em que a demanda é emergencial. Os diabéticos estão todos aí, então não dá pra falar em erro de cálculo, por que o serviço público já dimensiona isso”.

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Evidências de improbidade

Em entrevista à Rádio USP, o sanitarista Fernando Aith, do Centro de Direito em Saúde (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública da USP, considera que o relatório é “reflexo de uma perda de capacidade técnica do Ministério para executar políticas nacionais estratégicas” no combate a doenças no País. Isso, segundo ele, já vinha sendo demonstrado durante a pandemia, quando ficou claro que o governo não tinha controle sobre quantitativos de leitos de uti e estoques de oxigênio hospitalar, por exemplo.

Aith lembra outros relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU), que explicitavam compras superfaturadas e a distribuição de medicamentos e insumos desnecessários [como cloroquina e ivermectina]. Para ele, tudo isso é parte de uma estratégia de desmonte do programa nacional de imunização, mesmo antes da pandemia. “Já havia uma perda na capacidade de ação, que ainda não voltou ao que era regularmente, desde a década de 1970”.

Durante a pandemia, vários relatórios do TCU já vinham  identificando compras sem licitação, sem justificativa adequada e a preços exorbitantes. “Compras desnecessárias e distribuindo de acordo com critérios políticos. Tudo isso já estava no radar do TCU e foi ainda mais documentado com o relatório da Controladoria”, lembrou.

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Aith também alertou para o risco da omissão do governo nas campanhas de imunidade da população, não somente em relação à covid-19. Com o retorno de doenças como o sarampo e a varíola, o quadro ideal seria a vacinação em massa da população, no entanto, o que se vê é o desperdício de vacinas sem serem utilizadas. 

As vacinas estão presas no estoque, perdendo a validade, não porque a população não queira tomar, mas porque o governo não quer fazer campanhas de imunização e todos se perguntam “cadê o Zé Gotinha”. Em relação a diabetes, o sanitarista salienta a dificuldade de acesso a insulina, sempre em falta nos postos de saúde e hospitais.

Ao final, Fernando Aith explica que o relatório possui a função de divulgar dados para que órgãos de checagem e controle, como o Tribunal de Contas e Ministério Público da União, identifiquem e punam eventualmente os responsáveis por ações de improbidade administrativa. “Muito provavelmente, agentes públicos sairão ilesos pelas barbaridades que cometeram”, lamentou o professor.

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