Argentina: Milei quer mais inflação para combater a hiperinflação

A principal aposta do novo governo foi na maxidesvalorização do peso argentino. Com o ajuste cambial, US$ 1 passou de 365 pesos para 800. Governo pede tempo e paciência para dias melhores

O presidente da Argentina, Javier Milei, e seu ministro da Economia, Luis Caputo

“Me acorde quando setembro acabar”, pediu o vocalista e guitarrista do Green Day, Billie Joe Armstrong, na melancólica letra de Wake me up when september ends. A música falava de luto. Aos dez anos, em setembro de 1982, Billie Joe perdeu o pai, Andrew Armstrong, vítima de um câncer. Deprimido, o menino voltou do funeral e ficou recluso no quarto. Quando a mãe bateu à porta e tentou animá-lo, ele lhe pediu que esperasse setembro chegar ao fim.

É com essa sensação de luto profundo e temporário que os argentinos parecem viver os primeiros dias sob o governo Javier Milei. Empossado na Casa Rosada no domingo (10), o presidente incumbiu seu ministro da Economia, Luis Caputo, de anunciar na terça (12) as medidas do “Plano Motosserra” – um pacote fiscal de fazer inveja aos mais fervorosos neoliberais.

O anúncio foi atabalhoado. Em vez de participar de uma entrevista coletiva para responder de pronto a eventuais questionamentos, Caputo preferiu divulgar um vídeo de 15 minutos. A gravação podia sugerir mais cuidado e rigor com as informações. Não foi bem assim.

A principal aposta do novo governo foi na maxidesvalorização do peso argentino. Com o ajuste cambial, US$ 1 passou de 365 pesos para 800. Ao que tudo indica, as próximas cotações terão cada vez menos interferência do Banco Central. Houve também aumento de impostos que, em tese, encarecem as importações. Segundo Caputo, os “setores produtivos” precisam de “incentivos adequados”, sem “discriminar a agropecuária”.

Se boa parte dos efeitos da desvalorização cambial só será sentida a médio e longo prazo, houve pontos do pacote fiscal que terão impacto imediato, sobretudo para as famílias de baixa renda. É o caso da redução dos subsídios à energia e aos transportes. Caputo disse que o Estado argentino “banca artificialmente preços baixíssimos” de serviços públicos essenciais.

A contrapartida dos subsídios seria mais inflação – “o que te dão com o preço da fatura te cobram com os aumentos no supermercado”. O problema é que, sem a participação direta do Estado, haverá reajustes imediatos nas contas de luz e gás, bem como nas tarifas de trens e ônibus. Assim, a missão inglória de Milei/Caputo é convencer a população de que mais inflação agora é a saída para combater a hiperinflação. É como se uma casa estivesse às voltas com uma enchente e um especialista propusesse inundá-la com mais água.

Já se disse que o maior inconveniente para o neoliberalismo é que existem os pobres, os miseráveis, o lumpesinato. O “choque” do novo governo agradou ao FMI (Fundo Monetário Internacional), que qualificou como “audaciosas” as “ações iniciais” já anunciadas. “Sua implantação decisiva ajudará a estabilizar a economia e estabelecerá as bases para um crescimento mais sustentável liderado pelo setor privado”, disse, em nota, a instituição.

Mas, até chegar a essa utópica estabilidade, quem vai proteger esses que o próprio FMI chama de “os mais vulneráveis na sociedade”? Sem dar detalhes, Caputo prometeu reforçar os programas de auxílio às mães. “O presidente nos pediu para focarmos fundamentalmente nas pessoas que podem sofrer mais com isso”, afirmou.

Só que, enquanto a maioria das medidas tem metas e prazos definidos, a ajuda ao povão segue como uma promessa vaga. Os argentinos agora sabem que não haverá contratação de novas obras públicas, que a publicidade oficial está suspensa por um ano e que o número de ministérios caiu de 18 para nove. Só não sabem como vão comer e sobreviver durante a vigência do “Plano Motosserra”.

Só em novembro, conforme o Indec (Instituto Nacional de Estatística e Censos), a inflação no país foi de 12,8%, acumulando uma alta de 160,9% em 12 meses. A alta de preços em 2023 será a maior em mais de três décadas. Nesta quarta-feira (13), com a intensa remarcação de preços, já houve corrida aos postos de gasolina e aos supermercados. Em um dia, o primeiro do “pacotaço” fiscal, o litro da gasolina comum em Buenos Aires disparou de 446 pesos (R$ 5,95) para 612 pesos (R$ 8,22).

O inevitável caos social e econômico pode encurtar a gestão de Milei, que foi eleito para quatro anos de mandato. O governo pede tempo e paciência para dias melhores. Os argentinos, em luto, querem abreviar o pesadelo – ou só acordar quando o trauma atual ficar para trás. Wake me up when september ends.

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