Inquérito da ONU acusa Israel e Hamas de crimes de guerra

Dirigente da Coplac critica a suposição de simetria do conflito. Para ele, não dá para negar que as ações nos tribunais internacionais são todas contra Israel.

Médicos transportam uma criança palestina ferida para o hospital Al-Shifa, na cidade de Gaza, após um ataque aéreo israelense em 11 de outubro de 2023. Foto: Agência Palestina de Notícias e Informações (Wafa)

Um inquérito das Nações Unidas revelou que tanto Israel quanto o Hamas cometeram crimes de guerra e graves violações do direito internacional nos primeiros meses da guerra em Gaza. Este relatório é a primeira investigação aprofundada do organismo sobre os ataques de 7 de outubro e o conflito que se seguiu.

Os relatórios divulgados, nesta quarta-feira (12), cobrem acontecimentos até o final de 2023 e retratam um cenário alarmante de ambos os lados ignorando rotineiramente o direito internacional em um conflito devastador que já dura mais de oito meses. A guerra não só dividiu amargamente a opinião global, mas também aumentou as tensões em todo o Oriente Médio.

Emir Mourad, secretário-geral da Confederação Palestina Latino-Americana e do Caribe (Coplac), que representa as comunidades palestinas no Continente, não hesita em afirmar que Israel está enfraquecido e enfrenta um dilema moral, ético e existencial. Em referência ao inquérito da ONU, ele critica aqueles que tentam equilibrar o conflito como sendo simétrico entre duas potências militares, apontando que essa visão é irreal e favorece uma política imperialista que tenta minimizar os atos de Israel, comparando-os com ações de grupos de resistência colonial.

Emir Mouad, secretário-geral da Confederação Palestina Latino-americana e do Caribe (Coplac)

“Essa gente que quer equilibrar como sendo um conflito simétrico, de duas potências em guerra, vivem em outro mundo, ou fazem a política do imperialismo”, diz ele. Mourad rejeita comparações que tentam colocar as ações de grupos de resistência colonial no mesmo nível que as do Estado israelense, chamando isso de “blefe” e “manobra política”.

“Olha, os fatos são os fatos, não dá pra gente fugir disso. No Tribunal Internacional, como no Tribunal Penal, todas as ações são contra Israel, pelos crimes que comete como Estado ocupante, Estado colonizador, que comete massacre há décadas”, afirma Mourad, considerando essa manobra política como uma evidência da fraqueza da ONU sem o consenso do Conselho de Segurança.

Ataques de 7 de Outubro

A Comissão de Inquérito das Nações Unidas iniciou seu relatório detalhando os eventos de 7 de outubro, quando o Hamas e outros grupos armados palestinos lançaram uma onda de assassinatos e sequestros no sul de Israel, resultando na morte de mais de 1.200 pessoas, a maioria civis, e no sequestro de cerca de 250 reféns. Os crimes de guerra citados pela comissão incluem ataques intencionais contra civis, homicídio, tortura, tratamento desumano, ultrajes à dignidade pessoal e tomada de reféns, incluindo crianças.

Os massacres levaram Israel a declarar guerra ao Hamas e a lançar um ataque a Gaza, que destruiu grande parte do enclave densamente povoado e matou mais de 37 mil pessoas, segundo as autoridades de saúde de Gaza. Nos primeiros dois meses e meio do conflito, a comissão concluiu que Israel cometeu crimes de guerra, bem como crimes contra a humanidade, definidos como um ataque generalizado e sistemático contra uma população civil. Os alegados crimes de guerra de Israel incluem fome, detenção arbitrária e assassinato e mutilação de “dezenas de milhares de crianças”.

Ambos os lados foram acusados de cometer violência sexual e tortura, e de atacar intencionalmente civis, segundo os relatórios que abrangem mais de 200 páginas. A comissão baseou suas conclusões em entrevistas com vítimas e testemunhas, análises forenses de milhares de itens de código aberto, centenas de documentos, imagens de satélite, relatórios médicos forenses e cobertura midiática.

Mourad acredita que Israel está enfraquecido e internamente dilacerado, sem condições de enfrentar qualquer adversário sem recorrer à sua alta tecnologia militar para atacar civis. Ele menciona a contínua resistência da população palestina e de grupos como o Hezbollah e outras facções na Cisjordânia e em Gaza, que pressionam Israel tanto militarmente quanto moralmente. Ele destaca que as condenações da ONU a Israel, quando incluem também o Hamas, são uma tentativa de manter o apoio dos Estados Unidos, que têm um papel crucial na pressão sobre Israel.

