Teto com bandas limita crescimento dos investimentos

Nesse “modelo”, a despesa poderá aumentar até 70% do incremento real da receita, mas terá um aumento real limitado por uma banda que varia de 0,6% a 2,5% ao ano.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

No dia 30 de março, a equipe liderada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou ao público o arcabouço fiscal tão aguardado. O arcabouço foi lançado perto do governo celebrar os primeiros 100 dias de governo. É possível fazer uma avaliação no essencial positiva desse período: retomada da política externa independente (incluindo aí a política de integração latino-americana), recuperação dos mecanismos democráticos, retomada de programas sociais, tais como a recuperação da política de aumento real do salário mínimo, a reimplantação e ampliação do Bolsa Família, relançamento do programa habitacional “Minha Casa Minha Vida” e do programa “Mais Médicos” e, grande novidade, lançamento do programa de reindustrialização, a começar, corretamente, pelo complexo industrial da saúde

Como o conjunto do plano está sendo apresentado em dose homeopática, ainda não é possível uma análise mais completa do seu conteúdo. Mas, pelo que foi divulgado até agora, já dá para ter alguma ideia. Registre-se que houve alguns avanços em relação ao regime fiscal anterior, o chamado teto de gastos, a saber: o “ajuste fiscal” seria feito, sobretudo, pelo aumento da receita, e não, como a ortodoxia monetarista costuma fazer, pelo corte da despesa; isso permite o sistemático crescimento real da despesa; o investimento terá um “piso”.

Arcabouço é teto de gastos com bandas

Mas, apesar da promessa de que seu objetivo maior seria abrir espaço para o investimento público e o gasto social, verdadeiras obsessões do presidente Lula, esses avanços não garantem sequer os programas lançados até agora porque não anulam a essência do “teto de gasto”, porquanto mantêm como objetivo central superar o déficit e gerar superávit primário a fim de estabilizar a relação dívida/PIB. Será, na verdade, o “teto com banda”, ou seja, o “teto” com alguma flexibilização. É a própria equipe do ministro que o admite, quando, em uma das planilhas, afirma: “O atual teto de gastos passa a ter banda com crescimento real da despesa primária entre 0,6% a 2,5% a.a. (mecanismo anticíclico)”.

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Nesse “modelo”, a despesa poderá aumentar até 70% do incremento real da receita, mas terá um aumento real limitado por uma banda que varia de 0,6% a 2,5% ao ano. Ou seja, deverá crescer, em termos reais, no mínimo a 0,6% ao ano, mas, no máximo, a 2,5%. Isso significa que se, em determinado ano, os 70% redundarem num aumento real da despesa acima de 2,5%, valerá este último “teto”. É um limite, obviamente, muito estreito. Tanto os 70% quanto os 2,5% deveriam ser bem maiores para dar conta das necessidades de reconstrução da economia. A situação se agrava se o governo, em determinado ano, não cumprir a meta de superávit primário: à moda de castigo, o crescimento da despesa baixaria para 50%.

Imaginemos um exemplo: caso a receita pública real do país aumentasse em determinado ano em 10%, a aplicação da primeira regra, ou seja, o aumento da despesa em 70% do incremento da receita, resultaria em um aumento de 7%. No entanto, a segunda regra reza que o limite é um crescimento de 2,5%. Neste caso, então, se excluiria 4,5% do aumento da despesa.  

Despesa pública cresceu mais em Lula I e II   

Para efeito de comparação, os dois governos anteriores de Lula realizaram um aumento médio da despesa, em termos reais, de 5,2% ao ano. E, agora, a reconstrução nacional, depois do desmonte bolsonarista e dos nove anos de déficit primário (nesse período, só houve superávit primário, e assim mesmo de forma pontual, devido a receitas extraordinárias, num único ano, o de 2022: R$ 50,1 bilhões) e de estagnação ou retração da economia, a necessidade da despesa pública e, dentro dela, do investimento é muito maior do que naquela época.

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O professor David Deccache, da UnB, realizou cálculos preliminares sobre o que ocorreria se se houvesse adotado a banda de 2,5% desde 2002, que é o melhor cenário. Sua conclusão: “No total, o país, em 20 anos, teria perdido R$ 8,8 trilhões de gastos públicos. Perderíamos praticamente um PIB em gastos públicos em vinte anos. Isso significa que o nosso Estado seria muito menor. Teríamos menos universidades e hospitais públicos, menos investimentos públicos, menos salário mínimo, menos servidores públicos – e com menores salários – e, provavelmente, um crescimento do PIB ainda menor que o observado. Lembrem: cenário otimista”.

Evidentemente, ter uma “banda” de 2,5% é melhor do que zero%, como era no natimorto teto de gastos anterior. Mas, na prática, não foi zero%: como o governo Bolsonaro furou o teto em todos os anos, praticou-se no período uma “banda” de 2%. Então, na realidade, quase não haverá aumento da “banda”. Essa ligeira flexibilização não está à altura das necessidades do momento; nem sequer das medidas econômicas e sociais adotadas até agora. Não estamos num momento qualquer da vida nacional. Estamos num momento de reconstrução precisamente quando a crise econômica se agrava.

