China no acordo Argentina/FMI: impondo reforma do sistema financeiro internacional

China desafia normas financeiras ocidentais ao intervir na dívida argentina, ampliando influência global.

Casa Rosada, sede da Presidência da Argentina | Foto: Wikimedia Commons

No dia 30 de junho, o governo argentino pagou uma obrigação com o Fundo Monetário Internacional (doravante, FMI ou Fundo) em renmimbi, que corresponde a 1 bilhão de dólares. Esse acontecimento revela uma questão pouco percebida: a China vem impondo uma restruturação do sistema financeiro internacional.

Há pelo menos duas décadas a Argentina mantém uma relação bastante turbulenta com o FMI. Durante os governos Nestor Kirchner (2003-2007) e Cristina Kirchner (2008-2015), a Argentina foi alvo constante das críticas do FMI, principalmente em razão das escolhas de política econômica desses governos. Nesse período o país permaneceu praticamente sem acesso ao sistema financeiro internacional, em razão da moratória da dívida externa decretada pelo então presidente interino Adolfo Rodríguez Saa em 23 de dezembro de 2001.

A vitória de Mauricio Macri nas eleições argentinas de 2015 significou o retorno das políticas neoliberais e a reaproximação com o FMI que, sob os aplausos da haute finance, facilitou o retorno do país ao mercado financeiro internacional. Com isso, o país entrou num ciclo de endividamento externo sem paralelo na história do país[i]. O governo Macri fez de tudo para agradar os especuladores, tanto que em março de 2016 fez um acordo com os “fundos abutres” que cobravam dívidas da Argentina na justiça dos Estados Unidos. Mesmo com todo esse afago, Macri precisou novamente dos empréstimos do FMI, efetuando, em 2018, o maior acordo da história da Instituição: um acordo standy-by de 50 bilhões de dólares, de três anos, correspondente a cerca de 1.110% da cota da Argentina no Fundo. No acerto, o governo argentino tinha permissão para utilizar de imediato 15 bilhões de dólares. Com humor involuntário, o FMI disse que o acordo foi feito “(…) sob medida para a situação enfrentada pelo povo argentino”.[ii]

O governo Macri deixou a Argentina em crise econômica gravíssima. Em quatro anos de mandato, o PIB apresentou uma retração em três anos. Macri foi derrotado, em 2019, por Alberto Fernandez que interrompeu os repasses firmados pelo acordo de 2018 e abriu nova rodada de negociações, fechando um novo acordo em 22 de janeiro de 2022, que previa o desembolso de US$ 44 bilhões. Num primeiro momento, o acordo proporcionou um alívio à Argentina, ao mesmo tempo em que o governo preservou um razoável grau de autonomia quanto a sua política econômica, pois conseguiu evitar as chamadas reformas estruturais pró-mercado que normalmente o Fundo impõe como requisito para os acordos. Entretanto, a situação da economia permanece muito difícil. O país apresenta inflação anual acima de 100% desde fevereiro deste ano, e o crescimento econômico para 2023 não deve passar de 0,2%

Na realidade, as dificuldades econômicas da Argentina ocorrem principalmente porque o país passa pela pior seca dos últimos sessenta anos, com consequências devastadoras sobre sua agricultura, que é fonte importante das exportações do país: um prejuízo estimado em 20 bilhões de dólares. Por isso, o governo argentino insiste em reformular as metas acordas em 2022, já que a magnitude da seca era algo imprevisível e efetivamente impede que o país cumpra seu compromisso com o FMI. É importante enfatizar que, as dificuldades advindas da seca são reconhecidas pelo Fundo, mas apesar disso, como é de praxe, sua equipe técnica continuou forçando a adoção de medidas econômicas mais duras, dificultando a conclusão da quinta revisão do acordo.

Assim, causou surpresa que no dia 30 de junho, o governo argentino pagou uma obrigação com o FMI em renminbi, equivalente a 1 bilhão de dólares. A princípio, esse recurso estava disponível para financiar importações de mercadorias chinesas. Desde 2016, o renmimbi faz parte da cesta de moedas que compõe os Direitos Especiais de Saque (SDR, na sigla em inglês) e por isso pode ser usada para que um país possa pagar suas obrigações com o Fundo. Foi o que a diretora de comunicações estratégicas do FMI, Julie Kozack, lembrou quando questionada[iii]. Evidentemente, Pequim foi consultada e concordou com o pagamento. Além disso, o representante da China no FMI, Zhengxim Zhang, informou que caso não se alcançasse um novo acordo, Pequim permitiria que o qoverno argentino utilizasse 130 bilhões de renmimbis –  resultado de um acordo de swap cambial entre os bancos centrais – para pagar todos os vencimentos com o Fundo[iv]. Isso tem implicações relevantes, como veremos mais adiante.

