Em um ano, Brasil paga de juros 3,5 mais que o valor do Bolsa Família
O economista Nilson Araújo critica os juros pagos pelo governo Bolsonaro e avalia que o presidente eleito Lula faz bem em enfrentar a fome com a PEC do Bolsa Família
Publicado 21/11/2022 15:50 | Editado 21/11/2022 16:02
O economista Nilson Araújo de Souza avalia que o governo Lula começa bem, mesmo antes de assumir, quando propõe a PEC do Bolsa Família, um conjunto de medidas para começar a enfrentar o mais grave problema do país na atualidade, a fome de 33 milhões de brasileiros.
Nilson é doutor em Economia, membro do Comitê Central do PCdoB, diretor da Fundação Maurício Grabois e do Instituto Claudio Campos. Reproduzimos a entrevista feira por Carlos Pereira, também dirigente do PCdoB para o jornal Hora do Povo.
A retomada da atividade econômica anunciada por Bolsonaro, em sua campanha, era Fake News?
NILSON ARAÚJO – Em entrevista ao HP antes das eleições, demonstrei por A mais B aquilo que a oposição vinha comentando: que não passava de um estelionato eleitoral o crescimento econômico, acompanhado de deflação, que vinha sendo alardeado pela dupla Guedes/Bolsonaro.
Isso porque os pacotes econômicos reeleitoreiros, que, ao injetar dinheiro na economia, possibilitavam uma certa reanimação econômica, se esgotariam em dezembro; e as medidas adotadas para combater a inflação (elevação da taxa de juros e redução dos impostos incidentes sobre combustíveis) não atacavam suas causas (a combinação entre a dolarização dos preços dos combustíveis e a ausência de uma política que garanta os estoques reguladores de alimentos), e a redução dos impostos também se esgotaria em dezembro.
Confesso que errei. Avaliava que esse quadro só mudaria depois de dezembro. Ocorre que a produção industrial, que vinha evoluindo positivamente desde fevereiro deste ano, começou a cair em setembro (em pleno período eleitoral, mas o dado só foi divulgado depois) e o nível geral de preços, depois de três meses de deflação, voltou a subir em outubro, trazendo de volta a inflação velha de guerra, que estava artificialmente contida. Devo ter subestimado a força da pressão da elevação dos juros e da queda do investimento público no nível de atividade econômica, bem como a força da dolarização sobre o preço dos combustíveis e da ausência de estoque regulador no preço dos alimentos. Assim, o governo de Lula, que assumirá em janeiro, provavelmente herdará uma economia estagnada e uma inflação ainda elevada.
Lula propõe que a “PEC da Transição” exclua o Bolsa família do teto de gastos e libere 200 bilhões de reais em 2023. Que acha da proposta?
NILSON ARAÚJO – Acho que o governo Lula, mesmo antes de assumir, começou bem: propôs ao atual Congresso, ainda sob a vigência do finado governo Bolsonaro, por meio da PEC da Transição (rebatizada de PEC do Bolsa Família), um conjunto de medidas para começar a enfrentar o mais grave problema do país na atualidade: a fome de 33 milhões de brasileiros e brasileiras, adultos, crianças e idosos, negros, brancos e índios. E, ao combater a fome, injeta dinheiro em circulação, reanimando a economia.
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Entendamos a proposta. Já havia na proposta orçamentária para 2023, apresentada pelo governo Bolsonaro, R$ 105 bilhões destinados ao programa Auxílio Brasil (rebatizado por Lula com o seu nome original: Bolsa Família), que atende a 21 milhões de famílias, mas apenas com R$ 400 por cada uma. Ocorre que Lula havia prometido durante a campanha que manteria os R$ 600 que vinham sendo pagos provisoriamente (justiça seja feita: o Bolsonaro também, ainda que demagogicamente, fez essa promessa; demagogicamente porque, se ele tivesse de fato esse compromisso, teria proposto uma alteração constitucional que garantisse isso) e acrescentaria mais R$ 150 por criança. Isso implicaria num aumento de R$ 70 bilhões, resultando num total de R$ 175 bilhões para o programa.
O que propõe então a equipe do Presidente Lula? Que esses R$ 175 bilhões do Bolsa Família (o que, somando com uma proposta de usar parte dos eventuais excessos de arrecadação em investimentos, se aproximaria dos R$ 200 bilhões) sejam excluídos permanentemente do teto de gasto e que os R$ 105 bilhões que já constam da proposta orçamentária para 2023 sejam redirecionados a outras ações emergenciais a serem adotadas pelo novo governo, tais como reajuste real do salário mínimo, investimento para reativar as obras paradas a fim de gerar emprego (existem 14 mil obras paradas), recomposição da merenda escolar (o valor destinado por Guedes/Bolsonaro na proposta orçamentária para 2023 é insignificante), verba para que as universidades não fechem as portas por absoluta falta de recursos até mesmo para sua manutenção.
