Extrema-direita quer que vítimas de estupro sofram duplamente

Projeto que propõe pena de homicídio para aborto após 22 semanas de gestação ignora realidade brasileira e revitimiza mulheres e meninas que já sofreram com a violência sexual

Foto: @protejetemos

Após mais uma manobra espúria, comandada pelo presidente Arthur Lira (PL-AL) para “passar a boiada” em projetos de interesse da extrema-direita, a Câmara aprovou, nesta quarta-feira (12), em votação relâmpago, requerimento de urgência para a tramitação do Projeto de Lei 1904/24. O texto estabelece pena de homicídio simples para aborto após 22 semanas de gestação nos casos de gravidez resultante de estupro. 

A análise do PL não foi anunciada por Lira, que declarou o requerimento aprovado depois de 23 segundos, de maneira simbólica, ou seja, sem registro de voto no painel.

Com mais esse atropelo, a matéria não precisa passar pelas comissões, seguindo diretamente ao plenário da Casa. A proposta — que ataca direitos adquiridos há décadas pelas mulheres —  é mais uma ação cruel e reacionária das bancadas ultraconservadoras, formadas principalmente pelos setores evangélico e bolsonarista.

O PL do Estuprador, como vem sendo chamado, acaba criando a imposição, para meninas e mulheres de, em caso de serem violentadas e engravidarem, terem de decidir sobre o procedimento em até 22 semanas. 

E, ao estabelecer a pena, ainda inverte a lógica da responsabilidade pelo crime de fato, que é o estupro, de maneira que a condenação para quem abortar pode se tornar maior do que para o violador. Se aprovada, mulheres condenadas poderão ficar presas por entre seis e 20 anos. 

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Enquanto isso, a pena mínima para estupro é de seis a 10 anos quando a vítima é maior de 18 anos. E, quando a vítima é menor de idade, a condenação mínima passa a ser de oito e a máxima, de 12 anos. 

A origem desse atrasado projeto não poderia ser outra: vem de um bolsonarista, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), com a anuência de outros 32 parlamentares — 17 do PL, quatro do MDB, três do Republicanos, dois do PP, dois do União Brasil e um do PRD, do Avante, do PSDB e do PSD.

O requerimento de urgência tem sido avaliado como uma forma de dificultar a agenda do governo e uma reação da extrema-direita à decisão tomada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, no dia 17 de maio, de suspender a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia médicos de realizarem assistolia fetal, procedimento usado nos casos de aborto legal decorrentes de estupro.

Uma segunda violência às vítimas

Além de misógina, punitivista e de atentar contra os direitos humanos, a proposta ignora a própria realidade do país, marcada por altos índices de violência sexual, especialmente contra menores de idade. E, ao estabelecer esse novo regramento, também impõe uma segunda punição às vítimas que deveriam, ao contrário, ser protegidas e cuidadas. 

De acordo com o Anuário 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 o Brasil registrou o maior número de estupros da história, com cerca de 205 casos por dia, num total de quase 75 mil vítimas, crescimento de 8,2% em relação a 2021. 

Desse total, quase 57 mil casos foram estupros de vulneráveis e as principais vítimas, 61%, têm entre zero e 13 anos. A grande maioria, 68%, foi violentada em sua própria casa, 86% por gente conhecida — sendo 64%, por familiares. 

O grotesco projeto vem mobilizando movimentos e lideranças sociais e políticas contrárias à criminalização das vítimas. Ao Conselho Nacional de Saúde, Helena Piragibe, conselheira pela União Brasileira de Mulheres (UBM),  destaca que o PL é extremamente nocivo especialmente para crianças, que são as maiores vítimas do crime de estupro no país. 

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“Estamos falando de crianças, pois 70% (das vítimas) são crianças que são estupradas dentro de casas. São meninas de 8, 9 anos de idade que não sabem que estão grávidas”, salienta.

O CNS emitiu nota, dirigida ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PL-AL) pedindo o arquivamento do projeto, tendo em vista aspectos legais e relacionados aos direitos das mulheres. 

“Milhares de cidadãs brasileiras perderão acesso à justiça e segurança jurídica, provenientes das taxativas e excepcionais hipóteses legais de aborto na legislação penal brasileira, o que ampliará os já alarmantes índices de morbimortalidade materna, sobretudo, de cidadãs pobres e negras”, aponta. 

Além disso, argumenta, que o projeto “tem o objetivo principal de criminalizar meninas e mulheres, vítimas de violência sexual e estupros, gestantes em situação de risco de vida e profissionais da saúde, impondo as penalidades do Art. 121 do Código Penal, ou seja, homicídio simples em regime de reclusão de 6 a 20 anos”. 

A UBM também já havia se posicionado contra o projeto, pedindo que o mesmo não fosse tratado em regime de urgência, a fim de possibilitar “a participação popular e conseguinte escuta de todos os segmentos e setores da sociedade aderentes, com vistas ao fortalecimento do estado democrático de direito”. 

