Famílias chefiadas por negras estão mais expostas à fome

No Nordeste, 57% das mulheres negras chefes de família passam por essa situação. Além da renda, pesam a falta de uma rede de apoio e a distância

Maria da Conceição e dois de seus filhos. Foto: João Velozo/Gênero e Número

Em meio a uma série de desigualdades históricas e estruturais, as mulheres negras formam um dos segmentos mais vulneráveis da sociedade brasileira. Ao se analisar uma fatia dessa população, a das chefes de família negras, é possível verificar que a falta de renda não é o único elemento que faz com que elas sofram com a insegurança alimentar. 

A ausência de uma rede de apoio, de oportunidades de trabalho e mesmo a distância do comércio são fatores que fazem com que muitas tenham dificuldades em acessar uma alimentação adequada para elas e para aqueles que estão sob seus cuidados. 

É o que demonstra a pesquisa “Caminhos da alimentação: o que chega à mesa das mulheres negras”, realizada pela associação Gênero e Número, em parceria com a Fian Brasil e com o apoio do Instituto Ibirapitanga. 

A fonte principal de dados utilizada é a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, a mais recente feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que classifica a aquisição, as despesas, os rendimentos e a situação de segurança alimentar ou níveis de insegurança alimentar da população brasileira. 

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A partir dessas informações, as pesquisadoras definiram um recorte territorial e os perfis das entrevistadas que acompanharam. “As quatro mulheres, que moram na região metropolitana de Recife (PE) e arredores, compartilharam sua rotina durante sete dias. Com seus diários de alimentação, montamos uma base de dados  inédita para cada uma delas, que reuniu todos os alimentos consumidos em cada refeição ao longo da semana”, diz a apresentação da pesquisa. 

O que emergiu desse cruzamento entre dados e personagens reais foi um retrato das dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras de baixa renda, especialmente do Nordeste, quando o assunto é concatenar o trabalho (ou o desemprego) com o cuidado com a família e a necessidade de se alimentar bem. 

Vitória Gonzaga. Foto: arquivo pessoal

“O objetivo do projeto é entender quais são os fatores que atravessam a aquisição, o preparo e o consumo dos alimentos nas casas chefiadas por mulheres negras. A renda é um desses fatores prioritários, mas vários outros elementos que também são muito importantes aparecem na análise”, explica, ao Portal Vermelho, Vitória Gonzaga, presidente e diretora de Conteúdos da Gênero e Número. 

Famílias chefiadas por negras

De acordo com outro levantamento feito pela Gênero e Número, tendo como base informações do IBGE, no Brasil, mais da metade das famílias chefiadas por mulheres negras enfrenta algum nível de insegurança alimentar. Na ponta oposta, as lideradas por homens brancos respondem por uma a cada quatro nessa situação. 

Ao todo, 51% das famílias chefiadas por mulheres negras sofrem insegurança alimentar (31% leve, 12% moderada e 7% grave). No caso das famílias que têm homens brancos à frente, a lógica se inverte: 23% têm algum tipo de insegurança alimentar — 17% leve, 4% moderada e 2% grave.

Ou seja, conforme a análise sai das famílias chefiadas por mulheres negras, passando por homens negros, mulheres brancas e chegando ao topo, aos homens brancos, o grau de insegurança alimentar vai caindo, o que demonstra, mais uma vez, que o entrelaçamento entre gênero e raça — ser mulher e negra — eleva bastante o grau de vulnerabilidade alimentar. 

Qualidade da alimentação

Voltando aos dados analisados na pesquisa “Caminhos da alimentação”, destaca-se que o Nordeste tem uma cesta alimentar bastante rica e diversificada — 55% das calorias ingeridas vêm de elementos in natura ou minimamente processados, tais como arroz, feijão, legumes, carne e ovos. “A região tem uma cultura alimentar rica e diversa, distante da imagem de escassez que circula em outras partes do Brasil”, salienta o relatório. 

Apesar disso, de acordo com a pesquisa, 57% das mulheres negras chefes de família do Nordeste sofrem com algum nível de insegurança alimentar, e é comum a escolha por ultraprocessados. Entender porque isso ocorre foi a pergunta colocada. E a resposta está basicamente nas difíceis condições de vida enfrentadas, principalmente, por esse segmento social.

“Dentre os fatores que mais apareceram ao longo desse projeto estão a sobrecarga com as tarefas relacionadas ao cuidado e aos afazeres domésticos e a sobreposição da jornada de trabalho, questões que têm um forte impacto na hora dessas mulheres decidirem sobre a alimentação”, observa Vitória. 

