As copas de todos nós

Quando mais uma Copa do Mundo começa é inevitável encontrarmos pessoas que acusam o futebol de ser, em essência, alienante. Instrumento para desviar a atenção do povo dos seus problemas fundamentais. Parte integrante do v

A primeira constatação que podemos fazer é que em relação ao Brasil essa fórmula é um tanto capenga, pois falta pão para muita gente. Depois, se é verdade que o futebol é usado como um anestésico poderoso (ópio, se preferirem) é verdade também que a burguesia usa de diversos outros instrumentos para perpetuar e enraizar seus valores. A literatura, o teatro, o cinema, a televisão e a imprensa fazem, na imensa maioria das vezes, propaganda (subliminar ou aberta) do modo de vida capitalista. E nem por isso, os que lutamos por uma outra sociedade, vamos ser contrários ao teatro, à literatura ou ao cinema. Temos é que procurar brechas que nos permitam entrar nessa disputa de idéias, seja em que campo for.

O futebol é onipresente nas manifestações culturais do nosso país. O "nobre esporte bretão" é tema de centenas de músicas, filmes e livros, tendência que se acentua enormemente em ano de Copa do Mundo. Luis Fernando Veríssimo, torcedor fanático do Internacional, conta em crônica inesquecível que um dia foi ao circo, viu o time de cachorros com camisa vermelha perder e ficou o dia inteiro arrasado. Aldir Blanc também é outro torcedor apaixonado, conforme revela neste trecho de uma crônica sobre futebol: "(…) Minha filha caçula, Bel, xodó total do pai coruja, começou a namorar. Recebi a notícia com a tranqüilidade que me caracteriza: chorando convulsivamente, trancado no banheiro, copo cheio de Jack Daniels chacoalhando nas mãos trêmulas. Chamaram o Serviço de Busca e Salvamento. Vizinhos gritavam. (…) Duas horas depois da confusão total, fiz, pela fechadura, a única pergunta que, de fato, me interessava:
– Qual é o time dele?
Aliviada, a galera que se aglomerava do outro lado da porta, respondeu num berro uníssono:
– Vasco!
Estava superado o primeiro e mais grave obstáculo para o futuro relacionamento".

Cito esses exemplos para demonstrar o quanto o futebol está entranhado na identidade nacional. Qualquer tentativa de estigmatizá-lo está fadada ao mais retumbante fracasso.

Afinal, durante a Copa do Mundo, não tem imperialismo cultural norte-americano capaz de arrefecer o orgulho de ser brasileiro. Dizem que mesmo na Barra da Tijuca você chega a ver, vez por outra, uma bandeira verde e amarela. Objetivamente esse é um sentimento que pode ser trabalhado em favor dos que defendem o desenvolvimento soberano da nação.

Quem não tem, em algum canto escondido de sua memória, uma lembrança de infância envolvendo a Copa do Mundo? Eu por exemplo, me lembro com carinho de um verdadeiro desfile de carnaval que moradores de Vila Valqueire (bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro), fizeram no ano de 1978, durante o jogo da Argentina contra o Peru, comemorando antecipadamente a classificação brasileira. Para quem não sabe a Argentina precisava vencer o Peru por quatro gols de diferença para ir à final no lugar do Brasil. O placar acabou 6 x 0 para os donos da casa. É claro que o carnaval foi arrefecendo à medida que os argentinos foram fazendo seus gols, na maior armação da história do futebol mundial. Eu tinha doze anos e lembro que fiquei com raiva de um sujeito fantasiado de Chacrinha que insistiu em continuar comemorando (tão mamado que estava) mesmo depois do desastre.

Assim como eu, todos têm suas lembranças e mesmo aquele que, teimoso, jura odiar futebol e Copa do Mundo, sente o coração apertar ao ouvir os fogos estourarem ou os gritos dos torcedores. No fundo, no fundo, ele gostaria de estar participando em sua plenitude de todo esse clima. No fim, ele sofre e se alegra como todos nós, simples mortais, e reaparece em público ostentando a mais tranqüila indiferença. Todos fingem que acreditam e bola pra frente.

* Secretário de Comunicação do PCdoB/RJ

Coluna publicada originalmente no Portal Vermelho (21/05/02).