Movimentos lançam Plebiscito sobre fim da escala 6×1 e imposto sobre fortunas

Unidade marcou o lançamento do Plebiscito Popular em São Paulo, na luta pela redução da jornada de trabalho e por impostos para os super-ricos a realizar-se em setembro.

Movimentos e entidades da sociedade civil se uniram para mobilizar em torno do plebiscito popular, lançado no Largo São Francisco, em São Paulo.Foto: Roberto Parizotti/CUT

“Eu trabalhava na escala 6 por 1. Eu tinha um dia de febre e nem conseguia ver minha mãe. No único dia de folga que eu tenho, meu único desejo é viver o dia inteiro. Não temos tempo nem para sonhar”.

Essas frases, marcadas pela exaustão e revolta, abriram a assembleia que lançou oficialmente a campanha nacional pelo Plebiscito Popular pelo fim da escala 6 por 1, em defesa da redução da jornada de trabalho sem redução de salário e pela tributação de super-ricos para isentar quem ganha até R$ 5 mil do imposto de renda. O plebiscito será um processo de mobilização que deverá culminar com a votação prevista para setembro.

Na noite desta quinta-feira (10), o Salão Nobre da tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), foi palco do ato político. O evento reuniu representantes de movimentos sociais, sindicatos, entidades estudantis, lideranças religiosas e personalidades do campo progressista para dar início à jornada que visa escutar diretamente o povo brasileiro sobre temas centrais da agenda social e econômica do país.

Poucas mobilizações sociais têm causado a comoção que se viu nas arcadas do prédio do Largo São Francisco, com as denúncias emocionadas das condições de trabalho que vêm adoecendo física e emocionalmente a classe trabalhadora no Brasil. Para os organizadores, essas bandeiras são estratégicas e possuem potencial de mobilizar a classe trabalhadora, sobretudo frente a um cenário político adverso.

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Plenária lança Plebiscito Popular para reduzir a jornada e tributar bilionários

Unidade para enfrentar a correlação de forças

A mesa foi formada por uma ampla representação de movimentos sociais, entidades sindicais e partidos, como o coordenador do Plebiscito Popular, Igor Felippe, do MST (Movimento Sem Terra), por Manuela Mirella, presidenta da UNE (União Nacional dos Estudantes), por Nilza Pereira, da Intersindical e Milton Rezende, da CUT (Central Única dos Trabalhadores), que fizeram a apresentação das pautas do plebiscito.

Depois desses, fizeram saudações de apoio à iniciativa Jéssica do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Dom Manuel, pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Rafael Leal, presidente da UJS (União da Juventude Socialista), Roberta Pontes, da Ubes (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), Paula Coradi, presidenta do PSOL, Miriam da (Central de Movimentos Populares), Antonio Pedro de Sousa, o Tonhão da Conam (Confederação Nacional das Associações de Moradores), Rovilson Brito, presidente do PCdoB-SP, entre tantos outros.

O ato contou com a presença de nomes históricos da esquerda brasileira como José Dirceu e José Genoino, ex-presidentes do PT; Walter Pomar, do diretório nacional do partido; e parlamentares como o deputado estadual Antônio Donato, a vereadora Karla Coser (ES), Nivaldo Santana, da direção da CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil), o deputado federal Orlando Silva, representando o PCdoB, a ex-vereadora Ana Martins, que é da UBM e do Fórum Social da Zona Leste e lideranças de diversas entidades, entre elas a Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo, Fórum das Centrais Sindicais, UBM, Instituto Lula, Frente Cristã Socialista e o Observatório Nacional de Desenvolvimento, Abastecimento e Saneamento (ONDAS).

O clima de unidade política entre os movimentos sociais se fortaleceu quando Daiane Araújo, a apresentadora, conclamou o público a fazer do plebiscito uma grande ferramenta de pressão sobre o Congresso Nacional. “O Congresso está preocupado com anistia para golpista. Mas nós temos outra palavra de ordem: sem anistia, pela redução da jornada, pela justiça tributária — que os ricos paguem o imposto de renda neste país!”