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Presidente Lula recomendou “pensar em responsabilidade social”, e não apenas fiscal”, e disse que “o dólar aumenta e a bolsa cai por conta dos especuladores”. Os economistas Edmar Bacha, Pedro Malan e Armínio Fraga não gostaram e publicaram carta aberta onde consideram que “falta dinheiro para áreas de crucial impacto social porque não se dá prioridade a elas”. Para os economistas “a alta do dólar e a queda da Bolsa não são produto da ação de um grupo de especuladores mal-intencionados e o teto de gastos não tira dinheiro da educação, da saúde, da cultura, para pagar juros a banqueiros”. Como você avalia essa reação?
NILSON ARAÚJO: Vejamos primeiro o que Lula falou sobre a sua proposta: “Não adianta ficar pensando só em dado fiscal, mas em responsabilidade social. Vai aumentar o dólar, cair a bolsa? Paciência. O dólar não cai por conta de pessoas sérias, mas dos especuladores”. E, posteriormente, durante sua estada na COP27, no Egito, arrematou: “O que é o teto de gastos? Se fosse para discutir que não vamos pagar a quantidade de juros do sistema financeiro que pagamos todo ano [registre-se que, de 2017 até setembro de 2022, o Estado brasileiro, em todas as suas esferas, pagou 2,3 trilhões de juros, numa média anual de R$ 383,3 bilhões] mas mantivéssemos os benefícios, tudo bem. Mas não, tudo o que acontece é tirar dinheiro da educação, da cultura. Tentam desmontar tudo aquilo que é da área social”.
A chantagem do chamado “mercado” – que, na verdade, é a máscara dos grandes grupos financeiros que dominam a economia – não se fez esperar: no dia seguinte à primeira declaração, sacaram dinheiro das bolsas de valores do país e compraram dólares, derrubando assim a bolsa (-3.35%, com perda de R$ 156 bilhões) e valorizando o dólar (+4,14%).
Seus acólitos entre os jornalistas de economia e os economistas de jornal secundaram essa ação com pressões e racionalizações. Destacam-se as racionalizações do trio Edmar Bacha-Pedro Malan-Armínio Fraga, que fizeram parte da equipe do Plano Real, mas não se reciclaram nestes tempos de pandemia, como o fizeram outros colegas seus, sobretudo o economista André Lara Resende. Lara Resende recupera a ideia, que já estava presente em Keynes, de que, em situação de capacidade ociosa e de disponibilidade de “fatores”, o governo pode emitir moeda para investimento público, o que não teria efeito inflacionário, mas de aumento da capacidade instalada.
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Foi muito bom para o Brasil que tenham votado em Lula, como registraram na carta, e o fizeram porque avaliaram corretamente que, enquanto Lula condensava a Democracia, o outro lado representava o fascismo em ameaça constante de dar um golpe e implantar uma ditadura militar.
Mas ajudariam muito mais o seu país se, em lugar de entrincheirar-se na repetição da ladainha banqueirista dos dogmas neoliberais como forma de pressionar pela não mudança da política econômica neoliberal que, de maneira radicalizada, vem sendo implementada por Paulo Guedes, abrissem a cabeça para os novos tempos e se somassem a seus colegas Lara Resende e Persio Arida com contribuições que possibilitem a reconstrução nacional e a retomada do desenvolvimento. Um desenvolvimento que supere a fome, a miséria e a pobreza e, por conseguinte, combata a desigualdade social.
Muita calma nessa hora. Começam pela defesa do defunto teto de gastos. Contradizendo Lula, dizem:
“O teto de gastos não tira dinheiro da educação, da saúde, da cultura, para pagar juros a banqueiros gananciosos. Não é uma conspiração para desmontar a área social”. E mais: “O teto, hoje a caminho de passar de furado a buraco aberto, foi uma tentativa de forçar uma organização de prioridades. Por que isso? Porque não dá para fazer tudo ao mesmo tempo sem pressionar os preços e os juros”.
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O teto de gastos não tira dinheiro da educação, da saúde, da cultura para pagar juros a banqueiros? Foi uma tentativa de forçar uma organização de prioridades? Colegas, mais respeito com nosotros. Não somos um bando de imbecis. Raciocinamos. Se o teto de gastos não tira dinheiro dessas áreas para locupletar os banqueiros e seus congêneres que aplicam seus capitais no mercado de títulos do governo), por que então essas despesas (que justamente Lula chama de investimentos) foram congeladas para que se gerasse superavit primário nas contas públicas, superavit que, como sabemos, é destinado ao pagamento de juros da dívida pública?
Tentativa de forçar a organização de prioridades? Isso é verdade, mas a prioridade obrigatória estabelecida no teto é o pagamento de juros aos credores.
Eles têm razão quando dizem que “falta dinheiro para áreas de crucial impacto social” “porque, implícita ou explicitamente, não se dá prioridade a elas”. Isso é verdade, mas falta responder por que “não se dá prioridade a elas”. Seguramente, é porque a prioridade, para os governos passados, tem sido o pagamento de juros, enchendo de dinheiro as burras dos especuladores. Agora, completo com uma frase deles: “Essa é a realidade, que precisa ser encarada com transparência e coragem”.
