PEC enfrenta manobras privatistas para tornar saneamento um direito social

Senado está perto da votação em 1º turno que reconhece o acesso ao saneamento como direito social. Especialistas destacam impacto positivo na saúde pública, mas apontam riscos do lobby privatista.

Saneamento pode se tornar um direito humano fundamental no Brasil, que corre pra privatizar as empresas que buscam apenas o lucro, em detrimento da oferta do direito a água limpa

O Senado realiza nesta terça-feira (8), a partir das 14 horas, a quinta e última sessão de discussão, em primeiro turno, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 2/2016, que reconhece o acesso ao saneamento básico como um direito social. A proposta, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), será votada após essa etapa e, se aprovada, ainda precisará passar por outras três sessões antes do segundo turno.

A PEC altera o artigo 6º da Constituição Federal, que atualmente lista como direitos sociais a educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, alimentação, previdência social e segurança. O texto tem parecer favorável do relator, senador Rogério Carvalho (PT-SE), e já foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em 2022.

Com a PEC prestes a ser votada, cresce a expectativa de que o Estado assuma o protagonismo em garantir o acesso universal ao saneamento. Para isso, especialistas e movimentos sociais apontam a necessidade de ampliar o financiamento público, fortalecer as empresas estatais e garantir que o direito não fique apenas no papel. No entanto, há quem alerte para o lobby de setores que visam a favorecer empresas privadas que assumem a prestação dos serviços. Há o risco do direito se tornar uma fonte de desvio de recursos públicos para dar lucratividade a esses grupos empresariais.

Um direito esquecido, apesar da sua urgência

Randolfe argumenta que o saneamento básico é um tema frequentemente negligenciado, apesar de estar diretamente ligado ao direito à saúde. Segundo ele, a inclusão explícita na Constituição reforça a responsabilidade do Estado em garantir acesso universal à água tratada e à coleta de esgoto.

“As consequências da falta de saneamento têm sido muito graves para a qualidade de vida da população, principalmente da parcela mais empobrecida”, afirma o senador.

Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) revelam que metade da população brasileira não tem acesso à coleta de esgoto e 17% vivem sem água tratada. A ausência desses serviços provoca surtos de doenças como diarreia, verminoses, hepatite, leptospirose, febre amarela e esquistossomose.

Reforma urbana e crítica à privatização

A proposta tem apoio de entidades sindicais e ambientalistas consultados pelo Portal Vermelho, mas também levanta discussões sobre os caminhos necessários para sua efetivação. Para Paulo Sérgio Farias, presidente da CTB-RJ (Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil) e representante do Sintsama (Sindicato dos Trabalhadores em Saneamento), a medida é um passo importante, mas insuficiente.

Paulo Farias, da CTB-RJ e Sintsama

“A PEC 2/2016 dá visibilidade ao saneamento como direito, mas a questão central é a universalização do serviço, algo que foi desmontado com a abertura para privatizações”, afirma. Farias cita o Plano Nacional de Saneamento (Plansab), lançado em 2013 pela ex-presidenta Dilma Rousseff, que previa R$ 508 bilhões de investimento até 2032 — plano paralisado após o impeachment.

Ele cita a Lei 11.445/2007, que acabou sendo reformada para permitir concessões ao setor privado, o que, segundo ele, beneficiou grupos transnacionais e encareceu o serviço. “A pergunta é: como compatibilizar a universalização com o lucro? Essa contradição está por trás da reversão de privatizações em várias partes do mundo”, pontua.

No caso do Rio de Janeiro, segundo Farias, a concessão da Cedae, em 2021, levou a aumentos de tarifa e registros alarmantes de falta d’água, inclusive em bairros de classe média. “O Estado precisa retomar o papel central no saneamento, com financiamento público via BNDES”, defende.

Disputa entre o público e o privado

Rene Vicente, dirigente da CTB-SP e do Sintaema

Rene Vicente, presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil em São Paulo (CTB-SP) e dirigente do Sintaema (Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo), ressalta a importância da PEC para garantir o avanço do saneamento básico no Brasil. No entanto, ele alerta para os riscos associados à crescente onda de privatizações no setor.

“A inclusão do saneamento básico como direito humano é fundamental para o desenvolvimento do país. Estamos atrasados em relação à Declaração da ONU de 2010, que reconhece o acesso à água limpa e ao saneamento como direitos universais. Em vez disso, estamos indo na contramão do resto do mundo que reestatizou as empresas privadas pela ineficiência que demonstraram”, argumenta Vicente.

