Pelé, o maior

Antes que a Fifa e o capitalismo se dessem conta do poder midiático – e lucrativo – do futebol, coube a um brasileiro se tornar a primeira celebridade mundial com a bola nos pés. Nenhuma personalidade brasileira projetou mais – e melhor – a imagem do País do exterior do que Pelé.

A morte de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, na tarde desta quinta-feira (29), aos 82 anos, encerra a épica trajetória do maior jogador da história – e também do brasileiro mais aclamado em todos os tempos. A primeira definição é mais consensual: dentro de campo, ninguém fez mais do que o “Rei do Futebol”, embora os que não o viram jogar, sobretudo os mais jovens, volta e meia queiram depreciá-lo, proclamando novos reis.

Em esportes individuais, como o tênis, os gigantes precisam, sim, apresentar números robustos, e não apenas talento. Tenista que não conquistou nenhum dos quatro torneios de Grand Slam pode até ter feito história, mas não merece um reconhecimento tão elevado, porque está em outra categoria – e ponto.

No futebol, os números podem – e devem – ser contextualizados, ainda que, nesse quesito, Pelé tenha muito o que exibir, a começar pelos três títulos mundiais com a camisa da Seleção Brasileira. Dos jogadores em atividade hoje, nenhum chegou sequer à segunda Copa do Mundo. Craques como Puskas, Di Stéfano, Eusébio, Cruyjff, Zico, Platini e Cristiano Ronaldo jamais venceram um Mundial da Fifa.

Ainda nos números, há divergências – para lá de irrelevantes – sobre o tanto de gols que Pelé marcou. A CBF (Confederação Brasileira de Futebol) fala em 1.281. O Santos aponta 1.282. Já o Livro dos Recordes (Guinness Book) crava 1.283. Só pelo Santos, seu único clube no Brasil, foram nada menos que 1.091 – Pepe, o segundo maior artilheiro santista, fez 403.

A grandeza de Pelé, porém, não está em tais ou quais números. “O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé”, sintetizou o poeta Carlos Drummond de Andrade, em novembro de 1969, quando Pelé marcou o milésimo gol, de pênalti, diante do Vasco da Gama, no Maracanã.

Muito antes de Drummond, quem perscrutou e traduziu precocemente tamanha genialidade foi Nelson Rodrigues. Em 26 de fevereiro de 1958, após o Santos vencer o América-RJ por 5 a 3, com quatro gols de Pelé, o cronista esportivo o chamou de “Rei do Futebol” pela primeira vez – o jovem atleta santista tinha apenas 17 anos.

Foi somente em 1980 que Pelé, já aposentado do futebol, recebeu um epíteto à altura, ao ser eleito o “Atleta do Século” pelo jornal francês L’Equipe. Jornalistas das 20 maiores publicações esportivas do mundo concluíram, na ocasião, o que Nelson Rodrigues já sabia 21 anos antes: “É um gênio indubitável! Pelé podia virar-se para Michelangelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los com íntima efusão: ‘Como vai, colega?’”.

Na mitologia grega, Baco atendeu a Midas e lhe deu o poder de transformar tudo o que tocasse em ouro. Na mitologia do futebol, Pelé transformou até as vítimas de seus lances em celebridades. É o caso do pênalti que deu origem ao milésimo gol. “Todos os anos, assim que se aproxima o aniversário do milésimo gol, eu dou entrevista. Eu sou lembrado por esse gol de Pelé, e não pelo futebol que eu joguei”, lamentou, certa vez, Fernando, o zagueiro do Vasco que cometeu o pênalti. O goleiro argentino Andrada ficou igualmente imortalizado no Brasil por ter sofrido o milésimo gol do “Rei”.

Esta era o toque-de-Midas de Pelé. Antes que a Fifa e o capitalismo se dessem conta do poder midiático – e lucrativo – do futebol, coube a um brasileiro se tornar a primeira celebridade mundial com a bola nos pés. É a saga de um brasileiro “pobre, preto e periférico”, nascido numa família modesta de Três Corações (MG) e radicado também modestamente em Bauru (SP).

Em campo, a conversão do menino desconhecido em uma lenda universal se deu entre a estreia do jogador no Santos aos 15 anos, em 1956, até a aposentadoria no Cosmos, dos Estados Unidos, aos 36, em 1977. Sua última partida oficial foi o amistoso entre as duas equipes, no Giant Stadium, em Nova Jersey – ele jogou um tempo em cada time.

Foi a noite em que Pelé disse “love, love, love”, o trecho mais marcante de seu discurso de despedida dos gramados, citado na música Love, Love, Love, de Caetano Veloso. “De todas as canções inspiradas em mim, acho que essa é a que mais me emociona”, escreveu Pelé em sua autobiografia.