Exaustão e invisibilidade: o cotidiano de milhões

Segundo dados do Ministério da Previdência Social, 2023 bateu recorde histórico de afastamentos por doenças relacionadas ao trabalho. Entre elas, doenças mentais, lesões por esforço repetitivo, intoxicações químicas e até mesmo mortes por acidentes que poderiam ser evitados.

Um dos casos emblemáticos foi o de Daniel Oliveira, operador de equipamentos na mineradora Kiran, em Minas Gerais. Daniel morreu esmagado por uma peça de equipamento durante uma operação para a qual ele sequer havia recebido treinamento adequado. Casos como o dele se somam aos de trabalhadores afetados por descargas elétricas, produtos tóxicos e jornadas intermináveis. 

O evento escancarou o abismo que separa quem vive do trabalho e quem lucra com ele. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), quase 3 milhões de trabalhadores morrem por ano em todo o mundo em decorrência de causas relacionadas ao trabalho — número maior que o de mortos em guerras e conflitos armados.

A hora da consciência: Plebiscito Popular

A assembleia anunciou oficialmente o lançamento do Plebiscito Popular por Justiça Social e Redução da Jornada de Trabalho, com o objetivo de mobilizar milhões de brasileiros em defesa de direitos históricos.

Com representações de todo o país — de Pernambuco ao Rio Grande do Sul, passando por São Paulo, Minas, Bahia e Pará —, o evento reforçou o chamado à construção coletiva.

Histórico de lutas e esperança no futuro

A campanha se inscreve numa longa trajetória de mobilizações populares:

  • Em 2000, milhões de brasileiros participaram do Plebiscito sobre a dívida externa.
  • Em 2002, movimentos sociais rejeitaram em massa a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
  • Em 2005, houve ampla campanha pela regulamentação do controle de armas.
  • Em 2014, cerca de 7,7 milhões votaram por uma Constituinte para a reforma política.

Agora, em 2025, a pauta é clara: reduzir a jornada de trabalho sem reduzir salário, taxar as grandes fortunas e responsabilizar os verdadeiros culpados pela desigualdade e precarização da vida.

A assembleia contou com falas emocionadas e firmes sobre a importância de construir, por meio de uma ampla mobilização popular, uma democracia mais participativa. Julia Wong, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, saudou os presentes e reforçou a simbologia do espaço, assim como o diretor da Faculdade de Direito, professor Celso Campilongo, também deu as boas-vindas, sublinhando o papel da universidade pública como espaço de pluralismo e debate crítico. 

Plebiscito como instrumento de luta

Igor Felippe Santos, articulador do plebiscito, destacou o papel histórico que instrumentos de consulta popular tiveram nas últimas décadas, como os plebiscitos contra a ALCA (2002), pela reestatização da Vale (2007) e por uma nova constituinte (2013). “Estamos retomando uma tradição das lutas populares no Brasil. E agora, em 2025, queremos fazer do plebiscito popular a principal iniciativa das forças progressistas”, afirmou.

Segundo ele, o plebiscito é construído como uma resposta unitária às ameaças de retrocesso em direitos sociais e soberania nacional. “Nós elegemos Lula em 2022, mas enfrentamos um Congresso conservador, a pressão do capital financeiro e uma extrema-direita ativa. A resposta precisa ser a mobilização do povo”, disse.

Etapas da campanha e organização popular

O plebiscito será realizado em setembro, com votações presenciais e online em todo o território nacional, e até lá, os movimentos preveem três fases principais: organização, mobilização e votação. A fase atual é de formação de comitês populares em bairros, escolas, universidades e locais de trabalho. Os resultados serão entregues oficialmente às autoridades em março de 2026.