Vejamos agora a banda de 0,6%. Se ocorrer uma forte crise e a receita pública despencar e a despesa real crescer apenas 0,6%, o gasto público não será anticíclico, ou seja, não terá o crescimento necessário para realizar um nível de gasto social e de investimento capaz de alavancar a economia e superar a crise.  

Objetivo é transitar de déficit primário para superávit

Mas, como indicamos antes, o objetivo é transitar de uma situação de déficit primário, que vem desde 2014, para uma outra de superávit primário, com a seguinte evolução para as metas: 2023: -0,50%; 2024: 0%; 2025: +0,50%; 2026: +1%. A banda seria de 0,25 ponto percentual para cima ou para baixo. Assim, essa programação zeraria o déficit no ano que vem e, a partir do ano seguinte, começaria a gerar superávit.

Essa meta é mais do que demandam os próprios representantes da banca e dos rentistas, vulgarmente apelidados de “mercado”. Segundo o próprio material distribuído pelo ministro no dia da divulgação do arcabouço, as “expectativas do mercado” em 24 de março eram as seguintes: 2023: -1,02%; 2024: -0,80%; 2025: -0,50%; 2026: -0,27%. Ou seja, seria mantida uma situação deficitária durante todo o período do governo Lula. Situação mais favorável do que a programada pela equipe de Haddad.    

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Com isso, a equipe econômica pretende, inicialmente, estabilizar a relação dívida/PIB em 2026 para depois começar a declinar. A evolução dessa relação no cenário 1 seria a seguinte: 2023: 75,11%; 2024: 76,17; 2025: 76,43%; 2026: 76,54%.  Para isso, usa como parâmetro a dívida bruta do governo geral. Realiza-se um enorme esforço fiscal para garantir que, ao final do período, essa relação dívida/PIB não ultrapasse 76,54%.

Pergunta-se então: quem estabeleceu que o limite dessa relação deve ser esse? Qual a fundamentação teórica? Vejam a realidade de outros países: Índia – 89%; União Europeia – 90%; Zona do Euro – 97%; Reino Unido – 97%; França – 115%; Canadá -118%; Espanha – 120%; Estados Unidos – 127%; Portugal – 135%; Itália – 150%; Japão – 259%.

Além disso, como indicamos antes, adota-se como parâmetro a dívida bruta. Por que não a dívida líquida? Esta seria um parâmetro mais apropriado porquanto se trata da verdadeira dívida, já que o adequado para medir a verdadeira dimensão da dívida é descontar da dívida bruta as reservas disponíveis, tanto as cambiais quanto as existentes em reais no Tesouro. Segundo cálculos do economista André Lara Resende, a relação dívida (líquida)/PIB encolheria para 45%. Ademais, como nossa dívida é basicamente em reais, moeda que o governo nacional emite, este pode, em determinadas circunstâncias, como uma situação com capacidade ociosa, monetizar parte da dívida.

Investimento deve estar livre de peias

O limite estreito para o aumento da despesa pública termina limitando a expansão não apenas do gasto social, mas também de seu componente mais dinâmico, que é o investimento, base do aumento da capacidade produtiva da economia – portanto, principal alavanca do crescimento da economia.

É certo que o arcabouço fixa corretamente um “piso” para o investimento direto da União, que é de R$ 75 bilhões, mas, como ele faz parte da despesa, também estará limitado por sua estreita banda. É certo que está um pouco acima da média do período recente, que era muito baixa, mas está longe das necessidades do momento atual, momento de reconstrução, tarefa principal assumida pelo governo Lula.

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A economia nacional, depois de nove anos de estagnação ou retração e desmontada pelo ultraneoliberalismo do fascismo bolsonarista, mergulhou em nova recessão desde o último trimestre do ano passado. A quebra de um gigante do varejo brasileiro (as Lojas Americanas) e as crescentes dificuldades de outros gigantes (as Casas Bahia, a famosa varejista Marisa e a até a concessionária Light) são apenas a ponta do iceberg da situação gravíssima em que, devido aos juros elevados, encontram-se as empresas brasileiras. Todas altamente endividadas.

Nessa situação, o esforço para sair da crise e deflagrar a reconstrução nacional exige muito mais investimento. Na verdade, a âncora, em lugar de convergir para o superávit primário e a estabilização da relação dívida/PIB, deveria convergir para o nível de investimento.

Para cumprir o seu papel de alavanca do desenvolvimento, o investimento deveria estar fora de qualquer teto; não deve estar limitado por qualquer peia. Deveria ele próprio ser a “âncora”, a variável determinante, a “variável independente”.

O arcabouço avança um pouco nessa direção, ao estabelecer que o “resultado primário acima do teto da banda permite a utilização do excedente para investimentos”. Mas é insuficiente para as necessidades do momento, incorporadas pelo Presidente Lula, quando insiste em baixar os juros como forma de incrementar os investimentos e deflagrar a reconstrução nacional.

