Desdolarização avança no NDB e Trump reage com chantagens contra “marco estratégico”

Dilma Rousseff posiciona o Banco dos BRICS na vanguarda da arquitetura financeira do Sul Global. Leia análises de Elias Jabbour, Evandro Carvalho e Augusto Rinaldi

A presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), Dilma Rousseff, defendeu com firmeza a ampliação do uso de moedas locais nos financiamentos do banco criado pelo BRICS. Foto: NDB

A presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), Dilma Rousseff, defendeu com firmeza, nesta quarta-feira (9), a ampliação do uso de moedas locais nos financiamentos do banco criado pelo BRICS. Ao discursar no seminário “Transição Energética e Sustentabilidade do Futuro”, realizado na sede do BNDES, no Rio de Janeiro, a ex-presidenta brasileira anunciou que cerca de 25% das operações já são feitas em moedas locais e que a meta de 30% até 2026 está próxima de ser cumprida.

Para analistas ouvidos pelo Portal Vermelho, essa mudança de padrão representa um movimento estratégico de desdolarização da arquitetura financeira global, articulado principalmente por países do Sul Global em resposta aos riscos geopolíticos e às assimetrias históricas da ordem econômica internacional.

Um marco na integração financeira do Sul Global

Elias Jabbour, economista foi assessor de Dilma no NDB

O geógrafo e economista Elias Jabbour, ex-assessor da própria Dilma Rousseff no NDB, avalia que a meta anunciada nesta semana consolida o banco como pioneiro entre os organismos multilaterais de desenvolvimento. “Estamos falando de um banco que, já em 2024, opera com 26% das transações em moedas locais. Isso é inédito. É uma virada que representa a integração financeira do Sul Global com maior autonomia em relação ao dólar”, afirmou. “Esse nível de operação em moedas locais é um marco para bancos multilaterais.”

Jabbour vê na iniciativa uma ruptura silenciosa, mas estratégica: “Esse número de 30% pode parecer modesto, mas é estrutural. Nenhum outro banco multilateral alcança esse patamar. E esse tipo de política reduz a vulnerabilidade externa, ao evitar que países dependam das oscilações de moedas que não controlam.”

Menos custo, mais soberania: os ganhos práticos da desdolarização

Evandro Menezes de Carvalho é coordenador do Núcleo de Estudos Brasil-China da Escola de Direito do Rio de Janeiro e da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito Rio)

Para o jurista e professor de relações internacionais Evandro Carvalho, da UFF, FGV e da Universidade de Língua e Cultura de Pequim, o uso de moedas locais em transações bilaterais tem benefícios concretos. “A primeira vantagem é a redução dos custos de transação. A segunda é a segurança financeira para países que mantêm intercâmbio comercial constante, como Brasil e China”, explicou.

Ele citou o exemplo da operação entre a brasileira Suzano e importadores chineses, que foi parcialmente realizada em moeda local. “Em acordos comerciais duradouros, faz muito sentido evitar o dólar. E mais: ao contornar o sistema SWIFT, essas operações reduzem a exposição política e financeira à jurisdição americana”, disse.

Carvalho alertou, porém, que há riscos de desvalorização das moedas nacionais, que precisam ser mitigados. “É aí que entra o papel do NDB como garantidor dessas operações, criando instrumentos para blindar os países contra volatilidades. Esse será o verdadeiro teste da eficácia do modelo.”

O descontrole sobre as flutuações do dólar

Augusto Leal Rinaldi é professor de Relações Internacionais da PUC-SP

O professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Augusto Leal Rinaldi, explica que, quando os países usam suas próprias moedas nas transações comerciais, isso dá a eles maior controle sobre a manutenção dos preços contratados. “Isso acontece porque ficam menos expostos às flutuações cambiais de mercado, algo que eles não controlam”.

Como muitos contratos são feitos em dólar, Rinaldi explica que, quando o valor internacional dessa moeda sobe, automaticamente o custo das transações também sobe, afetando negativamente os negócios. “Assim, é mais seguro realizar essas transações com moedas locais que, embora não tenham a mesma aceitação que o dólar, são mais interessantes em termos de controle de preços e previsibilidade de comportamento”, completa.

