Leci fala da união da música e da política: “Não adianta só cantar, tem que agir”

Reproduzimos entrevista publicada pelo jornal O Globo. A deputada estadual do PCdoB/SP diz que sempre brigou por quem não podia falar, mesmo nas suas letras

Leci Brandão. Foto: reprodução Facebook

A deputada estadual do PCdoB/SP Leci Brandão, às vésperas de completar 80 anos e em seu quarto mandato de deputada na Assembleia Legislativa de São Paulo falou ao jornal O Globo sobre seus 50 anos de carreira, de como sempre aliou a música e a política; sobre os caminhos que desbravou superando preconceitos e afirmando justiça.

Leci foi a primeira mulher a integrar a ala de compositores da Mangueira e a segunda deputada negra da História da Assembleia Legislativa de São Paulo. Também a primeira cantora famosa do país a se pronunciar como lésbica.

Ela afirma: “Sempre digo às pessoas: ´Eu tenho lado`. Pega os meus LPs, desde o início… Sempre me coloquei, defendi os menos favorecidos nas minhas letras, peguei temas ousados, falei de situações, lá em 1970, que hoje estão nas pautas. Sempre briguei por quem não podia falar. Isso acabou sendo observado pelas pessoas, o que me deixa grata. Meninas pretas me dizem que estão sendo candidatas porque me viram chegar lá”.

Confira a íntegra da entrevista publicada nesta quarta. 18, no jornal O Globo.

Pela primeira vez em 50 de carreira, Leci Brandão precisou segurar o microfone com a mão esquerda. Também teve que aposentar, por ora, o pandeiro e o tantan, seus fiéis companheiros de show. É que no mês passado, durante um voo, a cantora e compositora de 79 anos percebeu algo estranho com a mão direita.

Quando a comissária ofereceu o lanche, não conseguiu mexer o punho para apanhá-lo. Desembarcou direto para o hospital, onde fez exames que consumiram lhe R$ 2 mil. Seu plano de saúde não era aceito ali.

Os resultados não identificaram a causa do problema. Ela desconfia que pode estar ligada ao movimento repetitivo, o “tum tum tum, tá tá tá”, com que “castiga” o couro dos instrumentos. Segue investigando. Uma ressonância está marcada para os próximos dias.

A forma com que a notícia circulou incomodou a cantora, que já tinha alarmado os fãs em maio, ao se submeter a uma angioplastia na perna.

— Disseram que tinha sido internada às pressas, parecia que estava morrendo. Fiquei triste, pessoas passaram mal de preocupação — conta Leci, relevando o que passou pela cabeça quando baixou no hospital no meio do ano: — “Meu Deus, será que meu prazo de validade está se esgotando e eu não estou percebendo?”.

Quem viu os últimos shows da cantora no Rio — firme ao lado de Criolo, em apresentação, dias atrás, no Museu do Amanhã, e na Flup, na sexta-feira passada — teve certeza de que não. Os planos também são de continuação. Prestes a completar 80 anos em 2024, ela deve celebrar com um disco novo, em que reunirá sucessos e convidados.

Nesta entrevista, a primeira mulher a integrar a ala de compositores da Mangueira e a segunda deputada negra da História da Assembleia Legislativa de São Paulo (atualmente, exerce seu quarto mandato) lembra o boicote sofrido por causa de suas letras carregadas de política. Conta que foi aconselhada a cantar canções “mais leves” e define o sucesso de “Zé do Caroço”, hino das rodas de samba, como “coisa de orixá”.

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Primeira cantora famosa do país a se pronunciar como lésbica, Leci explica ainda por que optou por levar uma vida amorosa discreta e revela que jamais apresentou uma namorada à família.

Como está a mão agora?

Agora, melhor. Não conseguia segurar nem um garfo, minha mão estava anulada. Não fiquei com ela parada para não atrofiar. E não foquei no pensamento de que nunca mais ia escrever ou tocar. O médico recomendou que eu ficasse sem tocar pandeiro e tan tan. Esse movimento repetitivo de “tum tum tum, tá tá tá” pode ter causado uma zebra. Vou fazer uma ressonância, colocar a mão dentro de um tubo para investigar.

