Unicamp se manifesta pela defesa da autonomia universitária
Conselho Universitário e diretores de institutos e faculdades da Unicamp criticam medidas do governo estadual e entram na briga em defesa da autonomia universitária.
Publicado 09/04/2007 17:08 | Editado 04/03/2020 17:19
O Conselho Universitário da Unicamp aprovou moção em que manifesta desacordo com as medidas do governo José Serra que ferem a autonomia universitária e se solidariza com o Centro de Estudos Marxistas, que foi objeto de declarações desrespeitosas de funcionário da Secretaria de Ensino Superior estadual.
Ato contínuo, diretores de institutos e faculdades da mesma universidade divulgaram manifesto defendendo a autonomia universitária e criticando a atual gestão. O documento é enérgico e aponta para o cerne da questão que leva ao embate com o governo estadual: “Nenhum ajuste fiscal que eventualmente interesse ao governo, qualquer governo, assim como nenhuma alegação populista ou demagógica, movida afinal pelo mal disfarçado desejo intervencionista, será bastante para justificar a perda irreparável daí decorrente: a liberdade de criação científica e cultural das Universidades”.
Leia a íntegra da Moção e da Carta Manifesto
Moção
O Conselho Universitário da Unicamp, em sua 101a sessão ordinária, realizada em 27/03/2007, manifesta seu completo desacordo com os decretos do Governo do Estado de São Paulo que dizem respeito à reorganização do ensino superior, por ferirem os princípios da autonomia universitária em seus meios e seus fins.
Nesse sentido, o CONSU se solidariza com o Centro de Estudos Marxistas e repudia as declarações desqualificadoras do Secretário Adjunto da Secretaria de Ensino Superior, o Sr. Eduardo Chaves, contra o Centro de Estudos Marxistas (CEMARX), interferindo com isso na liberdade de criação e de pesquisa da Universidade.
Cidade Universitária “Zeferino Vaz”
27 de março de 2007
Carta Manifesto dos Diretores
A Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 207, define perfeitamente o princípio da autonomia universitária: “As Universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. A formulação contém dois aspectos decisivos para a existência de uma universidade de excelência. Em primeiro lugar, a universidade firma-se como sujeito capaz de criar e de aplicar a si a sua própria normatividade, tendo como pressuposto a sua vocação de busca de conhecimento crítico e autocrítico. Em segundo lugar, a idéia de autonomia implica a indissociabilidade entre três práticas constitutivas da identidade acadêmica: a investigação livre, o rigor teórico e a transmissão do conhecimento através do ensino e da extensão. O compromisso social é intrínseco ao princípio de autonomia universitária, pois ela se afirma na medida em que tanto a produção quanto a transmissão e a extensão do conhecimento passam por avaliação séria, através da mediação de pares, e são postas a serviço da sociedade. Quer dizer, em seu entendimento mais profundo, o cumprimento da função social da universidade se faz, em primeiríssima instância, através da qualidade da sua produção, resultante da busca da excelência acadêmica, movida pela consciência autônoma de seus membros.
A experiência das universidades estaduais paulistas foi certamente a que mais avançou no sentido da consolidação da autonomia universitária no Brasil, nessas últimas duas décadas. Após uma longa greve de docentes e funcionários em fins de 1988, o então governador de São Paulo, Orestes Quércia, assinou a autonomia de gestão financeira dessas instituições, através do Decreto no. 29.589, editado em 2/2/1989. Ficou estabelecido a partir de então que as universidades passariam a receber mensalmente 8,4% da quota parte do ICMS arrecadado destinada ao Estado. A partir de 1995, o percentual, que vigora até hoje, passou para 9,57%. O decreto representou, portanto, a efetuação da autonomia da gestão financeira da Universidade, aspecto essencial do princípio maior da autonomia. As universidades, a partir daí, ficaram livres da política do “pires na mão” — como ressaltou o artigo “A sobrevivência da autonomia universitária” do Prof. José Tadeu Jorge, reitor da UNICAMP, na seção Tendências/Debates da Folha de S. Paulo, do dia primeiro de fevereiro –, e se livraram das incertezas orçamentárias que tumultuavam as comunidades acadêmicas no início de cada exercício.
Ao longo dos anos de vigência da autonomia financeira, as universidades públicas do Estado de São Paulo apresentaram concretamente um desempenho muito positivo. A UNICAMP, em particular, registrou crescimento excepcional dos seus principais indicadores de produtividade. Entre 1989 e 2005, o número de docentes decresceu sensivelmente, enquanto o número de matrículas aumentou sempre nos cursos de todos os níveis, como está detalhado no artigo acima citado. Nesse mesmo período foi registrado aumento numérico e qualitativo muito significativo das dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas. Além do reconhecimento público da qualidade da sua produção nas diversas áreas do conhecimento, a UNICAMP destacou-se de modo notável na área tecnológica, a ponto de se tornar a entidade, pública ou privada, com o maior número de registros de patentes em todo o Brasil. Está claro, portanto, que a autonomia, no que significou de motivação e mobilização dos docentes, é peça chave no aumento da produtividade das universidades públicas paulistas.