“Precisamos retomar o bom e velho trabalho de base. Formar núcleos, realizar debates, escutar o povo nas ruas, dialogar com milhões de brasileiros e brasileiras”, enfatizou Igor, convocando a militância a se engajar desde já na construção da campanha.

Igor destacou o cronograma que será seguido nos próximos meses. A primeira fase consiste em viagens preparatórias, organizando comitês populares e fortalecendo a base nos territórios. “Essa é a primeira tarefa. A segunda fase é a da coleta de votos, quando vamos às ruas dialogar com a população e colher as escolhas do povo diante dos três temas. A terceira fase será a entrega do resultado ao presidente Lula, ao Congresso Nacional e ao Judiciário. Essa será a expressão da vontade popular”, explicou Igor.

Unidade inédita e disputa de rumos

Um dos pontos altos da noite foi a reafirmação da unidade entre diferentes setores do campo popular. “Há muito tempo não conseguíamos essa unidade em torno de pautas tão concretas, que falam diretamente à vida do povo trabalhador”, celebrou Igor.

A expectativa é que o plebiscito se torne uma poderosa ferramenta de pressão política sobre o Congresso e o governo federal, em um ano em que temas como a reforma tributária ganham centralidade. “A grande disputa será a taxação dos super-ricos. A existência do imposto de renda todo mundo defende, mas vamos ver quem está mesmo a favor da justiça tributária”, provocou.

“Começamos hoje a largada de uma disputa ideológica e uma batalha por corações e mentes. Vamos às ruas, às praças, aos locais de trabalho. É hora de ouvir o povo e fazer do plebiscito um instrumento de transformação”, concluiu Igor.

A pauta da redução da jornada

Antes de entrar no tema do trabalho, Milton Rezende, dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), puxou uma saudação ao povo argentino em greve geral contra as políticas do presidente Javier Milei e prestou solidariedade ao deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), ameaçado injustamente de cassação.

Milton também destacou que a redução da jornada de trabalho é uma pauta histórica da classe trabalhadora e tem o potencial de transformar profundamente a realidade brasileira. “A redução da jornada permite geração de emprego, combate à miséria e mais tempo livre para o trabalhador viver, estudar, descansar. É uma pauta de vida”, disse.

Ele ressaltou ainda o papel da medida na democratização das tarefas domésticas: “Não é possível que só as companheiras cuidem do lar. Reduzir a jornada é também abrir espaço para que mais mulheres possam se organizar politicamente, estudar, participar da luta.”

Justiça fiscal: “Super-ricos não são quem tem carro do ano”

A presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE), Manuela Mirella, apontou a urgência da reforma tributária popular como caminho para enfrentar as desigualdades. “Nosso plebiscito não é só sobre votar. É um processo formativo. Vamos explicar para o povo que os super-ricos não são quem tem uma casa própria ou um carro do ano. São os bilionários, que lucram enquanto o povo vive sob opressão”, afirmou, arrancando aplausos do público.

Ela também lembrou que o movimento estudantil está engajado na mobilização desde fevereiro, quando mais de 3 mil centros acadêmicos participaram do Conselho Nacional de Entidades de Base da UNE. “Nos comprometemos com o plebiscito e estamos prontos para ir às ruas.”

Com o plebiscito popular, os movimentos esperam não apenas pressionar os poderes constituídos, mas também formar politicamente milhões de brasileiros e brasileiras. “A extrema direita tem fake news e big techs. Nós temos o povo, e é com ele que vamos construir um Brasil justo”, concluiu Manuela.

A jovem liderança destacou o simbolismo de iniciar o plebiscito ali, no coração da elite jurídica do país: “É nossa responsabilidade romper os muros das universidades e dialogar com o povo nos rincões do Brasil. Nós temos um projeto nacional de desenvolvimento, um projeto popular!”.