O que está preparando para celebrar os 80 no ano que vem?

Penso em um disco pegando os principais sucessos e em convidar pessoas a participar. Não pode passar em branco, né? Acredito também que tenha um show, mas nada grandioso. Nunca fui dada a grandes festas. Sou de outra linha, mais quietinha. Dá para ser feliz celebrando com a família e os amigos.

Como se sentiu sendo ovacionada pelo público jovem em shows recentes?

Emocionada. Antes do problema da mão, fiz uma angioplastia na perna e consegui sair dessa bem. Houve um momento no hospital em que pensei: “Meu Deus, será que meu prazo de validade está acabando e não estou percebendo?”. Passa um monte de coisas na cabeça. Tenho recebido muito carinho e homenagens. Espero ter saúde para continuar caminhando.

O fato de a senhora ter incluído nos shows “Encontros e despedidas”, música que não costuma estar no seu repertório, e que a senhora chorou ao cantar em um show no Teatro João Caetano, no Rio, em agosto, tem a ver com esse momento de, digamos, balanço geral da vida?

Amo essa música do Milton Nascimento e do Fernando Brant. É para dizer que a gente está aqui nessa alegria toda e tem que aproveitar. Porque não sabe o que vai acontecer amanhã. Digo: “Guardem esse momento”. Me recuperei e canto “me dê um abraço, venha me apertar, tô chegando”. Me transformo quando canto essa música.

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O mundo está estranho. Rio que transborda, lugar que seca, a terra está dando respostas. E as pessoas só querem saber de comprar. Ninguém mais conversa, tem tempo para ouvir o filho. É discórdia, violência, isso me apavora. Um exemplo: na fila para entrar no avião, tem gente que empurra, quer passar por cima. Ninguém viaja em pé, gente! Tem lugar para todos. É uma ansiedade, uma pressa…

A sua consagração demorou para acontecer, não é? Acha que teve o reconhecimento que merece ao longo de sua carreira musical?

Ultimamente, sim. Tem um público jovem, cantores, compositores, pessoas ligadas à cultura, aos movimento negros, indígenas, LGBTQIA+, mulheres e a população preta em geral que têm me dado muita resposta. E penso: “Será que fiz tudo isso mesmo?”.

Acho que o reconhecimento começou em 2012, quando fui enredo da Acadêmicos da Tatuapé, em São Paulo. Minha mãe, minhas sobrinhas, minha irmã, que faleceu, estava todo mundo lá. A escola tirou segundo lugar e subiu com o nosso enredo. Isso mexeu comigo. Nunca tinha tido uma votação como nas últimas eleições, mais de 90 mil votos.

Um reconhecimento também como agente da política…

Sempre digo às pessoas: “Eu tenho lado”. Pega os meus LPs, desde o início… Sempre me coloquei, defendi os menos favorecidos nas minhas letras, peguei temas ousados, falei de situações, lá em 1970, que hoje estão nas pautas. Sempre briguei por quem não podia falar. Isso acabou sendo observado pelas pessoas, o que me deixa grata. Meninas pretas me dizem que estão sendo candidatas porque me viram chegar lá.

Como enxerga o movimento de mulheres no samba, para o qual a senhora é uma das principais referências?

Está muito forte e bonito. Digo que elas podem muito mais, que são fortes, maravilhosas, independentes e fazem um trabalho musical muito bom.

É um caminho aberto a fórceps pela senhora, por Dona Ivone Lara, que enfrentaram muito machismo. És a primeira mulher na ala dos compositores da Mangueira. Mas não foi fácil, já que precisou escrever uma carta aos 40 homens, justificando os motivos pelos quais deveria ser aceita, não foi?

Sim. E tive que fazer um samba de quadra para eles aprovarem. Na minha carta, disse que a ala de compositores da Mangueira era uma universidade do samba. Aprendi muito ali. Tanto que o pandeiro de partido alto que toco aprendi vendo o (Jorge) Zagaia e o Pandeirinho tocarem. Eles sempre tiveram muito carinho comigo.