Àquela altura, Pelé já havia eternizado tanto os gols marcados quanto os perdidos, tanto os dribles e as fintas quanto as reações dos adversários, tanto o seu espetáculo próprio quanto a participação – por vezes, comovente – de seus coadjuvantes. Machado viveu e morreu feliz com a fama de ter sido o goleiro que sofreu mais gols de Pelé em uma única partida – nada menos que oito na impiedosa goleada do Santos por 11 a 0 sobre o Botafogo-SP, em 1964.

Em contrapartida, o arqueiro inglês Gordon Banks, campeão mundial em 1966, preferia relativizar a reputação de seu embate mais notável contra Pelé. Foi na Copa do Mundo de 1970, no México, quando o Brasil venceu a Inglaterra por 1 a 0. Nos primeiros minutos de jogo, Banks espalmou de forma espetacular uma cabeçada à queima-roupa de Pelé, naquela que é considerada a defesa mais superlativa em Mundiais.

Houve zagueiros conhecidos como os “melhores marcadores” de Pelé. A leva vai de Píter (do Comercial-SP) ao italiano Giovanni Trapattoni (Milan), passando por Aldemar (Palmeiras) e Roberto Dias (São Paulo). O defensor Vicente foi reverenciado em Portugal, na Copa-1966, por ter “caçado” e inutilizado Pelé em campo. De tanto apanhar, o “Rei” já revidou com atletas desleais como o alemão Schultz e o uruguaio Matosas, em lances que hoje, revistos pelo VAR, lhe renderiam cartão vermelho. No esporte e na vida, não existem deuses perfeitos.

Noves fora esses pecadilhos, as críticas mais coléricas a Pelé se concentram em suas ações e opiniões fora de campo. Ele teria sido afável demais com os poderosos de plantão, inclusive sob a nefasta e criminosa ditadura militar (1964-1985). Omitem, no entanto, que o regime, desconfiado de Pelé, o investigou por 13 anos – e também omitem que Pelé apoiou a redemocratização e posou para fotos com a camisa das “Diretas Já”.

Nos meios esportivos, sua proximidade com os cartolas foi invariavelmente questionada, mesmo que, nesse meio tão corrupto e corruptor, não haja esquemas criminosos comprovados envolvendo Pelé. Na vida pessoal, o ataque mais recorrente diz respeito à sua recusa em reconhecer a ex-vereadora Sandra Regina Machado como filha biológica. Quando um teste de DNA confirmou a condição, Pelé preferiu não ter contato com Sandra pessoalmente – o que lhe rendeu nova onda de contestações.

O caso inclui fake news – como o boato de que Pelé se recusou a pagar o tratamento de câncer de Sandra. Mas a imagem do “Rei” saiu arranhada. Não foi a primeira nem a última vez em que o ex-jogador foi acusado de ter filhos fora do casamento. Por regra, eram denúncias falsas e oportunistas, o que levou Pelé a ficar reticente a qualquer solicitação de reconhecimento.

A demanda de Sandra era justa, mas incomodou Pelé devido à publicidade dada ao imbróglio. Tanto que, após esse caso e diante de outro pedido, Pelé não apenas reconheceu Flávia Kurtz como sua filha – mas também financiou seus estudos e ainda a nomeou como sua representante no Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe.

Flávia acompanhou o câncer terminal de Pelé no Hospital Albert Einstein, São Paulo. Nesta quarta-feira (28), na véspera da morte do “Rei”, ela posou para fotos com os filhos de Sandra, Octávio Felinto Neto e Gabriel Arantes do Nascimento, que visitaram o avô no hospital. “Agradeço a Deus por ter proporcionado esse momento, pois era o que minha mãe mais sonhava”, tuitou Octávio.

O encontro iminente com a morte mudou a postura de Pelé. Mário de Andrade confessou ser “bastante artista, pelo menos até o ponto de desejar essa besteira inacreditável e inexplicável de continuar querido depois de cadáver, osso, pó filho da puta”. Pelé não tinha dúvidas de popularidade, mas talvez lhe faltasse essa derradeira harmonia em família.

Na vida pública, o “Rei do Futebol”, o “Atleta do Século”, continuará idolatrado e contraditado. Nenhuma personalidade brasileira projetou mais – e melhor – a imagem do País do exterior. Atletas que jogaram com Pelé podem acusá-lo de omissão política e insensibilidade social, mas nenhum, até hoje, o descredenciou como atleta ou mesmo como companheiro de equipe.

É pouco, dizem seus detratores. Não é. Quem pendurou as chuteiras há 45 anos e permanece em evidência foi longe demais. O futebol e o Brasil se tornaram melhores com Pelé – e não é preciso ser um gênio como Nelson Rodrigues para enxergar o óbvio. O “Rei” está morto. Viva o “Rei”!

Autor