O senhor da dança
Neste domingo, a partir das 18h30, o Theatro José de Alencar homenageia o bailarino e coreógrafo cearense Hugo Bianchi, dentro das comemorações ao Dia Mundial da Dança. Em entrevista ao jornal O POVO, Bianchi faz uma retrospectiva de seus 81 anos de vida
Publicado 28/04/2007 19:22 | Editado 04/03/2020 16:37
Pelos corredores do Theatro José de Alencar, ele passeia tranqüilamente como se estivesse em casa. Quando o relógio anuncia 10 horas, os funcionários do TJA já aguardam Hugo Bianchi. Por trás de óculos de aros grossos, os olhos azuis do bailarino e coreógrafo cearense sondam os ambientes para encontrar alguém conhecido. “Sempre digo que o Theatro é o meu lar. O pessoal daqui tem um carinho todo especial comigo. Não sei se mereço”, brinca. É nesse espaço afetivo de longa data que acontece neste domingo, às 18h30, a sexta edição do Festival Vida e Arte Hugo Bianchi, uma homenagem não só ao Dia Mundial da Dança, mas ao bailarino que há 40 anos já faz parte da casa. “Freqüento o TJA desde 67, quando montei minha primeira academia de dança, a Eros Volúsia”. Foi a partir daí que Hugo Bianchi consolidou seu nome como um dos pioneiros do balé clássico no Ceará.
Só para ilustrar a importância de Bianchi no cenário da dança cearense, basta saber que a maior parte das donas de academias de dança de Fortaleza já foram suas alunas. Goretti Quintella, Madiana Romcy, Janne Ruth, Mônica Luiza, entre outras bailarinas e coreógrafos, tiveram suas primeiras aulas sob a rígida disciplina de Bianchi. “Pra ser bailarino, tem que deixar muita coisa de lado. Foi o que eu fiz”, comenta em entrevista a O POVO, no palco principal do TJA, onde as bailarinas das academias irão homenageá-lo com apresentações de espetáculos de dança em seqüência. Por coincidência, a data do Dia Mundial da Dança (29 de abril) é a mesma do aniversário de Bianchi. É como se o destino do bailarino já estivesse reservado ao palco. Uma escolha que contrariou a vontade da avó. “Ela achava que teatro era coisa de gente desocupada. Minha família nunca teve problema com isso. Só minha avó queria que eu fosse telegrafista”, recorda.
E foi uma longa jornada até Bianchi se firmar como bailarino. No final dos anos 40, começou como autodidata numa companhia de teatro amador, que circulou por todo o Brasil. Depois, partiu para o Rio de Janeiro, onde finalmente teve as primeiras aulas formais de dança, após anos de sacrifício. Ao voltar para Fortaleza, Bianchi procurou repassar seu conhecimento para suas alunas. Até hoje ainda é assim. Com 81 anos de vida e 60 de balé clássico, o cearense mantém a Associação Hugo Bianchi de Dança, mas deixa a administração a terceiros. “Comecei a distribuir as tarefas. Eu já tinha trabalhado muito e estava muito cansado”, afirma. Para a entrevista com Bianchi, o Vida & Arte convidou três nomes da dança – Rosa Primo, coordenadora do Núcleo de Dança da Funcet; Claúdia Pires, da diretoria da Associação dos Profissionais de Dança do Ceará (Prodança); e Goretti Quintella, presidente da Associação das Academias de Dança do Ceará.
Como o senhor despertou o interesse pela dança? A partir de que momento ela começou a fazer parte da sua vida?
Inicialmente, era no colégio Inácio Santa Maria, que existia aqui em Fortaleza. Eu comecei a fazer dança lá, em 1946. Era autodidata. Não era balé que fazia. Eram aquelas danças de cigano, de pastoril. Depois, eu comecei a montar a Protofonia do Guarani, a história de um índio que estava caçando e, na floresta, era atingido por outra tribo. Esse foi o meu trabalho de batalha. Dancei aqui, em São Luiz, Teresina, Belém, Manaus… Em 48, fui ao Rio de Janeiro. Foram 12 dias de viagem! Cheguei lá e comecei a trabalhar em teatro. E viajei pra São Paulo, voltando a Fortaleza em 51. Fiquei aqui até 54, quando inaugurei o Salão Nobre do Náutico, lançando a Protofonia do Guarani, que também foi lançada na Marinha, no Clube dos Oficiais da Aeronáutica. Aí fui novamente pro Rio de Janeiro. Só em 66, voltei a Fortaleza para montar A Valsa Proibida, do Paurillo Barroso. Fiz a coreografia e dancei. No Rio, já era funcionário do Serviço Nacional de Teatro. Lá tive aulas com Eros Volúsia, que foi minha madrinha lá no Rio e fez tudo por mim. Esse início no Rio foi muito difícil. Quando viajei pro Norte, era numa companhia de teatro. Tinha teatro e um ato de variedades. Depois da peça, cada artista fazia um número. Eu já fazia número de dança, mas era autodidata. Toda a minha formação foi lá no Rio.
