Negritude e racismo são temas de destaque do Carnaval paulistano

A vida das periferias e a luta cotidiana contra o racismo comparece em vários enredos. A exuberância da cultura nordestina também foi retratada por duas escolas.

Paulo Guereta / SECOM

As 14 escolas de samba do Grupo Especial do Carnaval de São Paulo já passaram pelo Sambódromo do Anhembi. A Independente Tricolor abriu o primeiro dia e a Dragões da Real encerrou o segundo. Enquanto os desfiles do ano anterior revelaram-se resistentes à pandemia, desfilando fora de época, em abril, os desfiles deste ano acabaram enfrentando um tempo menor de preparação, com menos meses.

Apesar disso, ninguém sentiu a diferença. Foram desfiles luxuosos, tecnicamente impecáveis, com falhas técnicas imperceptíveis, apesar de chuvas torrenciais em alguns desfiles. Os temas apresentados pelos sambas-enredo foram capazes de emocionar, pois variaram da luta dos povos negros a liberdade religiosa e homenagens à África e ao nordeste, revelando um espírito do tempo de indignação com o racismo.

Marcado por enredos pela igualdade racial e contra a intolerância religiosa, o primeiro dia de desfiles teve arquibancadas lotadas. Rosas de Ouro, Unidos de Vila Maria e Gaviões da Fiel levantaram as arquibancadas do Anhembi e arrancaram muitos aplausos do público.

Acadêmicos do Tatuapé e Tom Maior se destacaram pelas alegorias e fantasias de cores vibrantes. Não menos elogiada foi a Barroca Zona Sul, que resistiu à forte chuva que caiu durante o seu desfile. E como segue a tradição, a Independente Tricolor, segunda colocada do Grupo de Acesso no ano passado, abriu as apresentações.

A segunda noite foi destaque pela Estrela do Terceiro Milênio que mostrou o efeito poderoso do humor sobre as mazelas da vida. A Mancha Verde também impressionou com seu desfile sobre que misturou com vigor o samba e o xaxado, mostrando a exuberância da cultura nordestina, de Lampião a Gonzação.

A noite brilhou também com a prestigiada Mocidade Alegre, com seus dez títulos de campeã, e o enredo Yasuke. A escola soube explorar aspectos da cultura nipônica medieval vencida pelo negro moçambicano que se tornou samurai, para mostrar “que todo preto pode ser o que quiser!”

Primeira noite

No primeiro dia de desfiles das escolas de samba no Carnaval de São Paulo, os enredos ouvidos exaltaram a resistência negra, os indígenas, às mulheres e o próprio samba.

A primeira escola de samba a desfilar no Sambódromo do Anhembi foi a Independente Tricolor. A escola entrou na passarela com o enredo “Samba no pé, lança na mão, isso é uma invasão!” O tema usa referências da mitologia grega e traça um paralelo com a realidade. Segundo a escola, o enredo é uma alusão à estratégia para vencer batalhas, partindo da vitória grega sobre os troianos, e à conquista de espaços, uma referência ao retorno da escola ao Grupo Especial em 2023.

Foto:Paulo Guereta / SECOM

A segunda escola a entrar na avenida foi a Acadêmicos do Tatuapé, apresentou uma homenagem à cidade de Paraty, no litoral do Rio de Janeiro. A cidade da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), da arquitetura colonial, do Caminho do Ouro, da natureza exuberante, Patrimônio da Humanidade, da gastronomia criativa, dos caiçaras, indígenas e quilombolas é, também, do carnaval paulistano. O tema Tatuapé Canta Paraty! Do Caminho do Ouro à Economia Azul. Patrimônio Mundial, Cultura e Biodiversidade. Paraty Cidade Criativa da Gastronomia.

A escola mostrou a chegada dos portugueses, o domínio sobre os indígenas e apresentou os diferentes ciclos econômicos – ouro, cana de açúcar e café – que fizeram parte da história do município, cuja arquitetura colonial que ainda pode ser vista em igrejas e casarões também foi representada no Anhembi. O desfile teve a abertura de sua apresentação conduzida pela cantora, compositora, sambista e deputada estadual por São Paulo Leci Brandão (PCdoB-SP), madrinha da escola.

Terceira escola a desfilar, a Barroca Zona Sul levou o enredo Guaicurus. O tema da verde e rosa contou a história da tribo indígena homônima no Pantanal brasileiro. Historicamente, os guaicurus habitaram os estados do Mato Grosso do Sul, Goiás e a região do Chaco paraguaio. O espírito guerreiro é a marca deste povo indígena.

Com este tema, a Barroca levantou a discussão sobre a proteção dos direitos dos povos originários e a necessidade de preservação da natureza e dos recursos naturais. Também dedicou parte do seu desfile para homenagear o antropólogo Darcy Ribeiro, defensor das causas indígenas e autor de uma vasta produção bibliográfica sobre a cultura brasileira e sobre os povos originários. 

A Unidos de Vila Maria entrou no desfile com o samba-enredo que faz referências a desfiles antigos, ao bairro e à própria história com o tema Vila Maria. Minha Origem. Minha Essência. Minha História! Fonte de Amor Muito Além do Carnaval. A apresentação da agremiação, fundada em 1954 e com sede no bairro Jardim Japão, se sustentou sobre os pilares da origem, da essência, da história e dos feitos da escola para além das atividades carnavalescas.

Kindala! Que o amanhã não seja só um ontem com um novo nome é o tema da Rosas de Ouro na busca por respeito e igualdade racial. A resistência negra através dos tempos foi retratada em um manifesto racial no sambódromo. A proposta é mostrar desde a ancestralidade até os dias de hoje, e para agregar algo atual, foi inserida a frase “que o amanhã não seja só um ontem com um novo nome”, que é uma referência à música AmarElo, do Emicida.

