Professora Maria da Conceição Tavares, exemplo de luta pelo conhecimento e coragem

Professores da UFRRJ e UFRJ prestam homenagem “à extraordinária figura humana” de Tavares: “uma das maiores expoentes da Economia brasileira e latino-americana”

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

“Para além das lições e contribuições econômicas, o importante
é deixar um sentimento de otimismo e esperança para inspirar as
gerações futuras. Eu não desisto deste país. Apesar de todas as
desgraças de hoje, eu continuo achando que o Brasil é o país do
futuro. O Brasil tem futuro”
Maria da Conceição Tavares, 2019.

Hoje, dia 08 de junho de 2024 faleceu a Professora, economista e política Maria da Conceição Tavares (1930-2024), portuguesa de nascimento e brasileira de alma, uma das maiores expoentes da Economia brasileira e latino-americana. Talvez em poucas áreas do conhecimento, em poucos lugares do mundo, houve uma pessoa como ela que tenha unido com tanta força a busca pelo conhecimento, criatividade, coragem e combatividade na luta por seus ideais.

Graduada em Matemática em 1953, chegou ao país em 1954, desde o início buscou compreender a situação social brasileira e se engajou na luta, de forma incansável, pelo desenvolvimento econômico, a justiça social e a democracia no Brasil. Sem ter seu diploma reconhecido, em 1956 ingressou no curso de Economia da UFRJ, onde se formou em 1960, se tornando professora no ano seguinte nesta universidade. Se tornaria no Instituto de Economia da UFRJ Professora Livre-Docente, em 1974, Titular, em 1978 e Emérita em 1993. Na Unicamp, atuou como Professora Titular entre 1974 e 1987. Teve uma atuação notável dentro dos meios universitários brasileiros, formando uma legião de pessoas direta e indiretamente, uma das grandes responsáveis pela relevância do pensamento econômico crítico no Brasil, em suas diferentes vertentes, tanto na academia quanto no debate público, legado presente até os dias de hoje.

Matemática e economista de formação, foi crítica do pensamento liberal. Dentre as diversas correntes que ajudaram a constituir o pensamento de Conceição Tavares, foi herdeira sem dogmatismos de grandes pensadores como Marx, Keynes, Kalecki e Schumpeter, além de Prebisch e Furtado e demais autores do estruturalismo latinoamericano da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), o qual ajudou a construir. Menciona-se também, a influência decisiva de Rangel, com trabalhou junto no BNDE, especialmente na análise dos aspectos financeiros do capitalismo contemporâneo, um dos seus principais temas de pesquisa ao longo da sua carreira.

Maria da Conceição Tavares participou intensamente da construção de dois dos polos mais importantes do pensamento econômico heterodoxo mundial, os programas de pós-graduação da Unicamp (1974) e UFRJ (1979) que, devemos frisar, levantados ainda nos tempos da ditadura militar no Brasil no qual chegou a ser presa. Buscando trilhar um caminho próprio e com uma criatividade espetacular, embora sempre formando e atuado ao lado de outros colegas de forma coletiva, a Professora deixou uma obra vastíssima, cobrindo diversos temas, entre livros, artigos científicos, entrevista, intervenções na imprensa, além de várias orientações de teses acadêmicas. Foi responsável por trabalhos seminais que seguem incontornáveis atualmente – seja para avançar a partir das suas proposições, ou para refutá-los – sobre Macroeconomia, Economia Política, Economia brasileira e Economia Política Internacional.

Dentre as suas inúmeros contribuições, destacamos, no campo da Economia, sua análise sobre a experiência brasileira de industrialização por substituição de importações, seu primeiro trabalho publicado, em 1962, e a forma pioneira como aplicou a macroeconomia kaleckiana, apoiado no Princípio da Demanda Efetiva, na análise da dinâmica da economia brasileira em seus trabalhos da década de 1970. Fez isso não apenas como um exercício puramente intelectual, mas, sim, para buscar compreender o movimento que ocorria no Brasil entre 1967 e 1973, durante o auge do governo militar, em que se conciliava simultaneamente rápido crescimento econômico com uma piora vertiginosa da distribuição de renda, revelada pelo Censo de 1970.