Nesses mesmos anos de autonomia plena, a UNICAMP realizou dois rigorosos processos de avaliação institucional que geraram relatórios abrangentes e minuciosos sobre a sua produção, cuja peça fundamental foram as comissões formadas por avaliadores externos, nacionais e internacionais, de alto nível. Os resultados dessas avaliações foram entregues ao Conselho Estadual de Educação, e se encontram inteiramente à disposição da sociedade. Esses dados, e tantos outros, igualmente expressivos e contundentes no que diz respeito à produção da USP e da UNESP, deixam claro que as Universidades públicas paulistas estão engajadas na compreensão responsável de sua autonomia.
Desse modo, revelam-se desnecessários e extemporâneos os decretos do governador que ferem frontalmente o princípio constitucional da autonomia. Eles não apenas sinalizam a tentativa de submeter o Conselho de Reitores à tutela da Secretaria de Ensino Superior, mas produzem dois efeitos ainda mais nocivos. O primeiro deles é a intervenção sobre a autonomia financeira das Universidades ao dificultar os repasses do ICMS mediante atos difusos de operações financeiras, nas quais fica evidente o propósito de controle burocrático do orçamento. E ainda que o governo anuncie a disposição de acatar os remanejamentos de recursos necessários à gestão quotidiana dessas instituições, a simples obrigatoriedade de anuência do sistema burocrático externo à Universidade para efetuação de seus recursos significa ingerência na “autonomia de meios” fundamental para a “autonomia de fins” garantida constitucionalmente.
O segundo grande efeito nocivo dos decretos é a transferência das três universidades públicas paulistas da antiga Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico para a recém-criada Secretaria de Ensino Superior, a qual, por sua vez, abriga igualmente as cerca de 500 instituições de ensino superior privadas do Estado, assim como, não se sabe a que título, o Memoria da América Latina. A levar a sério este novo desenho administrativo, as alterações produzem a separação arbitrária e inaceitável entre ensino e pesquisa ou, o que é pior, deixa-se de distinguir Universidade que produz ensino e pesquisa daquelas que apenas fornecem ensino, que passam a formar a grande massa de filiados da Secretaria de Ensino Superior. Foi em parte graças à localização das Universidades estaduais paulistas na Secretaria de Ciência e Tecnologia que a Universidade de excelência teve reconhecido o seu lugar distinto das IES privadas que não produzem pesquisa. Aliás, a nova designação dessa Secretaria apenas como Secretaria de Desenvolvimento, ora esvaziada das universidades estaduais, deixa supor que a antiga ênfase na pesquisa livre e de ponta em Ciência e Tecnologia, em sintonia com os mais altos padrões internacionais, pode vir a ser preterida em favor de projetos mais aplicados e privatizantes, sob pretexto de servir a estratégias desenvolvimentistas. Por outro lado, quando as Universidades Públicas são retiradas da rebatizada Secretaria de Desenvolvimento, é estranho a permanência nela das Faculdades de Tecnologia (FATECs), do Centro Paula Souza, que mantêm vínculo acadêmico-administrativo com o Conselho Universitário da UNESP. Em suma, longe de integrar o ensino superior público paulista, os decretos o fragmentam e dispersam.
No artigo “Secretaria do Ensino Superior”, na mesma página Tendências/Debates da Folha de S. Paulo, de 26 de janeiro último, a justificativa dada pelo Secretário Pinotti de que a nova secretaria, ao englobar USP, UNESP, UNICAMP, deve promover a “organização sistêmica” das Universidades – ou um “sistema do ensino superior”, como já refere em artigos posteriores — para que possam “encaminhar soluções para questões como mobilidade estudantil, baixa porcentagem de jovens que fazem curso superior”, ou auxiliar no combate à “precária qualidade do ensino básico” representa novo ataque à autonomia. As Universidades públicas têm feito pela qualificação do ensino médio e básico mais do que nenhum outro órgão do país, ainda que não sejam as suas tarefas primeiras. Não é preciso que nenhum órgão externo, superior a elas, as obrigue a isso. Até porque, tais tarefas, certamente meritórias, estão diretamente concernidas pela Secretaria da Educação e não pela nova Secretaria que, de concreto, apenas representa mais gastos para os combalidos cofres públicos.
Nós, Diretores dos Institutos e Faculdades da UNICAMP, não seremos coniventes com essas anomalias institucionais, de duvidosa base constitucional. Nenhum ajuste fiscal que eventualmente interesse ao governo, qualquer governo, assim como nenhuma alegação populista ou demagógica, movida afinal pelo mal disfarçado desejo intervencionista, será bastante para justificar a perda irreparável daí decorrente: a liberdade de criação científica e cultural das Universidades.