Fim da escala 6×1 e o marco civilizatório

Nilza Pereira, dirigente da Frente Povo Sem Medo e da Intersindical, trouxe à tona a luta histórica da classe trabalhadora por melhores condições de vida. Em um discurso combativo, ela denunciou a lógica exaustiva da escala 6 por 1, que impede o convívio social, a educação e o direito ao descanso digno. “Essa escala destrói a vida de jovens e mães trabalhadoras. É um projeto de desumanização”, afirmou. Segundo ela, o movimento “Vida Além do Trabalho”, que viralizou nas redes, já colheu 3 milhões de assinaturas e virou projeto de lei no Congresso, apresentado pela deputada Erika Hilton.

Saudações ecumênicas e compromisso popular

A segunda parte do evento ficou reservada para falas rápidas de entidades que integram a articulação nacional do plebiscito.

Representantes de diversas frentes reforçaram o caráter plural do plebiscito. O encerramento da primeira parte do ato teve a fala emocionante de Dom Manoel Ferreira dos Santos Junior, bispo da diocese de Registro (SP), que levou uma saudação da CNBB em nome da Comissão Sócio-Transformadora:

“A Igreja esteve sempre presente na defesa da vida e da dignidade do povo de Deus. O Papa Francisco nos convida a sermos poetas sociais — e ver tantos jovens aqui lutando por um Brasil mais justo é motivo de esperança.” Ele citou os esforços do Papa Francisco em defesa de um mundo menos desigual e mais solidário.

“Quando você dá algo ao pobre, não está doando o que é seu, mas devolvendo o que é dele”, recordou, citando Santo Ambrósio. E São Basílio complementa: “O pão que você guarda pertence ao faminto. O manto no armário é do que está nu. O dinheiro enterrado é do necessitado.”

“Estamos muito contentes, como bispos do Brasil, em ver que se criaram as condições para a realização deste plebiscito popular”, afirmou Dom Manoel. A iniciativa nasce como fruto da Sexta Semana Social Brasileira, processo de quatro anos de debates, formações e articulações que culminaram no projeto O Brasil que queremos: o bem viver dos povos, inspirado na luta por terra, teto e trabalho.

A luta contra a extrema-direita e pela democracia

Rovilson Brito, presidente do PCdoB-SP ressaltou a ofensiva da extrema-direita e os esforços de anistia aos responsáveis pelo 8 de janeiro: “O plebiscito popular é também uma resposta política. É luta ideológica, é resistência no chão da fábrica, na rua e nas redes.”

“Não haverá perspectiva de uma nação soberana, não haverá democracia popular sem uma limpeza social do fascismo, sem a imunização do nosso corpo coletivo”, afirmou uma das militantes. Para ela, o plebiscito é o início de uma “onda capaz de derrotar a extrema-direita e abrir caminho para outro projeto de desenvolvimento, para o socialismo”.

O trabalho e a fé como instrumentos de libertação

O reverendo Danilo Prado, da Igreja Metodista, fez uma intervenção lembrando que a luta por direitos e dignidade é também uma luta espiritual. “Estamos a poucos dias da Páscoa, que é, antes de tudo, libertação do povo. E isso passa por falar do fim da escala 6 por 1”, disse, referindo-se ao regime exaustivo de trabalho sem descanso digno.

Prado também lembrou o papel dos evangélicos progressistas na história das lutas sociais. “Pensar que ser evangélico é apoiar fascismo e preconceito é esquecer que estivemos nos sindicatos na Revolução Industrial, nas greves, nas fábricas incendiadas. É hora de resgatar esse sentido”.

Reconectar com o povo

Tonhão, da Conam, destacou o esforço coletivo para selecionar pautas capazes de reconectar a esquerda com a base da classe trabalhadora. “Temos que falar com os que votaram em Bolsonaro, que não são de esquerda, mas que sofrem com a precarização e vão compreender nossas propostas”, explicou.

Ao final, os organizadores convocaram os presentes a iniciarem imediatamente a mobilização nos territórios: “A largada foi dada. Em cada escola, em cada praça, em cada estação de metrô, o povo brasileiro começa a construir seu futuro com as próprias mãos”.

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