Publicado 06/08/2007 13:14 | Editado 04/03/2020 17:19
Recentemente a imprensa noticiou pesquisa do IBGE que mostrou que as favelas cresceram em São Paulo, não em área, mas sofrendo um processo de encortiçamento interno, com as famílias construindo mais dentro da própria casa para abrigar a família agregada, com filhos casados, netos, irmãos, tios e todos aqueles que não conseguiram sua casa própria ou alugar um imóvel em São Paulo.
Nos entristeceu muito a notícia de uma estudante que só se deu conta do que significava viver numa favela, quando os pais de seus colegas não permitiram que estes fossem à sua casa estudar porque se tratava de um endereço de uma favela.
Hoje, em São Paulo já há uma terceira geração vivendo em favelas, desde o início da década de 70 quando as favelas se disseminaram na cidade como alternativa de moradia da população trabalhadora. Os jovens favelados hoje são universitários trabalhadores. Mas, infelizmente, o estigma da década de 70 de população marginalizada cresce com a precariedade ainda existente e o avanço da violência urbana que escolhe estas áreas como seu território principal, reduzindo a expectativa de vida dos jovens para menos de vinte anos de idade.
Já em 2002, por ocasião da elaboração de tese de doutorado na USP, sobre o bairro da Mooca, alertávamos para este problema em função do censo do IBGE de 90, o qual mostrava que a cidade apresentava índices de crescimento de primeiro mundo, em torno de 1% ou até negativo em algumas regiões como o anel central e os bairros do anel intermediário e, em contrapartida, o distrito de Cidade Tiradentes apresentava um crescimento atípico de 9%, com a existência ainda, de mais de 400.000 imóveis residenciais desocupados na cidade.
Era de se perguntar de onde vinha a população que passou a morar em Cidade Tiradentes, se a cidade não recebia mais novos migrantes, pelo menos não em quantidade significativa, e perguntar ainda, para onde ia a população que saía dos bairros mais centrais da cidade que perdiam população?
Parece que a explicação mais lógica tem a ver com o empobrecimento e a perda, cada vez maior, do poder aquisitivo de grandes parcelas da população, incluindo a classe média que num “movimento em ondas” vai se deslocando um passo adiante para áreas mais desvalorizadas da cidade e assim empurrando setores mais pobres, até chegarmos à periferia sem a adequada infra-estrutura.
Essa situação cria uma pressão pela produção de moradias populares para os moradores de favelas e ocupações irregulares e por programas que garantam o acesso para quem ganha menos de três salários mínimos que não tem acesso às linhas de financiamento para a casa própria.
A oferta do mercado privado, que diga-se de passagem, atua com recursos dos bancos oficiais, se preocupa com o retorno e o lucro de seus investimentos e não com programas para atender essa demanda. Portanto, só é possível atender esta demanda através dos órgãos públicos que tratam da questão habitacional, como a CDHU, em conjunto com o governo federal e os órgãos municipais. Esta demanda tão sofrida e que significa mais de 30% da população da cidade, ou perto de 3 milhões de habitantes.
A CDHU é uma empresa para construções de casa populares que surgiu na década de 40 como a Caixa Estadual de Casas para o Povo, antiga CECAP, e foi regulamentada em 1964. Na década de 60 construiu um dos mais bonitos e adequados conjuntos habitacionais da região metropolitana e que até hoje é estudado nas escolas de arquitetura, o conjunto Zezinho Magalhães que fica em Guarulhos e projetado pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas. É uma empresa que tem história e deu exemplo de como se tratar a classe trabalhadora.
Desde a década de 90 tem recebido um aporte maior de recursos em função do aumento de 1% do ICMS. Com uma produção hoje no Estado totalizada em 412.315 unidades habitacionais, sendo 73413 na capital, o que significa um atendimento de mais de um milhão de habitantes, com diversos programas que foram se aprimorando ao longo dos anos, com a contribuição de vários técnicos de maneira interdisciplinar, que englobam soluções que vão da construção de novos conjuntos habitacionais até a urbanização de favelas, ou a melhoria das unidades autoconstruídas pela própria população.
O noticiário dessa semana e o editorial do Estadão de 4-08-07 deram destaque as medidas que o governo do Estado vai adotar para melhorar e a eficiência da CDHU e sanar as denúncias de corrupção que envolveram a empresa recentemente.
E logo aparecem as fórmulas neoliberais de enxugamento da estrutura pública de atendimento a um dos problemas mais graves enfrentados pela população de baixa renda.
Logo agora que se avança na política habitacional em todos os níveis de governo, depois da lei do Estatuto da Cidade que garantiu o direito à moradia urbana com qualidade, que crescem os programas de regularização de áreas, de requalificação dos cortiços e produção de habitação na área central, invertendo a lógica dos antigos conjuntos do BNH que segregava a pobreza nas periferias urbanas.
Quando se vislumbra um grande investimento na área habitacional pelo PAC do Governo Federal, o Governo do Estado vem falar em enxugar a CDHU, por ineficiência ou suposta corrupção. Além disso, desqualifica a produção de quatro décadas de política habitacional que com todos os seus problemas operacionais, foi uma empresa que consolidou uma visão técnica e vem experimentando a diversidade de programas e alternativas para a solução de problemas habitacionais.
Se avanços houveram, estes se devem ao empenho da equipe técnica que buscou alternativas, dialogou com os movimentos populares, entendeu suas demandas, e se mais não fez, foi porque, aqueles que tem o poder de decisão por vezes atropelam a melhor técnica por interesses políticos eleitorais localizados em detrimento das políticas públicas de largo alcance.
A proposta mágica propõe entregar o galinheiro para as raposas. Será que o Governo não aprendeu com o buraco do Metrô? Empresas contratadas fiscalizando obras públicas?
O interesses das empreiteiras conflitam diariamente com a visão dos técnicos do setor público que tentam garantir a qualidade da produção pública contra padrões construtivos diferenciados que insistem em reduzir uma fiada de tijolos no pé direito das construções e se não fosse a resistência dos técnicos do setor público de habitação, como a CDHU, as habitações em São Paulo se tornariam verdadeiros “iglus” para justificar a viabilidade econômica.
Além disso critica-se a existência de escritórios regionais, ora, não se pode jogar fora a criança com a água suja do banho. O clientelismo na máquina pública com apadrinhados em cargos de decisão, sempre se prestaram a aqueles que não valorizam as funções de Estado e a alternância de poder e troca de responsáveis pelas políticas públicas, provocam a descontinuidade nos programas.
O princípio de democratização do Estado há muito vem incentivando a descentralização administrativa, mas parece que este não é um objetivo do atual governo estadual. É evidente que é necessário aumentar a eficiência do Estado e da CDHU, mas, isto significa investir mais, e não menos, na elaboração técnica e na política de subsídios para atender a demanda de mais baixa renda com qualidade.
Está na hora de um basta a esta visão neoliberal e aumentar a capacidade de realização do Estado com a realização de concursos públicos e valorização da produção técnico científica nos órgãos públicos em detrimento do clientelismo político e do desmonte do Estado que só serve aos interesses privados.
*Arquiteta, Doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Especialista em renovação de centros históricos pelo IHS – Institute For Housing and Development Studies de Rotterdam, Holanda. Membro do Comitê Paulistano.