É obvio que isso causou desconforto no staff do FMI, mas surtiu efeito. No último dia 28, o FMI anunciou que chegou a um acordo sobre a quinta e sexta revisão do programa, e após a aprovação do conselho executivo do Fundo na segunda quinzena de agosto, a Argentina terá acesso a cerca de 7,5 bilhões de dólares. Três dias depois, Sergio Massa, Ministro da Fazenda argentino, disse que o próximo desembolso para o Fundo de 2,7 bilhões de dólares também será feito em renmimbi e por meio de um empréstimo de emergência do Banco Latino Americano de Desenvolvimento.

A intervenção de Pequim no caso da dívida da Argentina é algo que já foi observado em outras ocasiões e revelam mais do que a ajuda financeira entre dois países com boas relações. O governo chinês vem reduzindo o poder de influências das instituições financeiras multilaterais, como credores dos países em desenvolvimento, ao conceder empréstimos em larga escala para vários países sem a adoção de condicionalidades e sem restrições políticas. A China emergiu como “emprestador de última instância”, negociando os empréstimos ao seu modo. E isso passou a ser um transtorno para o Ocidente porque caberia ao FMI salvaguardar a estabilidade financeira global, segundo as regras estabelecidas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Além disso, o governo chinês vem insistindo em participar das negociações de restruturação da dívida, como no episódio da Zâmbia que entrou em default em outubro de 2020. Em janeiro de 2023, Pequim pediu uma reunião com o FMI e Banco Mundial para discutir a restruturação da dívida da Zâmbia, que tem justamente a China como seu maior credor.[v]

Nesse sentido, a entrada de Pequim nas mesas de negociações para discutir diretamente com países devedores não é trivial. A China é o país que mais empresta ao mundo em desenvolvimento; uma potência financeira – basta lembrar que os 4 maiores bancos do mundo em ativos são chineses – que vem aumentando seu poder a medida que o renmimbi ganha força na economia internacional. O detalhe é que Washington não sabe como enfrentar a assertividade chinesa. Aqui vale lembrar uma história relativamente recente.  A crise asiática de 1997-1998 foi gerida principalmente pelas autoridades monetárias estadunidenses. O Japão propôs desempenhar um papel mais ativo na concessão de ajuda financeira, mas foi negado pelos Estados Unidos, entendendo que isso significaria reduzir sua influência e a do FMI na região asiática.

A questão é que, a China, diferente do Japão, não é um protetorado militar, e não está disposta a sacrificar seus interesses pela pressão do imperialismo.


[i] Cf. Freitas, A. J.; Fernandes, M. P. “Sobre fadas e confiança: Um ano de governo Macri”. Brazilian Keynesian Review, v. 3, p. 124-131, 2017.

[ii] “IMF Executive Board Approves US$50 Billion Stand-By Arrangement for Argentina”, 20 de jun. 2018. Disponível em <https://www.imf.org/en/News/Articles/2018/06/20/pr18245-argentina-imf-executive-board-approves-us50-billion-stand-by-arrangement>. Acesso em: 21 de jul. 2023.

[iii] IMF. Transcript of IMF Press Briefingi.u23, 13 de jul., 2023Disponível em: https://www.imf.org/en/News/Articles/2023/07/13/tr071323-transcript-of-imf-press-briefing>. Acesso em: 20 de jul. 2023.

[iv] “China threatens the IMF to take over Argentina’s debt if it does not negotiate”, Euro ES Euro, 9 de jul. 2023. Disponível em: <https://www.imf.org/en/News/Articles/2023/07/13/tr071323-transcript-of-imf-press-briefing>. Acesso em: 28 de jul. 2023.

[v] “How China changed the game for countries in default”, Financial Times, 13 de abr. 2023. Disponível em: <https://www.ft.com/content/19add278-aa83-45f8-a84f-12750f32258f>. Acesso em: 22 de jun. 2023

Autor