Trump reage: entre tarifas e a cruzada contra os BRICS

As declarações de Dilma e os avanços do NDB não passaram despercebidos por Donald Trump. O presidente norte-americano ameaçou taxar países que adotem o que chamou de “medidas antiamericanas”. Para Evandro Carvalho, no entanto, o incômodo de Trump revela um embate mais profundo do que uma simples disputa cambial.

“Na verdade, o que está em jogo é a tentativa de reconstruir a hegemonia global dos EUA frente ao avanço da China e à consolidação de uma ordem multipolar. O ataque de Trump à desdolarização se articula com sua oposição à regulação das big techs, que é hoje uma ferramenta essencial da extrema direita global”, afirmou. “O ataque de Trump ao BRICS visa restaurar o modelo de vassalagem e controle digital pela extrema direita.”

Segundo ele, a rejeição de Trump ao governo Lula e à aproximação do Brasil com China e Rússia não é apenas ideológica. “É estratégica. Um Brasil alinhado aos BRICS representa um obstáculo para o projeto de domínio das plataformas digitais por parte da extrema direita. A eleição de Bolsonaro, nesse contexto, interessa ao trumpismo não por afinidade, mas por utilidade.”

BRICS como fronteira geopolítica: resistir ou ceder?

A meta do NDB de operar 30% em moedas locais até 2026, defendida por Dilma Rousseff, ocorre em meio a um cenário internacional de crescentes tensões. Os BRICS se expandiram, somando 11 membros em 2024, e o banco já desembolsou mais de US$ 7 bilhões apenas para o Brasil. Mas sua atuação esbarra nos limites da ordem financeira dominada por Washington.

“O que Trump quer é reinstaurar uma lógica de estado vassalo na América Latina. Seu ataque ao BRICS e ao NDB visa pressionar elites locais a se afastarem de qualquer alternativa ao sistema dominado pelos EUA”, pontuou Carvalho. “É por isso que a resistência brasileira ao abandono dos BRICS será crucial nas eleições de 2026.”

Rinaldi, por sua vez, considera a simples ideia central por trás do que tem sido chamado de BRICS Inter-Bank Payment Initiative (ou BRICS Pay), para contornar o uso do dólar nas transações comerciais entre os membros do arranjo, motivo suficiente para Trump preocupar-se e reagir com estridência. “Com a proposta do Brics Pay, os EUA não somente veem o valor da sua moeda perder relevância no mercado global, como também sua hegemonia monetária passa a ser questionada”.

O cientista político, contudo, considera importante ressaltar que o dólar continua sendo a moeda de troca e reserva dominante, com muitos obstáculos a serem enfrentados para que, de fato, os países possam avançar com comércio e transações financeiras em outras moedas. “O BRICS está na vanguarda dessas iniciativas e me parece que, daqui para a frente, só tende a se aprofundar, dado os múltiplos benefícios que os países podem colher numa situação de maior internacionalização das suas próprias moedas nacionais”, avalia.

Um desafio que vai além da economia

A ampliação do uso de moedas locais no NDB não é apenas uma política financeira. É um projeto político de soberania. É um gesto de enfrentamento à ordem global dolarizada que impõe vulnerabilidade aos países do Sul Global. Para Jabbour e Carvalho, a resistência a esse modelo, inclusive diante das ameaças de Trump, será um dos grandes dilemas do próximo ciclo político.

Dilma, por sua vez, aponta um caminho: “É preciso redesenhar a arquitetura do financiamento internacional. Sem isso, países como os nossos continuarão pagando caro pelo simples direito de se desenvolver.”

📊 Números do NDB

  • Fundado em 2014 pelos países do BRICS
  • 122 projetos aprovados desde então
  • US$ 40 bilhões em investimentos totais
  • 29 projetos no Brasil, somando US$ 7 bilhões
  • Meta de 30% dos financiamentos em moedas locais até 2026

O NDB pode não romper de imediato a hegemonia do dólar, mas seu avanço rumo à desdolarização inaugura um novo capítulo na luta por soberania financeira do Sul Global — e acende os alertas de um império em crise.

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