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É essa situação que o governo Lula pretende reverter, e eles, na contramão da história, estão se contrapondo a essa reversão. Aliás, não foi Lula quem matou o teto de gastos. Foi o governo Guedes/Bolsonaro. Lula apenas está colocando a pá de cal. Senão vejamos: “Nas contas da economista Vilma da Conceição Pinto, diretora na Instituição Fiscal Independente (IFI), já no biênio inicial, ainda no governo de Michel Temer, [o teto de gastos] foi arrombado em R$ 45,7 bilhões. Na dobradinha Jair Bolsonaro-Paulo Guedes, desmoronou. Em 2019, foram R$ 77 bi fora da regra estabelecida pela Emenda Constitucional 95/2016. No ano seguinte, o primeiro da pandemia, meio trilhão de reais (R$ 538 bi); em 2021, R$ 146,6 bi. Neste 2022, até setembro, as despesas extras alcançaram R$ 95,9 bilhões” (ver artigo “Teto de gastos é cloroquina fiscal”, de Flávia Oliveira, jornalista da Globo). Ou seja, até agora, mesmo durante a gestão do governo que o criou (Temer), o teto não foi respeitado, tendo sido abertamente desrespeitado por Guedes/Bolsonaro.
Alguns setores, incluindo aí participantes da Frente Ampla que elegeu Lula, admitem essa realidade insofismável de morte e enterro do finado teto de gastos, mas cobram a instituição de outra “âncora fiscal”. Topo discutir isso.
Por que não usamos como âncora uma meta de superavit nas contas públicas para viabilizar os investimentos econômicos, sobretudo em infraestrutura e ciência e tecnologia, e os sociais, particularmente, em educação, saúde e cultura, indispensáveis para a reconstrução nacional e a retomada sustentada do desenvolvimento? Pois, afinal de contas, a melhor forma de garantir uma administração consequente das contas públicas é pela retomada do crescimento econômico, já que, ao lado da redução da taxa de juros, possibilita que, em um momento previsível, comece a declinar a relação dívida/PIB, ao crescer o denominador (PIB) mais que o numerador (dívida pública).
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Foi mais ou menos isso que ocorreu nas outras gestões de Lula, quando essa relação caiu à metade. Como demonstra Lara Resende, não temos que nos espantar com o crescimento desse indicador, desde que a dívida seja em moeda nacional e em algum momento comece a trajetória de queda. Para ele, sendo a dívida em moeda nacional, não existe um limite “natural” para a relação dívida/PIB, como os neoliberais de plantão procuram fazer crer.
Com o investimento estrangeiro rarefeito, desaceleração das commodities, onde encontrar recursos para sustentar os programas sociais e, ao mesmo tempo, retomar o investimento público?
NILSON ARAÚJO – Dinheiro há. O problema é que está erradamente alocado. Como disse em entrevista anterior ao HP, devemos promover uma “redução importante das isenções fiscais (segundo a Anafisco, o montante das renúncias fiscais atualmente é de R$ 457 bilhões, sendo que só R$ 141 bilhões seriam defensáveis econômica e socialmente); baixa na taxa de juros para patamares civilizados (nos últimos 12 meses até julho, à atual taxa de juros escorchante, o governo repassou R$ 586,4 bilhões aos banqueiros e outros aplicadores no mercado financeiro, havendo a estimativa de que ao longo deste ano se chegará à cifra de R$ 719 bilhões, ou seja, 4,5 vezes o montante dos pacotes reeleitoreiros) [e 3,5 vezes o montante que Lula está propondo para bancar o Bolsa Família durante um ano]; combate sem quartel à sonegação (o secretário da receita de Itamar Franco, Osires Silva, montou um programa de fiscalização das grandes empresas e, no primeiro ano de governo, conseguiu aumentar a arrecadação em 32%); taxação da distribuição de lucros e dividendos (só o Brasil e um outro país isentam lucros e dividendos) e das grandes fortunas; estabelecimento de uma renda adequada do pré-sal, seguindo o exemplo da Noruega, que transitou de um país atrasado da Europa para o país de maior renda per capita no mundo com base na renda petroleira”.
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E, como sugere Lara Resende, não devemos descartar, inclusive, a emissão monetária; em momentos de crise, quando se produz capacidade ociosa, e quando haja disponibilidade de “fatores”, a expansão monetária não é inflacionária, principalmente se for destinado ao investimento público. Todos os países que se industrializaram ou passaram por crises profundas recorreram a esse mecanismo. Isso voltou a ocorrer em larga escala no enfrentamento do impacto econômico-social da Pandemia. A inflação ressurgiu nesses países não por causa dos volumes de dinheiro despejados
no mercado, mas pela maneira desordenada, não planejada, anárquica, de busca de saída da crise, gerando gargalos na cadeia mundial de suprimentos. Soma-se a isso o encarecimento da energia engendrado pela guerra na Ucrânia provocada pela ação expansionista dos EUA e da OTAN no Leste europeu. É uma típica inflação resultante do choque de oferta.