Outra questão que permeia a vida dessas mulheres é o desemprego e a baixa renda. Segundo o Dieese, entre os quartos trimestres de 2022 e 2023, a taxa de desemprego feminino diminuiu de 9,8% para 9,2%. Ainda assim, elas representam a maioria nesse grupo, 54,3%, das quais 35,5% são negras.

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No caso da renda, dados do IBGE compilados pela associação mostram que a média do Nordeste (cerca de R$ 2 mil) é menor do que a nacional (quase R$ 3 mil) e os segmentos com o valor mais baixo são os homens negros (R$ 1,4 mil) e as mulheres negras (R$ 1,5 mil). Entre as que ganham cerca de R$ 606 reside as que mais sofrem com a insegurança alimentar grave. 

Cabe destacar, ainda, que influencia na escolha sobre o que comer a distância que elas muitas vezes precisam percorrer para adquirir alimentos de melhor qualidade. Nas áreas mais afastadas, são comuns os mercadinhos de bairro que, nem sempre, oferecem produtos saudáveis, mas que saciam a fome — caso de ultraprocessados como salsicha, macarrões instantâneos e biscoitos, por exemplo. “Por isso, o acesso ao transporte é muito importante para fomentar a diversidade alimentar”, diz Vitória.

Maria da Conceição Mendes da Silva, de 42 anos, é uma dessas mulheres acompanhadas pelo projeto. Ela mora numa ocupação em Paulista, Região Metropolitana do Recife, com dois de seus três filhos — um tem sete anos; o outro, de 17, é autista e superativo. Desempregada e sem pensão alimentícia ou ajuda do pai das crianças, ela e os dois filhos vivem basicamente com o Bolsa Família, no valor de R$ 700.

Duas vezes por semana, ela vai a um projeto de horta ecológica — é quando consegue obter uma alimentação de melhor qualidade com frutas, verduras e carne. Também ajuda uma cesta básica que recebe de uma igreja local. O restante é adquirido numa barraca perto de casa, onde pode comprar fiado — em geral, ela leva pra casa salsicha e mortadela, que são mais baratos e matam a fome. 

Rede de cuidado

Maria da Conceição. Foto: João Velozo/Gênero de Número

Para enfrentar dificuldades como essas, observa a pesquisadora Vitória Gonzaga, “é necessário pensar na política de cuidado de uma forma ampla, numa rede voltada para essas mulheres que, muitas vezes, são mães-solo e que chefiam as suas famílias sozinhas”. 

Se a gente não pensar nisso, completa, “mesmo que essas mulheres possam ter acesso a uma renda maior futuramente, elas vão continuar exaustas, sem tempo para pensar sobre o que estão comendo, tendo que comprar dos lugares mais próximos de suas residências que, nem sempre, oferecem diversidade alimentar”. 

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A pesquisadora salienta, ainda, a importância da saúde integral e de um acompanhamento preventivo, que eduque e evite o adoecimento. “Quando a gente fala de alimentação, a gente precisa falar também de saúde integral”, explica Vitória. “É preciso trabalhar não só para entender e melhorar a alimentação e o diagnóstico de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes — que estão muito ligadas à dieta alimentar —, mas também para agir antes, ou seja, naquilo que é preciso oferecer no que diz respeito ao bem-estar e à qualidade de vida para que as pessoas não desenvolvam esses problemas”. 

Nesse sentido, em entrevista recente ao Centro Brasileiro de Estudos da Saúde, a ministra da pasta, Nísia Trindade, disse que “vamos colocar na linha de frente a questão do cuidado integral da saúde da população. Nós avançamos em muitas ações, tanto na atenção primária, quanto na atenção especializada, mas o passo seguinte seria termos uma melhor gestão do cuidado”.

Quanto à política de cuidados, o tema tem merecido maior atenção desde que teve início o governo Lula. Decreto assinado pelo presidente em 31 de março de 2023 criou o Grupo Interministerial de Trabalho para a elaboração da Política Nacional de Cuidados. O objetivo é promover as mudanças necessárias para uma divisão mais igualitária da responsabilidade com a atenção às pessoas que mais precisam — em geral, crianças e idosos —, com especial atenção às desigualdades de gênero, raça, etnia e territoriais que permeiam essa questão. 

Na avaliação de Rosane Silva, secretária de Autonomia Econômica e Política de Cuidados do Ministério das Mulheres, “o presidente consegue perceber as necessidades reais do povo e ele estava certo sobre o quanto o Brasil precisa avançar na construção de uma Política Nacional de Cuidados que olhe as pessoas com direito à dignidade”.