Sorrentino: primado da consciência revolucionária – partido de vanguarda
A questão da consciência é central para a visão dialética: não pode haver intervenção consciente na história sem ela. Sem a compreensão do papel da consciência, suas limitações e avanços, não se compreende necessidade da existência do partido de classe do
Publicado 19/01/2007 12:09
Walter Sorrentino*(1)
Este artigo inicia a primeira parte do programa proposto para este conjunto de textos. Para reconstituir o percurso do esforço de renovação de concepções e práticas de Partido, partimos das questões que fundamentam a teoria do partido de tipo leninista. É necessário captá-la de modo contemporâneo, em sua essência dialética e em sua historicidade, que não pode ser reduzida a um modelo organizativo, de forma a-histórica. Aborda-se aqui um dos três pilares fundamentais dessa teoria: o primado da consciência revolucionária, vale dizer, a noção de um partido de vanguarda.
A teoria marxista é a base fundante do Partido e, com ela, a ideologia ou concepção do mundo, que se transformam em práxis militante revolucionária. Não se pode prescindir de uma teoria para o movimento transformador de superação do capitalismo. “Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário’’ que supere de fato a sociedade dividida em classes. É certo, na experiência histórica, que houve movimentos revolucionários de variados graus de conseqüência sem a participação de um Partido Comunista – ou que se formou no seio do próprio movimento – como Cuba no fim dos anos 50 e Venezuela na atualidade o demonstram. Mas tratar de abrir caminho a uma nova formação econômico-social, socialista, exige forças conscientes e convictas, organizadas e motivadas, por um período de revolução social certamente prolongado, postas em movimento por uma formação que encarne esses valores. Como bem lembrou um dirigente do PC(M) da Índia, trata-se de abrir caminho para uma nova sociedade enquanto primeiro projeto histórico, não espontâneo e elaborado com base em uma concepção humana, de um novo modo de produção. Essa é a função histórica primordial do Partido Comunista.
A questão da consciência é central para a visão dialética. O centro da oposição entre o materialismo moderno, dialético, fundado por Marx e Engels e desenvolvido por Lênin, e o materialismo antigo, do século XVIII, positivista, cientificista no mal sentido, é justamente a desconsideração do papel da consciência. Este foi um traço típico do marxismo predominante desde a década de 1930, mal chamado de “marxismo soviético”, e que teve um desenvolvimento tardio na década de 1960 com a obra de Althusser: a tentativa de fundamentar uma concepção científica, determinista e reducionista, que eliminasse a intervenção do sujeito (veja-se os esforços de Althusser para “limpar” o marxismo daquilo que ele considerava historicismo e hegelianismo). Mas não há – não pode haver – intervenção consciente na história sem que exista uma consciência, e reconhecer este fato não é idealismo, como supõe aquela visão estreita e ultrapassada. É materialismo dialético e histórico.
Portanto, trata-se de um esforço essencial de, restaurando a visão marxista e leninista originária, desenvolver a teoria, inclusive sobre partidos. Sem a compreensão do papel da consciência, suas limitações e avanços, não se compreende necessidade da existência do partido de classe do proletariado, que é essa consciência organizada e capaz de agir sobre o processo histórico. A ação entre as condições objetivas e o sujeito é mediada pela consciência. A elaboração leninista, nesse sentido, é profundamente anti-positivista e isso precisa ser muito ressaltado ainda hoje. Nele o papel da vontade revolucionária, traduzida na iniciativa revolucionária de um sujeito coletivo organizado, era essencial para abrir caminho ao socialismo mesmo nas condições ainda não-“maduras” existentes na velha Rússia, fugindo a uma interpretação fatalista, economicista, mecanicista e vulgar do marxismo da 2ª. Internacional, segundo a qual a história abriria caminho “por si só”, e a intervenção consciente seria acessória, secundária. A enfatizar o papel da consciência, Lênin recuperou assim a unidade sujeito-objeto, o valor da práxis e da subjetividade no processo histórico, submetendo-as entretanto à análise concreta de cada situação concreta para abrir caminho à transição ao socialismo.
A compreensão disto é fundamental não só para compreender os próprios Marx, Engels e Lênin, como também a teoria como um processo de elaboração contínua, que decorre da análise concreta da situação concreta, e não de forma talmúdica como o relato de um futuro pré-fixado, definido teleologicamente, religiosamente, e que vai acontecer de forma automática, com ou sem a intervenção consciente, independente da forma como ocorra a resolução das contradições de classe, e sem considerar a correlação de forças existente na sociedade. Isto foi fundamento, no passado, da ação reformista, e não revolucionária.
O Partido Comunista, portanto, é – deve ser – a consciência avançada e revolucionária de nosso tempo. Não é uma organização arbitrária ou voluntarista – ele representa a consciência teórica e ideológica da luta revolucionária pela superação do capitalismo. Daí deriva seu caráter de vanguarda e não por autoproclamação ou como algo dado de antemão. Desenvolve-se ainda hoje uma polêmica de caráter histórico-estratégica quanto à indispensabilidade de um partido desse tipo para dirigir a transição ao socialismo, polêmica que só a práxis poderá deslindar.
Hoje, partindo dos fundamentos do marxismo-leninismo, é necessário desenvolver a teoria revolucionária – que se encontra em crise que resulta de seu insuficiente desenvolvimento – para dar conta da crítica da sociedade capitalista e abrir caminho ao socialismo – e inclusive para superar a própria crise programática e orgânica da esquerda (que veremos no desenvolvimento do tema).
Nesse sentido, o Partido é o intelectual coletivo, armado com a teoria e desenvolvendo-a criticamente. Este é um termo introduzido pelo Gramsci e que também precisa ser reforçado: a consciência de classe não existe bailando nos ares, mas tem uma expressão material, organizativa: o Partido que, exatamente por isso, é o intelectual coletivo elaborador e implementador dessa consciência.
O Partido Comunista é, também, por isso mesmo, o instrumento que organiza a luta pelo seu projeto político estratégico, a conquista do poder político, nas condições de cada país, com base na teoria aplicada a uma realidade concreta, visando a superação da sociedade dividida em classes.
As condições nas quais surge a consciência e como se desenvolve variam conforme as condições da luta de classes. Que Fazer?, de Lênin, tem universalidade, mas também historicidade. Devemos lembrar sempre que se Que Fazer? segue sendo um compêndio fundamental sobre a relação entre o espontâneo e o consciente – e o primado deste para o movimento revolucionário – não se deve ver nele um estudo filosófico sobre a origem da consciência revolucionária. É o que vai se estudar com o texto de suporte da próxima coluna.
*Walter Sorrentino, médico, é Secretário Nacional de Organização do PCdoB.
[email protected]
(1) Com a colaboração de José Carlos Ruy e Oswaldo Napoleão.
– O próximo artigo deste colunista estará disponível dia 23 de janeiro, na página do Partido Vivo. Para ler o artigo anterior, clique aqui.