Maioria dos rios brasileiros está secando, com riscos para segurança hídrica e alimentar

Estudo preocupa ao expor perda de recursos hídricos frente ao uso intensivo pela agricultura e às alterações climáticas, e contribui para gerenciar interações entre águas superficiais e subterrâneas.

Estiagem prolongada do Rio Sao Francisco já o torna um rio sazonal em algumas áreas como em Sobradinho (Ponte Marechal Hermes)

Um artigo publicado na Nature Communications no final de 2024 alerta para um fenômeno crítico no Brasil: mais da metade dos rios analisados no país estão perdendo água para aquíferos subterrâneos, especialmente em regiões áridas e de agricultura intensiva, levantando importantes questões sobre a gestão integrada dos recursos hídricos no país. O fenômeno ameaça ecossistemas, a agricultura e o abastecimento humano.

A pesquisa, intitulada “Widespread potential for streamflow leakage across Brazil” [Amplo potencial de vazamento de fluxo de rios pelo Brasil], analisou dados de 17.972 poços, selecionados a partir de um universo de 146.234 registros, e constatou que aproximadamente 55% dos poços apresentam níveis de água abaixo da superfície dos rios próximos, indicando que os cursos d’água estão infiltrando água no subsolo em vez de recebê-la.

“A irrigação descontrolada está secando rios perenes. Sem políticas, o preço será pago pelo agro e pelo meio ambiente”, alerta José Gescilam Uchôa (autor principal). Segundo os autores, essa condição indica que uma fração considerável dos cursos d’água pode estar “vazando” para os aquíferos, fenômeno que, em regiões de clima seco e áreas de intenso uso agrícola, pode agravar problemas de escassez de água.

Os pesquisadores – liderados por José Gescilam S. M. Uchôa (USP São Carlos), Paulo Tarso S. Oliveira (UFMS), André S. Ballarin (Calgary-Canadá), entre outros – enfatizam que as interações entre rios e aquíferos desempenham papel crucial na disponibilidade de água e na manutenção dos ecossistemas fluviais, além de influenciar os ciclos biogeoquímicos e o clima. “Nossos resultados ressaltam a necessidade de se adotar uma gestão conjunta de águas superficiais e subterrâneas, especialmente em um cenário de aumento da demanda hídrica e de mudanças climáticas”, afirmam os autores.

O estudo serve como um alerta para uma crise silenciosa: a interconexão entre rios e aquíferos está sendo rompida por atividades humanas e mudanças climáticas. A combinação de dados locais e sensoriamento remoto surge como caminho para evitar colapsos hídricos, mas a ação política é urgente.

Prevalência de rios potencialmente perdedores e ganhadores em todo o Brasil. A maioria dos rios perdedores está em terras secas ou em regiões com forte atividade agrícola, conforme indicado nas subparcelas: Unidades de Gerenciamento de Recursos Hídricos Brasileiras de São Francisco (b), Unidades de Gerenciamento de Recursos Hídricos Verde Grande (c). Apenas rios com pelo menos um poço por 100 km de comprimento são classificados como rios potencialmente perdedores e ganhadores.

Principais descobertas

Os autores destacam que as regiões mais afetadas são áreas secas (com índice de aridez abaixo de 0,65) e polos agrícolas, como as bacias do São Francisco e do Verde Grande, onde mais de 60% dos rios são classificados como “perdedores”.

“A alta prevalência de rios ‘perdedores’ desafia a noção de que rios sempre ganham água de aquíferos. É urgente integrar a gestão de águas superficiais e subterrâneas, especialmente em regiões secas,” diz Paulo Tarso S. Oliveira (USP). Os pesquisadores ressaltam ainda que, com a diminuição dos níveis dos aquíferos, há um risco crescente de que os fluxos fluviais se reduzam ainda mais, podendo levar à secagem de cursos d’água em áreas críticas e impactar a disponibilidade de água para o abastecimento, a agricultura e os ecossistemas.

O uso excessivo de águas subterrâneas para irrigação é apontado como um dos principais motores do fenômeno. “Essa redução tem sido associada ao aumento da captação de água subterrânea, especialmente para irrigação, como observado em uma das maiores fronteiras agrícolas, conhecida como Matopiba [Tocantins, parte da Bahia, Piauí e Maranhão]. A irrigação consome 90% da água, reduzindo a disponibilidade nos rios”, explica o estudo.

O artigo destaca a urgência de políticas que equilibrem produção agrícola e sustentabilidade hídrica, um desafio central para o Brasil e o mundo. De acordo com o estudo, é preciso repensar urgentemente a gestão hídrica.

Clima e geologia ampliam o problema

O estudo identificou correlações significativas entre a perda de água fluvial e fatores climáticos (baixa relação precipitação/evapotranspiração) e geológicos (regolito espesso, que facilita a drenagem subterrânea). “Regiões com solo mais profundo tendem a ter aquíferos mais eficientes em captar água dos rios”, observa a pesquisa.