Ser um dos pioneiros do balé clássico no Ceará foi uma empreitada difícil? Ao dar as primeiras aulas de balé aqui, havia uma demanda que correspondia as suas expectativas?
Aqui só tinha a Tereza Bittencourt e a dona Regina Passos, que tinha uma academia de dança. Eu e a Tereza ficávamos aqui no Theatro José de Alencar. Nossa academia era lá no foyer. Quando a Tereza foi embora, eu fiquei só com a academia, que na época se chamava Eros Volúsia. Ali se formou Ana Virgínia, Goretti Quintela, Mônica Luiza, Madiana Romcy, Júlia Cândida, e por aí vai. Quando trabalhava aqui no teatro, formei duas turmas. A primeira foi essa que falei. Depois, veio Cecília Leite, Ana Célia. Foram muitas bailarinas que formei. Fui a primeira pessoa a montar balé de repertório. Balé clássico pode ser qualquer coisa, de valsinhas a minuetos. Agora balé de repertório, como Lago dos Cisnes, Giselle, Sherezade, Dom Quixote, Romeu e Julieta, todos esses balés, eu montei primeiro. E havia público pra assistir isso. O teatro sempre foi lotado.
Agora voltando ao início da sua carreira, de que maneira sua vivência com o teatro amador em viagens por todo o Brasil acabou influenciando sua formação de dançarino?
Não sei. Eu gostava de teatro também. No início, foi assim: chegou uma companhia aqui no TJA, que precisava de um ator jovem para fazer o segundo galã. Aí me chamaram pra participar e fui contratado por essa companhia, que era de uma cearense em Juazeiro, a Marquise Branca. Aí na década de 50, no Rio, trabalhei com o Circo Mágico Thiany. Em 66, quando já estava em Fortaleza, Thiany chegou aqui com o circo. As bailarinas dele passaram por aqui, ouviram música de balé e subiram no foyer. E aí me reconheceram. Eles precisavam de bailarino e coreógrafo. Então, fechei a academia e rodei o Brasil de novo com eles. Em Campina Grande, tive uma contorção muscular e não pude continuar no circo. Voltei para Fortaleza e reabri a academia. De lá pra cá, são 41 anos de academia.
Uma trajetória de amor ao palco
Para o senhor, o que é necessário para ser um bailarino?
Em primeiro lugar, muita vontade de sofrer. Eu sofri muito no Rio de Janeiro. Depois vem humildade e muita disciplina. Não gostar de farra, porque pra ser profissional tem que ter no mínimo quatro horas de aula. Pra ser bailarino, tem que deixar muita coisa de lado. Foi o que eu fiz. Na minha academia, sempre estou ali em cima, olhando, e muita gente sai, porque não gosta da minha atitude. Acho que tem que ter disciplina. Hoje em dia todo mundo dá aula de qualquer jeito.
O que o senhor destacaria na dança cearense atual?
Acho que a dança cearense está muito bem representada. O balé clássico é representado pela Goretti (Quintella), Madiana (Romcy), Mônica Luiza, a Academia Premius, Júlia Candida e outras mais. E pela parte contemporânea, tem a Rosa Primo, a Cláudia Pires, a Jane Ruth, a Andrea Bardawil… Tanto o balé clássico como a dança contemporânea estão bem representados. Quando é uma coreografia bem estruturada, acho a dança contemporânea boa. Tem gente que faz coreografia por fazer. Sem ligar pra ritmo, tempo de música. Mas há pessoas da dança contemporânea que fazem boas coreografias.
Ao longo desses anos em que o senhor esteve ligado à dança, o que de bom ela perdeu e o que ela ganhou?
Acho que a dança só ganhou. Tanto a clássica quanto a contemporânea se reciclaram. Na minha opinião, a dança em Fortaleza tomou um espaço definitivo. Todo mundo trabalha. Em termos de articulação, sempre teve aquela velha história das academias trabalharem separadamente. Mas todas são amigas. Há a associação cearense das academias, com reuniões em que todos participam. Acho que não há inimizade. Eu gosto particularmente de todas essas bailarinas, seja do balé clássico quanto do contemporâneo. Porque elas me tratam bem e tem respeito por mim.
Em algumas entrevistas, o senhor chegou a afirmar que o balé é uma arte de elite. No entanto, sua carreira foi inicialmente marcada pelo autodidatismo…
Peraí. Existe uma confusão aí. Eu nunca declarei isso. Inventaram essa história. Uma vez fiz uma entrevista e disse que o balé era uma arte dos nobres, porque foi criado pelo Rei Sol, na França. Mas nunca disse que era algo de elite. Fizeram essa confusão e todo mundo veio atrás de mim. Eu nunca disse isso. Imagina! Tanta gente boa que sai da periferia. Eu acho que o balé não tem preconceito. Todo mundo pode fazer. Agora precisa ter dedicação. Senão não faz nada. Nunca disse que era de elite. Todo mundo fez confusão por causa dessa história. Finalmente consegui esclarecer isso!
Ainda hoje vemos que os bailarinos precisam sair do Ceará para se profissionalizar. Na sua opinião, qual a lacuna existente?