Diz o ditado popular que em casa que não tem pão, todos brigam e ninguém tem razão. Do jeito que a banda do aumento da despesa está proposta, abrirá uma disputa entre o gasto social e o investimento público. É uma verdadeira armadilha: com o fim do teto anterior, os gastos com educação e saúde retornam à regra constitucional anterior, que estipula 18% da receita da União proveniente de impostos para a educação e o valor do ano anterior acrescido da variação nominal do PIB para a saúde. Além disso, a Previdência tem regras próprias de correção das aposentadorias e pensões – a qual vincula-se ao reajuste do salário mínimo.

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Esses mecanismos de proteção do gasto social são mais do que justos, além de fortalecerem o mercado interno, mas, como passariam a crescer pari passu com o crescimento da receita e, portanto, acima do crescimento da despesa e como estão dentro do teto, ocupariam um espaço crescente dentro da estrutura de gastos, limitando as possibilidades de crescimento do investimento em infraestrutura e no aumento da capacidade produtiva. Para que não “briguem” o investimento e o gasto social (que também é investimento, segundo Lula), ambos deveriam estar fora de qualquer teto. 

Os limites impostos pelo arcabouço à expansão do gasto e do investimento público, além de não ajudarem a necessária expansão da economia, como base da reconstrução nacional, não garantem que o Banco Central flexibilize a política monetária restritiva praticada pela equipe de Roberto Campos Neto.

Apesar de suas recentes declarações de simpatia pelo arcabouço (“Reconhecemos o esforço”, “Nossa avaliação é superpositiva”, “Outro ponto importante acho que é reconhecer o grande esforço que o ministro Haddad tem feito), nada garante que essa “simpatia” o sensibilizará o suficiente para uma necessária e forte redução da taxa de juros; se depender dele, no máximo, realizará alguma redução.

Não é à toa que, depois de exigir um “ajuste fiscal” como condição para baixar a Selic, agora diz que a regra fiscal não tem uma relação mecânica com os juros. Ainda temos muita luta pela frente para derrubar os juros. Para isso, temos que isolar os rentistas. Acerta o economista Paulo Nogueira Batista Jr quando sugere que, ao contrário, a reconstrução nacional exige, além de outras medidas, expansão fiscal (e para isso, repetimos nós, o investimento público deve estar fora de qualquer limite), juros básicos baixos e crédito barato alavancado pelos bancos públicos. 

Como aumentar a receita para cobrir o déficit e gerar superávit

E como cobrir o déficit estimado e gerar superávit primário? Como registramos, a ênfase será corretamente no aumento da receita, e não no corte de gasto. Haddad declarou que não aumentará impostos. Algumas iniciativas começaram a ser divulgadas. Deverá cobrar de quem deveria pagar e não paga, além de cortar desonerações fiscais.
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Entre essas medidas, está a tributação de apostas esportivas eletrônicas; em lugar de cobrar o IR apenas no resgate dos fundos exclusivos, que recebem aplicações dos “investidores” de renda elevada, a tributação passaria a ser feita duas vezes por ano, alinhando assim com os demais fundos;  ajustar a cobrança de Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL), com o objetivo de corrigir distorções que reduzem a arrecadação da União, no caso de empresas que têm benefício de ICMS e o utilizam para diminuir o pagamento do tributo federal. Isso antes da prometida reforma tributária.

Haddad também pretende diminuir as desonerações tributárias, que atingem o montante de R$ 457 bilhões por ano, dos quais, segundo a Anafisco, só R$ 141 bilhões se justificam econômica e socialmente.

Planeja, com essas medidas, arrecadar entre R$ 110 bilhões e R$ 150 bilhões em doze meses. São medidas, em princípio, corretas e seriam altamente bem-vindas se fossem para fortalecer o investimento público e o gasto social; no entanto, são destinadas a cobrir o déficit e gerar superávit primário a fim de bancar o pagamento dos juros da dívida pública com o objetivo de estabilizar sua relação com o PIB para depois declinar.

E a correlação de forças?

Há quem diga que não daria para fazer mais do que consta do “arcabouço Haddad”. Isso porque a correlação de forças não o permitiria. Respeito os companheiros que manifestam esse ponto de vista, mas gostaria de fazer duas ponderações: 1) a “leitura” da correlação de forças nem de longe é unânime; varia de acordo com a postura ideológica, a capacidade de decifrar a realidade e a sensibilidade para transformar essa capacidade em ação concreta – o fato de até os donos das finanças haverem manifestado uma expectativa de ajuste fiscal menor do que a proposta pela equipe de Haddad e de haverem batido palmas para o arcabouço pode ser um indicativo de que daria para fazer mais; 2) a correlação de forças é um dado objetivo da realidade, mas ela pode ser modificada por ações das forças sociais, sobretudo nos momentos de crise, em que intensifica a luta de classes – “importa sempre distinguir entre a revolução material das condições econômicas de produção (…) e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em uma palavra, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o resolvem” (Marx).

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