Lembro que quando saiu uma matéria no “O Lampião da Esquina” (jornal gay que circulou no Brasil entre 1978 e 1981), levaram para eles e disseram: “Olha aqui, a Leci está saindo nesse jornal…”. E eles: “O que tem? Leci é uma pessoa normal, trata a gente com carinho, não temos nada contra ela”.

A senhora se refere à entrevista em que revelou que era lésbica, certo?

Isso. Só quem lia aquele jornal era, como dizia na época, gay power. Eles me defenderam. Na minha vida, a palavra respeito vem em primeiro. Não tenho faculdade, então, a minha formação é feita com essas palavras: “Bom dia, boa tarde, boa noite, com licença, por favor e muito obrigada”. Coisas que mamãe me ensinou.

Em 1980, a gravadora rejeito “Zé do Caroço” por ser muito política, de um profundo olhar crítico sobre o país. A senhora bateu o pé e acabou na geladeira por cinco anos. Como foi aquele período?

É. Acharam as letras do repertório todo pesadas, políticas… Fui pra casa, peguei a máquina de escrever, fiz uma carta de demissão e entreguei na Polygram. Ninguém pede demissão de multinacional, né? Mas eu pedi. E fiquei cinco anos sem gravar.

Em 1985 gravou “Isso é fundo de quintal” que, desta vez, traz “Zé do Caroço” e lhe devolveu à fama, após cinco anos de ostracismo. Essa música emblemática, que fala do país de ontem e hoje, virou um hino nas rodas de samba. Como explicar um sucesso desse tamanho?

Isso é coisa de orixá. Porque, poxa, tive a maior dificuldade… Foi feita em 1978 e só gravei em 1985. O Art Popular gravou, o Revelação, a Mariana Aydar, o Seu Jorge… É também um reconhecimento espiritual. Nunca deixo de lado a minha fé e meus orixás, Ogum e Iansã, dois guerreiros, estão norteando o meu caminho. Passei pela umbanda, mas quando conheci Caboclo Rei das Ervas, casa de candomblé em São Gonçalo, foi que as coisas realmente se abriram para mim.

Durante muito tempo a senhora fechou os discos com pontos de macumba…

Sim. Naquela época em que fiquei cinco anos sem gravar, quase pirei. Estava mal, sem perspectiva de nada, pensando em desistir. Minha mãe falou: “Vamos conversar com seu Rei das Ervas”. E ele disse: “Minha filha, cuide do seu anjo da guarda porque que você vai retomar a sua carreira. Mas, antes, vai sair do Brasil”. E então recebi um convite para ir para Angola, num festival em Luanda, em 1984. Aí, em 1985, veio a oportunidade de gravar na (gravadora) Copacabana.

A senhora foi a primeira cantora famosa do Brasil a se pronunciar como mulher lésbica. Antes disso, gravou “As pessoas e eles”, uma das primeiras canções brasileiras a falar abertamente sobre homossexualidade. Como foi se assumir lésbica em 1978?

Foi uma coisa assim… Minha mãe era viva. Para uma pessoa que nasceu em 1922, os padrões são outros. Tanto que ela nunca falou sobre isso comigo, e eu nunca afrontei com isso, sempre tive uma vida muito normal.

Mas deve ter sido difícil não poder conversar… Nunca apresentou uma namorada à família?

Foi difícil, mas e a vida. Nunca apresentei. Não foi necessário. A gente podia viver um amor, mas sem precisar publicizar ou falar sobre isso. Principalmente, com a minha mãe e minha família. É uma questão de entender como foi a criação dela e a minha. Era um assunto meu.

Sempre fiquei na minha, tanto que nunca me hostilizaram na rua. Acho que quando você fala de uma situação que, às vezes, não é normal para a sociedade brasileira que você respeita, tem uma conduta, sabe? De respeitar o outro. Tenho que entender a cabeça dos outros e seguir minha vida. Hoje, ainda bem, tudo é normal. Cada um tem direito de amar.