Bianchi – Em primeiro lugar, acho que não temos verba para segurar bailarino que quer se profissionalizar. Em segundo lugar, todo mundo tem que sair pra poder se reciclar, no Rio, em São Paulo ou no exterior. Mas nós temos potencial. Há grandes bailarinos cearenses viajando ainda por aí fora. Uma ex-aluna minha – a Solange Fernandes – está dançando na Itália. O financiamento é o que mais falta. Temos professores capacitados tanto para o balé quanto para o contemporâneo. Mas não se pode fazer nada sem dinheiro. Já houve uma tentativa interessante de formação, que foi o Colégio de Dança, mas parou por falta de apoio financeiro. É uma pena ter acabado. Teve um movimento de dança muito bom, naquela época.
Em várias entrevistas, o senhor disse que se considera artisticamente realizado, mas financeiramente é um fracasso. Como é conciliar a vida de bailarino com a de administrador?
Agora já temos a Associação Hugo Bianchi de Dança, que é a nossa academia. Quem faz a administração todinha é Francisco Félix. Eu só vou à academia pra dar apoio. Tem uma equipe de cinco professores, uma secretária, o administrador que é o Félix. Mas antes, eu administrava tudo. De 10 anos pra agora, é que comecei a distribuir as tarefas. Eu já tinha trabalhado muito e estava muito cansado. Só de balé clássico tenho 60 anos. Financeiramente continuo do mesmo jeito. Melhorou um pouquinho, mas só dá pra sobrevivência. Não consegui guardar nada.
O balé não dá dinheiro?
Não, não foi por isso. Talvez até tenha dado. Mas viajava muito na época. Não só circulei pelo Brasil, mas fui também pros Estados Unidos, pra Buenos Aires… Aquele dinheiro ia embora. E nunca me incomodei de guardar. Nem imaginava que ficaria todo esse tempo. Todos os meus contemporâneos foram embora. Acho que só tem dois ou três vivos da minha época. Um dos últimos foi o Dennis Gray, que morreu.
Se o senhor pudesse voltar no tempo, o que o senhor faria diferente em sua carreira?
Não sei. Pelo que sofri… No começo lá na Rio, sofri muito. Passei fome, dormi na rua. Mas se não fosse bailarino, queria ser jogador de futebol (risos). Porque ganha bem (risos). A única profissão que ganha bem é essa. Porque um professor de educação física ganha uma miséria. Professor de colégio tem que dar aula em tudo quanto é canto para ganhar um bocadinho.
Mas o senhor chegou a gostar de jogar futebol?
Bianchi – Não. Nunca joguei (risos). Só vejo futebol pela televisão.
O senhor tem algum arrependimento que não faria de novo na profissão?
Não tenho arrependimento nenhum, porque foi uma coisa que escolhi. Até contra a vontade da minha avó. Quando cheguei no Rio de Janeiro e consegui o primeiro emprego no teatro, mandei uma cartinha pra ela dizendo tudo. Aí ela respondeu: “Arranja um emprego que seja trabalho!” Ela achava que teatro era coisa de gente desocupada. Ela nem sabia que eu sofria lá. Morreu sem saber disso. Minha família nunca teve problema com isso, só ela que queria que eu fosse telegrafista. E acabei trabalhando aqui nos Correios. Já fui mensageiro, trabalhei no Palácio do Comércio como ascensorista. Trabalhei até em tabacaria. Só depois que eu fiz o serviço militar, veio essa companhia de teatro amador e não parei mais.
Hugo Bianchi é um homem realizado? Há algum sonho que o senhor não realizou?
Eu gostaria de ter ido ao Teatro Bolshoi, na Rússia. Não sei se vai dar tempo. Mas é a única coisa que tenho vontade. Todo o resto está bem direitinho. Tenho a amizade de todo mundo, principalmente das minhas ex-alunas. Só tenho muito orgulho desse povo que está muito bem e fazendo trabalhos importantes.
Dia Mundial da Dança
Neste domingo, a partir das 15h30, o Theatro José de Alencar (Pça José de Alencar, s/n – Centro) apresenta programação aberta ao público em comemoração ao dia mundial da dança. O 6º Festival Vida e Arte Hugo Bianchi começa às 18h30. Grátis. Info.: 3101.2596.
Associação Hugo Bianchi de Dança – Rua J. da Penha – 141 – Centro. Info.: 3226.3488.
PROGRAMAÇÃO DO DIA DA DANÇA NO TJA
Domingo
15h30 – 16h30
Visita guiada ao Theatro
16h – no foyer
Impressões Musicais – alunos do Curso de Música da Uece tocam música popular, erudita e contemporânea
17h – no pátio nobre
Cia. dos Pés Grandes – Grupo de sapateado com a direção de Heber Stalin
Intervenções de alunos do Curso Técnico em Dança (Secult/Dragão do Mar/Senac)
18h – no saguão
Coral do Sindicato os Trabalhadores da UFC – Regência: Jacqueline Sidney
18h30 – no palco principal: 6º Festival Vida e Arte Hugo Bianchi
Fonte; O POVO