Gilmar de Carvalho: Xilogravura para sempre

Uma homenagem ao centenário da xilogravura na literatura de cordel tem início hoje com uma exposição em Juazeiro do Norte. O efeméride é o mote para o pesquisador Gilmar de Carvalho analisar o bordado de uma arte que resiste ao tempo.

Alguns podem argumentar contra a data fechada (cem anos) de utilização da xilogravura como ilustração das capas dos folhetos de cordel. Os céticos de sempre podem falar em cento e um anos ou em noventa e nove e onze meses. Seria o caso de se perguntar: que diferença faz?


 


A efémeride se inscreve na contramão da morte, sempre anunciada, dessas manifestações da tradição popular.


 


Essa técnica chinesa, velha de milênios, migrou para a Europa medieval, ilustrou saltérios e incunábulos, passou pela tipografia de Gutemberg e desembarcou, oficialmente, no Brasil, em 1808, com a chegada das primeiras impressoras.


 


A xilogravura se impôs, como a ilustração possível, quando não existiam clicherias e a mão-de-obra, criativa e habilidosa, passou a escavar, nos pedaços de madeira, o que tornava os jornais um pouco mais sedutores ou atraentes, do ponto de vista da visualidade.


 


A imprensa do Ceará, implantada em 1824, no rastro da Confederação do Equador, demorou um pouco para adotar essa técnica e essa arte, o que vai se dar mais para o final do século XIX.


 


A partir da interiorização das máquinas, que se tornavam obsoletas para os centros maiores, um conjunto de histórias, enunciadas nas noites sertanejas ou cantadas ao som da viola ou da rabeca, pôde ser impresso como folheto de feira.


 


Os primeiros títulos desse empreendimento, de extração das camadas subalternas, traziam capas cegas ou com vinhetas e cercaduras, vindas nas caixas dos tipos, para a composição manual, o famoso “cata-cata”.


 


Com o passar do tempo, como a redundância é levada a conviver com a novidade, vieram outros títulos e nem sempre os editores ou poetas contavam com as clicherias de metal de Recife ou Fortaleza.


 


Em Juazeiro, santeiros e artesãos, como Mestre Noza, João Pereira e Manoel Lopes, começaram a cortar nos tacos de umburana, por encomenda do editor José Bernardo, princesas, dragões, cangaceiros e o Padre Cícero. Estava inaugurada (para não dizer “inventada”) uma tradição.


 


Outros gravadores, como Damásio Paula e Antonio Batista (o Relojoeiro) foram “crias” das gráficas e deram respostas, ainda mais imediatas, às exigências e solicitações do mercado.


 


No início dos anos 60 (do século XX), quando a Universidade do Ceará começou a formar o acervo do seu Museu de Arte, mandou emissários ao Cariri (Lívio Xavier, Floriano Teixeira e Sérvulo Esmeraldo), para adquirir tacos das tipografias. José Bernardo reinava absoluto, desde meados da década de 1920 até 1949, quando comprou o acervo de João Martins de Athayde e deslocou para o Juazeiro o pólo da produção de folhetos de feira do Brasil.


 


Nos anos de 1960, Bernardo ganhou concorrente, Manoel Caboclo, que havia sido sócio de João Ferreira de Lima, autor do Almanaque de Pernambuco.


 


Com a recolha feita e o acervo do Museu de Arte Contemporânea da UFC (Mauc)enriquecido, os gravadores redobraram a atividade. Ou seja, a aquisição injetou ânimo ao mercado e mostrou a importância do que era cortado e escavado tendo como suporte um pedaço de umburana de cambão.


 


Foram encomendados álbuns a Noza, Walderêdo, Lino e Zé Caboclo. Entravam em cena novos procedimentos, como planejamento, serialização, assinatura e cuidado com as matrizes. Até então, a maioria das capas dos folhetos ficava com os editores ou com os autores das encomendas.


 


A xilogravura ganhava sua “aura”, uma autoria, o que era novo, em um meio marcado pelo anonimato das criações.


 


Tivemos mostras itinerantes pela Europa, edição de álbuns (como a “Via Sacra”, de Noza), em Paris e o surgimento de uma geração intermediária, com um viés político mais acentuado, em que pontificaram os mestres Abraão Batista e Stênio Diniz.


 


Com o desmanche da tipografia de Juazeiro, nos anos de 1980, surgiu uma novíssima geração, como resposta às mortes anunciadas, mais uma vez, do cordel e da xilogravura.


 


José Lourenço, Francorli, Nilo, Naldo, Cícero Vieira, Hamurabi, Elosman, Erivana, Ailton, João Pedro, dentre outros, passaram a cortar tacos de umburana, a fazer exposições e a dar oficinas, antecipando um surto de renovação e de revitalização, como nunca a xilogravura experimentara.


 


Essa capacidade de superação do pessimismo, da rejeição da morte, e da renovação, tem sido uma constante em relação a esses artistas de extração popular, ligados a uma tradição, mas que partem para atualizá-la.


 


A vitalidade da xilogravura de Juazeiro do Norte vem daí, de sua força e sinceridade, de sua ética (sertaneja), de sua inserção desconfiada nas armadilhas e tramóias do mercado.


 


É uma gente decidida, guerreira, que não se deixa abater, e faz do trabalho, da natureza, da festa e da fé objetos de recriação poética, num contexto de apropriação das tecnologias e da incorporação de temáticas, olhares e influências da cultura de massa. E assim, eles se preparam para enfrentar os próximos cem anos.