Mas conseguiu viver seus amores?

Sim. E ninguém ficou sabendo quem era ou deixava de ser. Sempre vivi essa coisa de uma forma muito minha, sem afrontar as pessoas.

Por ser uma mulher preta, politizada, lésbica, fora dos padrões estéticos, enfrentou barreiras de todos os níveis. Abarca muitas questões na sua existência, no seu corpo. Qual foi a mais difícil?

São questões difíceis. Mas acho que foi a política mesmo. Já falava dos problemas do Brasil, não só de negros, como indígenas, quilombolas. Minha carreira musical foi pautada na defesa dos menos favorecidos. Sempre tive um olhar de defesa de direitos, justiça, liberdade. O pessoal do partido comunista falava: “Você sempre foi comunista e não sabia”. Porque sempre fiz as coisas de forma natural.

Sua obra concilia militância e romantismo, trazendo sempre olhar crítico para a sociedade e para o amor. Mas muita gente só conhece suas canções políticas. Acha que isso está relacionado com o fato de ser lésbica e cantar questões LGBTQIA+? Era um problema para as gravadoras tempos atrás?

Acho que não. Penso que a política foi mais forte mesmo. Porque muita gente me dizia: “Você só gosta de cantar encrenca, fala de coisa mais suave”. Tinha uma rejeição… Principalmente, de emissoras de rádio, que não tocavam.

Se você fizer um levantamento de tudo que é politizado no meu repertório, vai encontrar a plataforma do meu mandato. Quando fui eleita a primeira vez, peguei todos os meus discos, vi tudo que cantei e deu problema e falei: “Esse vai ser o meu mandato”. Não adianta só cantar, tem que agir.

A senhora é a segunda deputada negra da história da Assembleia Legislativa de São Paulo. Com a última reeleição, tornou-se a primeira mulher negra a cumprir quatro mandatos consecutivos na história da ALESP. O que significa?

Muita coisa. Significa coerência no que faço. O povo de São Paulo entendeu, acompanhou e respeitou nossas ideias e projetos. Sexta vou à Assembleia de branco, defendo religiões de matriz africana. Quando há perseguição, me pronuncio. Brigo pelo que acho justo.

A senhora gravou muitos grupos de pagode dos anos 1990. É interessante porque o pagode é o encontro de sambistas para cantar samba. Mas a mídia separou os dois e criou um outro gênero. E se, no samba de raiz, às vezes, existe aquela coisa de “é melhor não mexer”, a senhora propôs um diálogo, fluiu pelos gêneros e acolheu generosamente uma galera mais nova que estava chegando…

É que eles estavam fazendo música que eu gostava. Quando mexe com meu coração, eu gravo. Eles também me ajudaram muito artisticamente, ajudaram a popularizar meu trabalho.

A senhora é, digamos, uma entidade cidadã que conduziu com dignidade a sua trajetória. Sente-se orgulhosa do que construiu?

Agradeço a Deus tudo que tem acontecido na minha vida. Sempre trabalhei, fui operária de fábrica, telefonista, morei em três escolas públicas porque minha mãe era servente de colégio e a gente não tinha condições de pagar. Em compensação, a gente varria muita sala de aula. Eu, filha única, ajudava muito a minha mãe nesses aspecto. Fico feliz com o que eu fiz porque trouxe felicidade para o nosso país. Muitas famílias falaram meu nome para seus, isso me comove.

O fato de não ter filhos, esses seres que perpetuam a nossa existência, pode deixar a noção de finitude mais concreta. Sente dessa forma?

Não tenho problema com isso. Tenho minha sobrinhas, uma sobrinha neta, a Pérola. O compromisso que tenho com elas me satisfaz. Vi todo mundo nascer, cuidei, cuido, elas também são parte de mim.

E essa pele maravilhosa, quase sem rugas?

Pois é. Todo mundo me pergunta isso…

É namoro?

Não, não (risos). Estou só cuidando da minha saúde agora.