Big techs e democracia: quem controla o que você vê na internet?

Renata Mielli, do CGI.br, alerta para o poder abusivo das gigantes da tecnologia e explica por que a regulação das redes é vital para a democracia e a soberania digital

Renata Mieli no programa DR com Demori | Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Na era digital, o poder se concentra em telas lisas e interfaces minimalistas. Mas por trás da aparência inofensiva das big techs, como Google, Meta e Apple, operam engrenagens que moldam comportamentos, economias e democracias. Quem levanta esse alerta é a jornalista Renata Mielli, coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), na mais recente edição do programa DR com Demori, da TV Brasil.

Em entrevista a Leandro Demori, Mielli expôs o poder concentrado das big techs, a falta de regulação das redes sociais e o impacto disso sobre a soberania dos países, a saúde pública e a própria democracia.

 “São hoje as empresas mais valiosas da história do capitalismo mundial”, afirmou Renata. “Se você olhar e somar o valor de mercado dessas empresas, é maior do que o PIB de muitos países (…) É contra esse capitalismo de plataformas que estamos guerreando para defender a democracia, defender a soberania das nações.”

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Mielli critica a falsa neutralidade promovida pelas big techs. “A missão do Facebook é conectar pessoas e construir um mundo melhor. A do YouTube é dar voz. A do Google, organizar as informações do mundo. A questão que não está dita nessas missões é que eles dão voz a quem querem, conectam quem acham que devem conectar e organizam as informações que consideram importantes para a gente receber de uma forma totalmente opaca, sem nenhum escrutínio público e com isso eles vão dominando a circulação de informação, de notícia, de cultura, entretenimento. (…) nós estamos, enquanto humanidade, perdendo a capacidade de refletir criticamente sobre as coisas que nos chegam por essas redes”, explicou.

“A gente não tem nem tempo de refletir, porque o design frenético faz com que a gente reaja e não reflita sobre os conteúdos que a gente recebe. Esse é o poder dessas empresas.” – Renata Mielli.

Algoritmos, negócios e censura disfarçada

Durante a entrevista, Renata esclarece que os algoritmos passam longe de serem neutros, direcionando o conteúdo para maximizar o tempo de permanência e engajamento nas páginas — convertidos em lucro. “Esse algoritmo nos transforma em mercadoria. É um sistema de perfilamento que entrega ao usuário exatamente o que o prende mais, o que mais o engaja — mesmo que isso o desinforme ou o adoeça”.

Sobre a resistência à regulação no Brasil, Renata foi enfática ao desmistificar a ideia de que “regular é censurar”. Segundo ela, regular é definir regras para o bom funcionamento de um setor econômico. Diante disso não existe, por exemplo, restaurante sem Anvisa, nem petroleira perfurando calçada. Já para Demori, as pessoas também não entendem ainda esse ambiente de rede social como um ambiente de negócios que tem que ser regulado.

Segundo ela, o lobby das próprias big techs foi decisivo para o travamento do PL 2630 (o chamado PL das Fake News). “O Google usou a sua página de busca branquinha para espalhar desinformação sobre o projeto de lei”, denunciou.

A regulação, explica, tem foco na prestação de serviços — e não na censura de conteúdos individuais. Questões como transparência dos critérios de moderação, canais de atendimento ao usuário e a possibilidade de contestar decisões das plataformas são centrais. “Não tem nenhum SAC? Vamos ser bem francos aqui?”, ironizou. “Esse é o objetivo da regulação: transparência”.

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Ela lembra que já há leis que obrigam plataformas a removerem conteúdo como pedofilia, e defende uma regulação mais ampla cujo foco deve ser o modelo de negócios, os critérios de moderação de conteúdo, a transparência e o empoderamento do usuário. “Todo mundo já teve um post retirado do ar ou um perfil suspenso sem saber por quê. Isso precisa mudar”.

STF, artigo 19 e a falta de legislação específica

Mielli também chamou atenção para o vácuo legal que levou o Supremo Tribunal Federal a analisar a constitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet, o qual, originalmente, não foi pensado para redes sociais.

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Ela explicou que as plataformas digitais que interferem ativamente na distribuição dos conteúdos — por impulsionamento pago ou decisões algorítmicas — devem ser consideradas sócias desses conteúdos e, portanto, responsabilizadas. “Eles precisam ser responsabilizados por esse tipo de coisa que diz respeito muito mais a esse modelo de direcionamento do que ao conteúdo X ou Y.”

Riscos à soberania digital

A dependência quase total do Brasil em aplicativos como o WhatsApp também foi apontada como um risco à segurança nacional, já que hoje um país inteiro funciona dentro de um único aplicativo, seja  escola, trabalho, saúde, banco etc. “Estamos completamente dependentes. Um apagão no WhatsApp causa um colapso”, advertiu Mielli. “Nós precisamos iniciar um movimento de ter mais soberania tecnológica digital”, afirma.

Renata defende o desenvolvimento de plataformas nacionais — especialmente em áreas como educação, serviços públicos e inteligência artificial. A jornalista também revelou que as big techs, alinhadas a interesses geopolíticos, vêm atuando para barrar legislações regulatórias em todo o mundo, inclusive com apoio do governo dos EUA após a chegada de Donald Trump à presidência. “Com a vitória do Trump, eles passaram à ofensiva contra a regulação e eles vão pagar para ver.”

Apesar das dificuldades, Mielli se mostra determinada e reforça: “Nós estamos num processo muito complexo, muito delicado e que eu acho que a gente tem que ter paciência para usar espaços (…) para falar mais sobre essas questões. Entender o que está por detrás disso, essa narrativa que nos individualiza. O neoliberalismo já nos individualizava e agora essas plataformas acabam com qualquer possibilidade de uma reflexão coletiva, de uma construção do contato, da relação das pessoas. Está tudo individualizado por uma plataforma de vídeos que te emburrece e te isola do mundo, enquanto eles nos manipulam. Não é fácil. Eu espero que a gente tenha resiliência e determinação para enfrentar esse momento. Eu luto para isso todos os dias.”

Assista à entrevista completa.

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