81 anos de Paulinho da Viola e seu feitiço maduro

Homenagem a Paulinho da Viola e à importância da música popular brasileira na resistência à ditadura militar

Foto: Jorge Bispo para OGlobo

A gente nem precisa falar que ele é um dos nossos melhores compositores do Brasil. Isso poderia ser dito em relação a muitos ótimos da música popular brasileira. O que precisa ser dito é que ele não é “Um compositor”. Ele é uma soma de gerações de compositores da Velha Guarda do samba. Atualizados em nova forma e composição. Mas isso ainda não é ser exato, preciso. Visto assim do alto, para melhor vê-lo, a presença de Paulinho seria uma reencarnação de sambistas que se foram, se assim compreendemos as folhas secas que ressurgem no verde, ou melhor, folhas secas que se tornaram flores azuis, vermelhas, brancas, negras, por fim, as gerações que voltam reinventadas, ou como se Nelson Cavaquinho, Cartola, Wilson Batista, Nelson Sargento, Candeia, sem deixarem de ser eles mesmos fossem um outro, que vem a ser um compositor nascido hoje. A alma dessa gente renascida.

Mas como é que Paulinho faz esse feitiço? A gente nem precisa consultar a discografia, basta anotar o que vem à memória. Minha vez de sorrir chegou agora, quem perde é quem chora, Nelson Sargento. Duas horas da manhã, contrariado espero pelo meu amor, Nelson Cavaquinho. Cego é quem vê só aonde a vista alcança, Candeia. Pra quê, pra quê mentir, se tu ainda não tens esse dom de saber iludir? Noel Rosa. Quem me conhece, passa por mim, jogando piada, sorrindo, Geraldo Pereira. Fim da tempestade, o sol nascerá, Cartola e Elton Medeiros. E tantos nos vêm e deixamos escapar que a omissão de um nome é crime: Carlos Cachaça, Zé Kéti, Casquinha, Aniceto, Manacéa, Monarco, Zé da Zilda, Mijinha… que as reticências nos defendam.

Poderia ser dito que regravar velhos sambas é simples: basta pôr a voz e gravar. A resposta a isso, sentimos a esta altura, quase nos cala. Falar de um compositor de música somente com palavras não é fala precisa, porque teríamos de fazer ouvir a quem nos lê: – “Ouçam Duas horas da manhã, é Nelson Cavaquinho e é ao mesmo tempo Paulinho, o mesmo de Sol e pedra e de Coração leviano”. Porque falar que ele transforma composições da Velha Guarda em obras suas, ou que ele busca na Velha Guarda a própria voz cantada antes, não é ser claro para quem nos lê sem a experiência da sua música. Façamos então um pacto com o mais simples: falemos do tempo de Paulinho da Viola refletido em 2 momentos da nossa própria vida.

Quando surgiu “Foi um rio que passou em minha vida”, éramos estudantes numa sexta-feira à noite, numa serenata em Maria Farinha. Achávamos então que a revolução socialista era a coisa mais natural do mundo. E por ser tão natural, nada demais também  que eu ouvisse 41 vezes seguidas, contínua e incansavelmente foi um rio, foi um rio, foi um rio… Naquele ano – e por que não ainda? – todos éramos Paulinho, nessa estranha empatia, mistura de identidades que a verdadeira arte produz. Todos nós repetíamos, e repetimos que “meu coração tem mania de amor, amor não é fácil de achar”. À maneira de cantar, gritávamos esses versos então.

Depois, morando na Pensão Princesa Isabel, no centro do Recife, Paulinho era Simplesmente Maria. “Na cidade, é a vida cheia de surpresa, é a ida e a vinda, simplesmente, Maria, Maria, teu filho está sorrindo, faz dele a tua ida, teu consolo e teu destino, Maria…”. Nesse tempo, sempre compreendíamos o “faz dele a tua ida” como um “faz dele a tua ira”. Enquanto subíamos a escada para um quartinho isolado lá no alto, da televisão da sala subia a música, tema de uma telenovela. Ela nos lembrava sempre que estávamos sozinhos e sem mãe, cujo nome também era Maria. À hora dessa música sempre esperávamos algum golpe traiçoeiro da polícia que queria nos matar.

Então houve “Para um amor no Recife”. Entre a repressão da ditadura Médici e a resistência ergueu-se um poema belo, quase autônomo da melodia: “A razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você”. Que canção. Ela só faz melhorar até hoje.

Um dia desses notei que a história política do Brasil poderia ser contada pela história da sua música popular. E como sempre acontece em qualquer descoberta, essa conclusão geral me chegou pela insistência, persistência e resistência de alguns casos particulares, individuais, que traziam em si o dom universal e reclamavam lugar. Assim foi, por exemplo, em páginas de Soledad no Recife, em “A mais longa duração da juventude”, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a canção dos tropicalistas, de Chico Buarque, Tom Jobim.  Assim foi quando escrevi sobre Geraldo Vandré, sobre Roberto Carlos… assim tem sido em textos mais ambiciosos, escritos sob a música íntima que me acompanha ao narrar o mundo submerso da infância. Que nos acompanha a todos quando recuperamos vidas, melhor dizendo.   

Escrevo isso agora a partir de uma revelação do livro A vida quer é coragem, de Ricardo Batista, conforme artigo de Alberto Villas: 

“…a uruguaia Maria Cristina Uslendi conta que em outubro de 1971, toda vez que voltava das sessões de tortura encontrava Dilma de braços abertos ‘me amparando, me ajudando a usar a latrina quando não tinha forças, me dando sopinhas de colher na boca, me cedendo a parte de baixo do beliche e pondo na vitrolinha de pilhas as melhores músicas da MPB’.
Cristina conta que Dilma sempre pedia a ela que prestasse muita atenção à letra de ‘Para um amor no Recife’, uma canção de Paulinho.”

O quanto isso é verdadeiro. O quanto a música popular foi remédio, cura e perdição da maioria dos brasileiros que estiveram contra a ditadura. O quanto devemos a esses artistas da canção, numa dívida que eles próprios não alcançam o tamanho, mas que é, ao mesmo tempo, motivo de sufoco e prisão para eles, em razão do papel que ganharam à sua revelia.

Queremos dizer, enfim: viva Paulinho da Viola, viva a felicidade dos seus 81 anos. Viva o samba!

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