A brasilidade do povo catarinense
Artigo de Clarissa Peixoto
Refletir sobre o papel da cultura no desenvolvimento social é premissa mínima se quisermos reagir enquanto membros construtores de uma sociedade
Publicado 14/02/2007 12:32 | Editado 04/03/2020 17:14
A partir da valorização da produção humana cotidiana se dá a elevação da auto-estima, da cidadania e do respeito à pluralidade, transformando os seres em agentes participativos dentro dos diversos processos de desdobramentos da humanidade em busca do progresso.
Santa Catarina destaca-se nacionalmente como um Estado na contramão. Essa afirmativa pode ser constatada pelo grande número de governos municipais ideologicamente conservadores, pela moral atrasada impressa nas relações, com resquício de repressão, xenofobia e racismo, todos oriundos de um problema latente: o povo catarinense não tem conhecimento sobre si. De um ponto de vista político, o problema acentua-se quando percebemos a falta de estratégias públicas para área da cultura. Fator que alija o desenvolvimento teórico e abafa o senso crítico da população.
Talvez seja essa a tática, mantenedora de um status quo, reafirmado na ausência de um projeto amplo no campo da cultura. Mas, reflitamos sobre tal.
Os movimentos artístico-culturais são ferramentas para estabelecer um novo olhar sobre a sociedade, ampliar a atividade intelectual e abolir a ferrugem retrógrada, que será desintegrada a partir do momento em que entendermos nossa história, nossa formação etnológica e a cultura popular produzida por homens e mulheres que formam um mosaico cultural, advindos de todos os continentes.
A diversidade propõe uma Santa Catarina com caras e sotaques de diversos eixos: ibéricos, orientais, mouros, negros e índios contrastam com um pseudodiagnóstico que determina como característica primeira catarinense uma fisionomia européia, no meridiano de um país tropical. Erro cabal. Precisamos despertar para a idéia do múltiplo, do diverso e, sobretudo do novo, que aparece com o passar dos anos, das adaptações da cultura e da formação de um arquétipo chamado homem catarinense, característico em si e brasileiro por essência. Neste pequeno espaço territorial, um lugar de ampla miscigenação.
O processo colonizador no Estado se dá por diversas vertentes, desde a imigração litorânea por portugueses vicentistas que abrem os caminhos ao Sul do Brasil, açorianos que desembarcam para garantir povoamento das terras em disputa com a Espanha, escravos vindos da África para servir de mão de obra, até o tropeiro lageano, que transporta a carne seca do Sul às terras paulistas e os imigrantes italianos e alemães, fugindo da miséria instaurada na Europa do século XIX. Libaneses e poloneses, até mesmo uma colônia de japoneses no interior de Santa Catarina. Destaque fundamental para os indígenas das tribos Xokleng, Kaingang e da grande família Tupi, sambaquieiros, que deixaram como legado os vestígios intactos da sua história, nos Sambaquis mais expressivos do território brasileiro.
Mãos tecendo uma colcha de retalhos, onde cada microrregião se transforma num espaço novo de descobertas. Norte, Sul, Planalto, Vale, Oeste, banhados pelo mar, pelas águas doces das lagoas e dos rios, o homem em luta com o moderno e o arcaico.
Se parecia difícil perceber tanta diversidade, impossível agora o leitor não esbarrar na gama de costumes e tradições, no lirismo e na poesia, tipicamente catarinenses, caracterizados por aquilo que o Brasil tem de melhor: a heterogeneidade humana. Afastado pela pouca relevância política no cenário nacional, Santa Catarina é, por assim dizer, filha do verde e do amarelo, repleta da miscigenação, belezas naturais e composta por um povo acolhedor, típico da realidade brasileira.
Nas artes, na produção cotidiana, no passado de lutas, na construção política baseada historicamente na manutenção da unidade do país, com uma cultura popular repleta de lendas, de “causos”, de personagens e de peculiaridades lingüísticas, por que não vermos este pequeno Estado como um recanto de infinita inspiração, pluralidade, atividade intelectual? É preciso enxergar o limiar de uma nova concepção de valores, onde se abandona de vez por todas o conservadorismo e o marasmo. É no negro quilombola guerreiro, na criatividade açoriana, na espiritualidade indígena e na poesia italiana que unificamos um só espírito e jeito de ser Barriga Verde, que não é vulto do passado, mas presença contínua no caminhar da humanidade.
Nos falta, evidentemente, uma preocupação acirrada no que diz respeito à política de desenvolvimento da cultura, com projetos incentivadores de produções audiovisuais, plásticas e de acesso a oficinas artísticas. Dar ao povo o acesso à arte e ao esclarecimento. Projetos que proporcione a população estar próxima a sua própria produção. A criação de museus da cultura popular, o incentivo a pesquisas antropológicas, realizadas nas mais diversas comunidades, a fim de resgatar as atividades não só amparadas no tradicionalismo estático, mas, no intuito de elevar a alma do povo, onde ele se reconheça e possa desenvolver a crítica sobre si e sobre o meio.
Há um vasto campo de trabalho a ser desenvolvido, com políticas de incentivo às produções populares, às manifestações artísticas e às pesquisas acadêmicas no seio das universidades. O movimento estudantil deve cumprir também esse papel fundamental, bem como os demais movimentos sociais, sociedade civil e Governo do Estado, no intuito de incluir Santa Catarina, um lugar de tanta riqueza, história e peculiaridade cultural e étnica, projetando a idéia de identidade, tão importante para a consolidação da soberania.
Clarissa Peixoto é Jornalista e Assessora da Prefeitura de Laguna