Anos depois, seu texto “A retomada da hegemonia norte-americana”, publicada em 1985, é uma peça fundamental no debate acadêmico nacional e serviu como ponto de partida para a criação do primeiro programa de pós-graduação nesta área no Brasil, o PEPI (Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional), da UFRJ, criado em 2008, onde Conceição Tavares também atuou como professora. É difícil encontrar algum autor ou autora brasileiro nestes campos, que reivindicam o pensamento crítico, que não tenha sofrido algum tipo de influência da Professora.

Para a superação do subdesenvolvimento característico dos países latinoamericanos primário-exportadores, como o Brasil, arranca de seu trabalho um papel crucial desempenhado pelo Estado, tanto para a diversificação produtiva e capacitação tecnológica como a promoção da inclusão social efetiva, pautada por políticas sociais que assegurem o pleno exercício da cidadania no país, o que se refletiu em sua atuação política, participante ativamente em diversos episódios marcantes da vida política brasileira que ocorreram desde a segunda metade da década de 1950.

Colaborou com o Plano de Metas, entre 1958 e 1960, enquanto funcionária do BNDE (atual BNDES) e esteve integrada nos quadros da CEPAL entre 1961 e 1974. Na década de 1980 foi membro atuante do PMDB durante a redemocratização na década de 1980, exercendo papel chave na elaboração da Constituição Cidadã de 1988 como assessora do partido. Entre 1995 e 1997, como deputada eleita pelo PT, esteve na trincheira de resistência contra o desmonte do Estado desenvolvimentista e dos direitos sociais recém-conquistados levados à frente no auge do neoliberalismo praticado nos mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A partir de 2003, durante os mandatos presidenciais do PT, embora se mantivesse filiada ao PT, teceu elogios, assim como críticas ao governo, sem jamais renunciar à sua independência intelectual e seu compromisso com as transformações estruturais do país. A partir de 2016, se somou às correntes críticas da guinada liberal-conservadora observada no país, contribuindo com artigos de opinião e pontuais intervenções públicas.

Em sua longa jornada, a luta pela democracia esteve presente em todos os momentos da sua vida, tendo especialmente vivido em locais e momentos que foram marcados por diferentes regimes autoritários. Vivenciou três golpes militares e foi persona non-grata dos regimes ditatórias que se instalaram. Veio para o Brasil, em 1954, fugindo do regime salazarista em Portugal, posteriormente, após o Golpe de 1964 no Brasil, foi acolhida no escritório da CEPAL, no Chile, local onde ficaria até 1973, quando do golpe sofrido por Salvador Allende, voltou ao Brasil.

Nos últimos anos, suas entrevistas e aulas disponibilizadas na internet se tornaram um grande sucesso, com trechos sendo veiculados por toda parte nos quais sintetiza com profundidade e didatismo análises sobre o capitalismo mundial e brasileiro que seguem de desconcertante atualidade. Seguirá sendo uma referência fundamental para todos aqueles interessados em compreender o Brasil e o mundo em que vivemos, e um exemplo de que teoria e a ação precisam caminhar juntos no esforço coletivo de transformação da ordem social estabelecida. Entre os inúmeros ensinamentos, deixou um importante alerta aos economistas: “se você não se preocupa com a justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério, você é um tecnocrata”.

Compartilhamos aqui os nossos sentimentos com os familiares e amigos próximos, e deixamos este pequeno texto como forma de homenagem e agradecimento à extraordinária figura humana que foi a Professora Maria da Conceição Tavares.

Miguel Henriques de Carvalho, professor do Departamento de Economia do ICSA-UFRRJ

Marcelo Pereira Fernandes, professor do Departamento de Economia do ICSA-UFRRJ

Vinicius Carneiro, professor do Instituto de Economia da UFRJ.

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