Ao mesmo tempo, destacou que a proposta “afeta liberdades e garantias fundamentais, o direito à saude, à dignidade da pessoa humana e impacta de forma prejudicial a vida de milhões de meninas e mulheres brasileiras, devendo ser precedida de amplo debate junto a sociedade civil e as instâncias democráticas de participação social”.

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Para a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, “ao excluir a possibilidade de vítimas de violência sexual acessarem serviços de aborto legal sem serem criminalizadas, o PL 1904/2024 pune direitos já garantidos (embora ainda insuficientes) de meninas, mulheres e pessoas que gestam e fragiliza a politica pública de aborto legal na medida em que opta por punir a vitima ao invés de tratar o caso como uma questão de saúde pública e de enfrentamento às injustiças reprodutivas”. 

Além disso, acrescenta que a proposta “também pune profissionais da saúde, que poderão ser condenados por realizarem procedimentos para os quais são aptos e que salvam vidas”. 

Na avaliação de Valéria Possadagua, secretária da Mulher da Fitmetal (Federação Interestadual de Metalúrgicos e Metalúrgicas do Brasil), “de um parlamento conservador e misógino, recheado de extremistas, não se pode esperar muito. Mas o PL do Estupro ultrapassa qualquer limite ético ou humanitário, renovando e prolongando a opressão às mulheres. Precisamos abrir guerra contra esses criminosos travestidos de deputados”. 

Gravidez forçada é tortura 

A tramitação do projeto e a aprovação do regime de urgência têm suscitado uma série de reações e protestos. Nesta quarta-feira (12), antes da votação do requerimento, a Frente pela Legalização do Aborto do DF fez um ato simbólico com a entrega de uma coroa de flores na residência oficial da Câmara dos Deputados. Na faixa da coroa, lia-se: “Deputados, estamos em luto pelas crianças brasileiras estupradas, que perdem sua infância por falta de acesso ao aborto legal. Não ao PL 1904/2024”. 

Hashtags como #NãoAoPL1904/24, #NãoPLGravidezInfantil, #CriançaNãoÉMae e #GravidezForçadaéTortura, entre outras, figuram em diversos perfis nas redes sociais, em mobilização para pressionar os deputados contra a proposta. Frases como “Lira, você quer que crianças sejam mães” e “Uma mulher é estuprada, ela engravida…e ela é presa? Sério Lira” foram projetadas em prédios de grandes cidades nos últimos dias. 

Autoridades e parlamentares, principalmente de partidos como PCdoB, PSol, PT e PSB, também têm reagido de maneira incisiva contra a proposta. Conforme apontou a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, “as discussões sobre essa proposta desastrosa para a vida de meninas e mulheres no país tramitam com velocidade e pouco espaço para discussão com a sociedade e especialistas”. E concluiu: “Esse projeto representa retrocesso e desprezo pela vida das mulheres. Esse não é o Brasil que queremos”. 

Ao jornal Folha de S. Paulo, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, também se manifestou: “Não podemos revitimizar meninas e mulheres vítimas de um dos crimes mais cruéis contra as mulheres, que é o estupro, impondo ainda mais barreiras ao acesso ao aborto legal, como propõe o PL 1.904/2024”. 

Para a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), “não podemos retroceder! A extrema direita está tentando aprovar o PL 1904/24, que impõe a mulheres e crianças vítimas de violência sexual a obrigação de levar adiante uma gravidez indesejada. Em busca de likes, esquecem do mais importante: a vida e o bem-estar dessas pessoas. Criança não é mãe! Estuprador não é pai! Não vamos aceitar isso”.

O líder do PCdoB na Câmara, deputado Márcio Jerry (MA), também repudiou a aprovação da urgência e classificou a proposta como “absurda”. “O PL do aborto carrega em si a possibilidade de condenar com pena severa quem já foi vítima do hediondo crime de estupro”, afirmou.

Na tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo, a deputada Leci Brandão (PCdoB) também se manifestou, nesta quinta-feira (13). Ela destacou que o projeto é uma “aberração jurídica”, é “ilegal e imoral” e “vai contra todos os tratados assinados pelo Brasil em relação aos direitos humanos”. 

Alertando para o caráter misógino adotado, inclusive, por boa parte dos que se dizem cristãos na Câmara, o deputado federal Pastor Henrique Vieira (PSol-RJ), enfatizou: “É uma triste constatação: parte da bancada evangélica odeia as mulheres. Projeto inconstitucional, criminoso, grave, insensível e que nos coloca no campo da barbárie. Fruto de uma moral fundamentalista que salva dogma enquanto condena vidas”. 

E concluiu com uma indagação: “Com tranquilidade e coragem, vamos ao debate com a sociedade. Criminalizar mulheres (muitas vezes meninas) vítimas de estupro?”.