A Tom Maior levou para o sambódromo este ano Um Culto às Mães Pretas Ancestrais que aborda o maternar espiritual, através dos pilares: criação, ensinamento, guia, força, respeito e devoção. O enredo mostrou ao público que, tal como as mães, a África também simboliza o nascimento, a concepção da vida humana a origem de tudo.

A escola que fechou o primeiro dia de desfiles, já ao amanhecer, foi a Gaviões da Fiel, com o samba-enredo Em Nome do Pai, dos Filhos, dos Espíritos e dos Santos… Amém!. O enredo fala sobre a edificação da humanidade através da fé e propõe uma reflexão sobre a intolerância religiosa.

Segunda noite

A segunda noite no Anhembi, foi aberta pela Estrela do Terceiro Milênio, que homenageou os palhaços, humoristas e a alegria com o samba “Me dê sua tristeza que eu transformo em alegria! Um tributo à arte de fazer rir”. A escola do Grajaú, na Zona Sul de São Paulo, fez um desfile cheio de palhaços e outras figuras engraçadas.

Abriu com uma bela alegoria sobre a repressão racista com uma família de negros em preto e branco se tornando colorida aos poucos, pelas mãos do humor. Teve a presença do humorista Marcelo Adnet, representando um bobo da corte, sempre com seu hilário humor político. A Estrela do Terceiro Milênio terminou sua estreia na elite do carnaval paulistano com um tributo a Paulo Gustavo, morto em 2021. 

Foto:Paulo Guereta / SECOM

A noite ainda teve uma homenagem ao sambista Bezerra da Silva e o samba dos marginalizados. Cantado pela Acadêmicos do Tucuruvi, o enredo “Da Silva, Bezerra. A voz do povo!” cita samba de malandro contra a fome e a opressão. O enredo fez relação entre a obra do sambista e a vida dos brasileiros das favelas, com representações de trabalhadores e figuras como ‘presidente caô’ com chapéu de jacaré.

A comissão de frente reproduziu uma favela antiga, com os bailarinos representando velhos sambistas dos tempos de origem do músico. Uma das alas “A rua como seu teto”, lembrou a época em que Bezerra da Silva foi morador de rua em Copacabana, no Rio. Um dos carros lembrou os “três malandros”, reunião de Bezerra da Silva, Moreira da Silva e Dicró, uma paródia brasileira dos “três tenores” Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti.

A Mancha Verde venceu o Carnaval de SP em 2022 e voltou com força. A sanfona se misturou ao samba assinado por Edinho Gomes e Gilson Bernini para a atual campeã, que neste ano homenageou o sertão pernambucano, o xaxado e as aventuras de Lampião e a influência de Luis Gonzaga.

A escola defendeu o enredo “Oxente – Sou Xaxado, sou Nordeste, sou Brasil”. Além da reverência a Gonzagão, a escola chamou a atenção por trazer o cangaço de Lampião, tratado como bandidagem pelos governos da época, como uma parte heróica da história nacional. Familiares do líder cangaceiro e de Maria Bonita estiveram numa alegoria do desfile. Expedita Ferreira, a única filha do cangaceiro, foi destaque no segundo carro.

Foto:Paulo Guereta / SECOM

O mérito da Império de Casa Verde foi mostrar quantos ritmos e gêneros musicais espalhados pelo mundo tiveram origem no tambor africano. Ela cantou sobre a importância dos tambores e do batuque na história da música brasileira, com o enredo “Império dos tambores – Um Brasil afromusical”. A quarta escola do segundo dia contou uma história desde os ritmos da África até as periferias de São Paulo e do Rio

Em vez de retratar o sofrimento causado pelos navios negreiros, a segunda alegoria mostrou uma embarcação trazendo ao novo mundo a riqueza dos ritmos africanos. Daí, chega à s periferias brasileiras, com um carro que retratava os bailes funk de São Paulo e do Rio.

Foto:Paulo Guereta / SECOM

Com o tema Yasuke, o primeiro samurai moçambicano do Japão, a Mocidade Alegre espera não só contar a história milenar e homenagear culturas tão distintas, como a negra e a oriental, mas também enaltecer a luta diária de jovens de comunidades pobres para vencer desigualdades. Yasuke chegou em 1579 ao Japão, escravizado pelos jesuítas portugueses, e virou um herói cultuado até hoje pela cultura japonesa, prestes a se tornar filme em Hollywood.

A escola do bairro do Limão, na zona norte da cidade fez um paralelo da saga de Yasuke com a luta dos jovens negros no Brasil atualmente. O último carro mostrou os “samurais da quebrada”, jovens negros que vencem lutas diárias por justiça e sobrevivência nas periferias do Brasil.

Também desfilou a Águia de Ouro, com o tema “Um pedaço do céu”, que fala de sonhos, superação e esperança. A Águia percorreu a avenida com enredo sobre superação e otimismo, temas mais abstratos que percorreram momentos idílicos e evitaram a crítica social. As 20 alas retrataram momentos que nos levam aos céus e que nos inspiram ou nos dão prazer.

Em outra homenagem nordestina, a Dragões da Real também acrescentou o timbre de sanfona na abertura de seu samba-enredo, que homenageou João Pessoa, a capital da Paraíba e “porta do Sol das Américas”. Com o tema “Paraiso Paraibano — João Pessoa, a Porta do Sol das Américas” o desfile começou com uma grande festa junina e falou das festas e religiosidade da bela capital paraibana.

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