Os autores também utilizaram o Índice de Bacia Efetiva (derivado de sensoriamento remoto) para mapear a conectividade entre rios e aquíferos. “Em bacias exportadoras de água subterrânea, mais de 60% dos poços estão abaixo dos rios, confirmando a tendência de perda”, alerta.

Implicações globais e alertas

O declínio simultâneo de águas superficiais e subterrâneas ameaça a segurança hídrica e alimentar. “O Brasil é um dos maiores exportadores agrícolas do mundo. Se os rios continuarem secando, isso impactará a produção de alimentos e ecossistemas”, prevê o texto. Dados do estudo mostram que 90% dos rios analisados tiveram redução de vazão nas últimas décadas, com 11 deles apresentando tendências significativamente negativas.

Além disso, a infiltração de poluentes superficiais nos aquíferos preocupa. “Águas contaminadas por fertilizantes podem comprometer a qualidade dos aquíferos, agravando crises sanitárias”, destaca.

Chamado para ação integrada

Os pesquisadores defendem a gestão conjunta de águas superficiais e subterrâneas. “Políticas públicas precisam considerar que rios e aquíferos são um único sistema. A expansão da irrigação sem controle é insustentável”, afirmam. O estudo sugere o uso de ferramentas como o Índice de Bacia Efetiva para orientar decisões em áreas com poucos dados locais.

Limitações

A pesquisa ressalta limitações, como a escassez de dados hidrogeológicos detalhados em escala nacional. “Precisamos de monitoramento contínuo e investimento em infraestrutura de dados”, conclui. Os autores planejam expandir a análise para outros países tropicais, onde a pressão sobre recursos hídricos também é crítica.

Acesso aos dados

Os dados do estudo estão disponíveis publicamente no Sistema de Informações de Águas Subterrâneas (SIAGAS) do Serviço Geológico do Brasil.

Para lidar com as limitações dos dados disponíveis em escala nacional, os autores desenvolveram um novo índice, o Effective Catchment Index (ECI) [Índice de Bacia Efetiva], que permite estimar, de forma indireta, a conectividade entre os rios e os aquíferos. Eles destacam que essa ferramenta pode ser extremamente útil para orientar a gestão dos recursos hídricos em regiões onde os dados de monitoramento são escassos.

Edson Wendland (USP) observa que “o uso de ferramentas como o Índice de Bacia Efetiva é vital para regiões com poucos dados, mas precisamos de monitoramento contínuo.”

Em síntese, o estudo traz à tona um panorama preocupante: a vulnerabilidade dos recursos hídricos brasileiros frente ao uso intensivo e às alterações climáticas, ao mesmo tempo em que oferece novas ferramentas – como o ECI – para melhor compreender e gerenciar as complexas interações entre águas superficiais e subterrâneas.

Principais Resultados:

  1. Rios “perdedores” dominam regiões áridas e agrícolas:
    • 56,4% dos rios avaliados são classificados como perdedores, com perdas mais acentuadas em áreas secas (índice de aridez < 0,65) e polos agrícolas, como o Matopiba (fronteira entre MA, TO, PI e BA) e a Bacia do São Francisco.
    • Na Bacia do Verde Grande (MG), 74% dos rios perdem água, impulsionados pela irrigação, que consome 90% dos recursos hídricos locais.
  2. Fatores-chave:
    • Clima seco: Regiões com baixa relação precipitação/evapotranspiração (P/PETP/PET) têm maior propensão a rios perdedores.
    • Solo profundo: Áreas com regolito (camada superficial do solo) espesso facilitam a drenagem subterrânea.
    • Pressão humana: O bombeamento de água para irrigação está diretamente ligado ao declínio de vazões. Em bacias como a do São Francisco, o fluxo de base (água subterrânea que sustenta rios) já caiu 30%.
  3. Impactos globais:
    • Redução de vazões: 90% dos rios analisados tiveram queda na vazão desde 1970, com 11 deles apresentando tendências significativamente negativas.
    • Riscos à qualidade da água: Infiltração de poluentes agrícolas (como fertilizantes) ameaça aquíferos, essenciais para abastecimento.
    • Segurança alimentar em jogo: O Brasil, um dos maiores exportadores agrícolas do mundo, pode enfrentar crises produtivas se a água continuar escassa.

Ferramentas Propostas:

Os pesquisadores destacaram o Índice de Bacia Efetiva (Aeff/AtopoAeff​/Atopo​), calculado via sensoriamento remoto, como uma solução para identificar bacias que exportam água subterrânea (Aeff/Atopo<1Aeff​/Atopo​<1). Em bacias críticas, como as do Nordeste, mais de 60% dos poços estão abaixo do nível dos rios, validando a eficácia do método.

Recomendações:

  • Gestão integrada: Tratar rios e aquíferos como um sistema único.
  • Controle da irrigação: A expansão projetada de 50% nas áreas irrigadas nas próximas décadas exige regulamentação rigorosa.
  • Investimento em dados: A escassez de informações hidrogeológicas detalhadas limita ações precisas.

Dados completos disponíveis em: SIAGAS | Artigo original: Nature Communications

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