Para ele, a principal preocupação é que a PEC sirva de justificativa para injeções massivas de recursos públicos em empresas privadas, que se apresentariam como solucionadoras do problema. “A iniciativa privada vai tentar se colocar como a salvadora da pátria, mas os dados mostram o contrário. Por exemplo, em Manaus, onde o saneamento foi privatizado em 2010, a cidade registra hoje um dos piores índices de saneamento básico do país. Não houve o avanço prometido”, critica.

Por outro lado, Vicente destaca o caso de São Paulo, onde a Sabesp, empresa pública estadual, apresenta índices elevados de cobertura. “Mais de 97% da população paulista tem acesso à água tratada, e mais de 80% dos esgotos são coletados e tratados. Isso demonstra que o setor público é capaz de universalizar o saneamento quando bem gerido”, defende.

Segundo Rene Vicente, o grande embate está na disputa entre o capital privado e o interesse público. “As empresas privadas querem explorar os lucros do saneamento, mas esse é um serviço essencial que deve priorizar o bem-estar da população. A experiência mostra que o setor público tem condições de antecipar as metas nacionais de universalização, como ocorre com a Sabesp em São Paulo.”

Água como direito e política de saúde

José Bertotti, Instituto Toró, ex-secretário de Meio Ambiente de Pernambuco

Para José Bertotti, fundador do Instituto Toró e ex-secretário de Meio Ambiente de Pernambuco, a aprovação da PEC representará um avanço civilizatório. “Tratar a água como direito constitucional é reconhecer seu papel essencial para a vida, o desenvolvimento e a saúde pública.”

Bertotti destaca a desigualdade no acesso ao saneamento, que não seria apenas um problema regional. Mesmo em cidades desenvolvidas, como São Paulo e Rio de Janeiro, bairros periféricos convivem com esgoto a céu aberto e falta de água tratada. No Norte e Nordeste, a situação se agrava devido à alta concentração de renda e ausência de políticas estruturais.

“Saneamento é questão de justiça social. Onde falta água, há doenças tropicais, internações, mortes. E isso pesa no SUS. Cada real investido em saneamento economiza três reais em saúde pública”, afirma.

Ele lembra que desastres ambientais, como as enchentes no Rio Grande do Sul, escancaram a vulnerabilidade causada pela ausência de esgotamento sanitário. “A leptospirose e outras doenças se alastraram com as enchentes”, completa.

“Água não é mercadoria, é vida”

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema), José Faggian, defendeu com veemência a inclusão do saneamento básico como um direito garantido na Constituição Federal. Segundo ele, trata-se de um “salto de qualidade” civilizatório e de uma necessidade urgente diante das ameaças representadas pelas privatizações no setor.

Para Faggian, o principal avanço da proposta é garantir que “todo cidadão brasileiro, independente da capacidade de pagamento, tenha direito à água e ao saneamento”. Ele ressalta que esses serviços são diretamente ligados à saúde e à qualidade de vida da população.

“Trata-se de um salto de qualidade para o nosso povo. Garantir isso na Constituição é garantir dignidade, bem-estar e saúde pública de forma permanente”, destacou o dirigente sindical.

Faggian alerta que a lógica privatista do setor de saneamento vai na contramão da garantia do direito universal. Segundo ele, a busca pelo lucro inerente ao setor privado é incompatível com a prestação de um serviço que deve atender a todos, inclusive os que não podem pagar.

“Quando você privatiza, transforma esse serviço essencial em mercadoria. A missão da empresa deixa de ser atender a população e passa a ser obter o maior lucro possível. E isso conflita diretamente com a lógica do direito humano e universal ao saneamento”, argumentou.

O presidente do Sintaema defende que a prestação de serviços de água e esgoto continue sob responsabilidade pública. “Esse tipo de serviço tem que ser prestado pelo Estado, pois não pode ter o lucro como objetivo principal”, enfatiza.

O sindicalista resumiu o sentido da luta em torno da constitucionalização do direito ao saneamento:
“O fundamental é garantir que o saneamento esteja na Constituição como um dos principais direitos do povo. Isso torna obrigatório que todos tenham a possibilidade de acesso à água e ao esgoto de qualidade. Água não é mercadoria. É vida.”

Tramitação

Se for aprovada em primeiro turno, a proposta ainda terá de passar por mais três sessões de discussão antes de ser submetida à votação final no Senado. Para ser promulgada, a PEC precisa do apoio de três quintos dos senadores (49 votos) em dois turnos de votação.

A expectativa dos parlamentares é que o reconhecimento do saneamento como direito constitucional ajude a fortalecer políticas públicas e ampliar o orçamento destinado ao setor, pressionando governos em todas as esferas a cumprir sua responsabilidade com a população mais vulnerável.

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