Segundo Mourad, a única nação com poder real para influenciar Israel são os Estados Unidos. Ele argumenta que a pressão política e material, especialmente por meio dos jovens e estudantes americanos, pode influenciar a política americana e, por conseguinte, a postura de Israel. “Os estudantes nas universidades dos Estados Unidos têm força, porque pressionam Biden e Biden pressiona Israel”, explicou.

O reconhecimento do Estado da Palestina por mais países europeus também é um fator importante, segundo Mourad. Ele menciona que o número de países que reconhecem a Palestina passou de 140 para mais de 160, aumentando o isolamento de Israel e pressionando-o a aceitar um cessar-fogo.

“A força número dois é a Europa, então quanto mais países reconhecem, vão se somando […] isso vai ter um peso também de isolamento.” Ele acredita que a combinação de decisões internacionais, a pressão interna em Israel e os conflitos contínuos aumentam o isolamento e a pressão sobre Israel para aceitar um cessar-fogo. Netanyahu está em uma situação crítica, onde aceitar um cessar-fogo pode significar a queda de seu governo, enquanto rejeitá-lo aumenta a pressão interna e internacional.

Mourad detalha ainda as múltiplas crises enfrentadas por Israel: econômica, militar, social, política e moral. “Hoje tem mais de 150 mil colonos israelenses do norte que viviam nas colônias do norte de Israel, que estão no centro de Israel. Está deserta a faixa toda da fronteira com o Líbano com Israel”, exemplificou. Para ele, a aceitação de um cessar-fogo é inevitável, apesar do dilema político interno que isso representaria para o governo de Netanyahu.

Acusações internacionais

Os novos relatórios se somam às alegações feitas por outros organismos internacionais. O procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI) anunciou no mês passado um pedido de mandado de prisão para vários líderes importantes do Hamas e de Israel, incluindo o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, sob acusações de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Tanto o Hamas quanto Israel condenaram as acusações. O Hamas descreveu o pedido como uma tentativa de “igualar as vítimas aos agressores”, enquanto Netanyahu classificou a petição como um “ultraje político”.

O relatório examinou as ações do Hamas durante os ataques de 7 de outubro, descrevendo-os como “sem precedentes em escala na história moderna de Israel” e evocando o trauma da perseguição passada para o povo judeu. Militantes do Hamas sequestraram reféns “sem levar em conta idade ou sexo”, alguns dos quais foram mortos e expostos publicamente.

A comissão também documentou a violência sexual e abusos perpetrados por grupos armados palestinos e israelenses e analisou testemunhos de violação recolhidos por jornalistas e pela polícia israelense, embora não tenha conseguido verificar independentemente todas as alegações devido à obstrução por parte de Israel.

O relatório destacou o impacto devastador do conflito nas crianças israelenses, muitas das quais testemunharam a morte de seus pais e irmãos e foram alvo de sequestros.

Destruição em Gaza

No ataque subsequente de Israel ao Hamas, as forças israelenses foram acusadas de infligir “danos máximos” sem tomar precauções suficientes, resultando em um elevado número de mortos, ferimentos devastadores e destruição de infraestruturas civis em Gaza. A comissão criticou o uso deliberado de armamento pesado por Israel em áreas densamente povoadas, afirmando que isso constituiu um ataque intencional à população civil.

A comissão instou Israel a estabelecer imediatamente um cessar-fogo e pediu ao Hamas que libertasse os reféns. Também exigiu que Israel encerrasse suas práticas de abuso sexual contra palestinos e permitisse o acesso para futuras investigações.

“O único modo de parar os ciclos recorrentes de violência é garantir a adesão estrita ao direito internacional”, disse Navi Pillay, presidente da comissão.

Emir Mourad conclui suas declarações com uma previsão de mudanças significativas nos próximos meses, marcados por intensas contradições e potencial escalada de tensões internas em Israel. “Os próximos dias vão ser muito quentes. E as manifestações lá em Israel têm aumentado também”, finalizou Mourad, levantando a possibilidade extrema de uma guerra civil devido às profundas divisões internas num estado extremamente militarizado.

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