Diante do olhar porto-alegrense, cresce a exclusão…

Com o desafio de produzir a nova versão da ''Classe'', iniciamos, à partir dessa, uma série de matérias sobre a situação da capital gaúcha. Um olhar sobre a atuação do poder público em Porto Aleg

Por Sônia Corrêa e Natália Victória


Colaborou: Miquele Romanovski


 


O Bicho



Manuel Bandeira



Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.


Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.


O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.


O bicho, meu Deus, era um homem.


 


O fenômeno do crescimento do número de moradores de rua, não é uma exclusividade dos gaúchos, dos brasileiros, ou mesmo do chamado terceiro mundo. Faz parte de um processo mundial que globaliza a exclusão social. O fim da Guerra Fria, do Estado de Bem Estar Social e o advento do neoliberalismo expõe as chagas mais ardentes da sociedade capitalista.  Estados Unidos, França, Canadá, entre outros países também se vêem diante desse “problema”. Em 1994 (SLAGG, N.B., LYONS J.S., COOK J.A. A Profile of Clients Served by a Mobile Outreach Program for Homeless Mentally Ill Person), um estudo sobre os desabrigados de Chicago, observava que 70% dos moradores de rua tinham transtornos mentais, 16% eram alcoólatras e 12% apresentavam problemas de drogadição.


 


Em nosso trabalho de reportagem, tomamos como exemplo a Cidade Baixa, bairro central da capital gaúcha, conhecido por sua variedade de bares e restaurantes e ampla vida noturna, que tornou-se um reduto de moradores de rua. Ao transitar pelas calçadas é necessário o cuidado de não pisar sobre as “camas” espalhadas pelo chão. Poderia ser o Centro, o Bairro Floresta, o Menino Deus, o Parque da Redenção, as pontes da Avenida Ipiranga, a Orla do Guaíba, o Viaduto da Borges, ou qualquer outro local. Eles estão em toda a parte.


 


Antigos moradores do Bairro Cidade Baixa, mais especificamente, da Rua General Lima e Silva, convergem no incômodo da situação, mas dividem sua opinião, quando se trata de avaliá-la. Kiria Zanol, vice-presidente da Associação dos Moradores, diz que “é um nojo ter essa gente na porta de casa”. Segundo ela, são pessoas sujas, bêbados e drogados que, além de invadirem as calçadas, ofendem os moradores que reclamam da presença deles.


 


Já a professora municipal Denise Rogowski, moradora do bairro há mais de 20 anos, avalia que o crescimento do número de moradores de rua é uma consequência social. “As pessoas são jogadas pra fora da vila para tentarem a sorte onde há aglomeração popular. Com o grande número de bares, restaurantes, supermercado e seus frequentadores, é mais fácil conseguir esmolas. É o jeito que eles têm para sobreviver”. Denise lembra ainda que havia uma “casa de passagem”, na Rua Sarmento Leite, que foi fechada, com a promessa de que outra seria aberta nas proximidades, mas isso nunca aconteceu.


 


O Poder público


 


A Fasc (Fundação de Assistência Social e Cidadania) é o órgão da Prefeitura de Porto Alegre responsável pelos programas e serviços que deveria promover direitos e a inclusão dos cidadãos que estão em situação de risco e vulnerabilidade social e articular a rede de atendimento composta por unidades do município e organizações não-governamentais conveniadas. Segundo a Fundação, a última pesquisa sobre moradores de rua foi realizada em 2004. Os dados indicam 1.300 moradores de rua adultos e 680 crianças e adolescentes. Um convênio fechado (apenas) em outubro deste ano com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) realizou uma nova pesquisa que terá seus dados divulgados em janeiro de 2008.


 


O Diretor Técnico da Fasc, Mauro Vargas Jr, afirma que a tendência é o número de crianças e adolescentes diminua, diferente da população adulta que deve aumentar, no entanto, não há uma política governamental que confirme a afirmação. Mauro explica, ainda, que entre as principais causas está no fato destas pessoas terem vindo do interior e por falta de trabalho vão parar nas ruas.


 


Outros dados sobre os moradores de rua, informados por Mauro Vargas Jr, é que o perfil destes situa-se na faixa etária entre 19 e 24 anos, excluídos de convívio familiar, atraídos pela drogadição, consumidores de craque. As estatísticas vêm do contato estabelecido pelos profissionais de assistência social da Fundação.


 


Questionado sobre os desabrigados em consequência de transtornos mentais e o tipo de acompanhamento psicológico dado a eles, o diretor técnico criticou a política de fechamento de hospícios, advinda do Governo Federal, através da chamada reforma psiquiátrica. Atualmente existem 25 pessoas em tratamento realizado em comunidades terapêuticas. As sequelas características são, para os jovens, consequência da drogadição e os idosos, problemas mentais. Apesar das diferenças biológicas, geracionais e dos motivos que os levam a sofrerem transtornos, jovens e idosos são enquadrados como “população adulta”.


 


Além do Albergue municipal, com 150 leitos, Porto Alegre conta com dois abrigos mantidos pela prefeitura, cada um com 100 vagas, e mais três albergues com cerca de  175 leitos. O programa “Ação de Rua”, destinado a este público, segundo site da Fasc, funcionou apenas três meses, durante o governo do Prefeito José Fogaça.


 


A assistente social “L.D.”, que pediu para não ser identificada, denuncia que a Prefeitura não vem cumprindo seu papel. “O programa 'Ação de Rua' deixou de funcionar na atual gestão. Outros programas, como o 'Sentinela', que recebe verba federal, atende apenas dois casos na capital e o Plano Municipal de Enfrentamento à Exploração Sexual deixou de vigorar no governo Fogaça”, garante a profissional.


 


O Perfil


 


Os moradores de rua de Porto Alegre e jornalistas da capital, através de uma iniciativa pioneira, em 1999, criaram o Jornal Boca de Rua, uma publicação feita e vendida por eles, com temas relacionados à realidade das pessoas em situação de rua, como drogas, moradia, educação, Aids, preconceito, etc. O dinheiro arrecadado na comercialização do veículo reverte integralmente para os integrantes do grupo, constituindo uma fonte alternativa de renda.


 


A situação de rua fica explicita na história da jovem M.S., negra, 16 anos, que perambula pelas esquinas da Av. Ipiranga. Ela está nas ruas há muito tempo, mas não sabe precisar quanto. Acha que tinha 11 anos, quando fugiu do abuso sexual do pai alcoólatra, da conivência da mãe e da agressão de ambos. Ela diz que “nunca foi virgem”, pois não lembra quando foi abusada sexualmente pela primeira vez. Acha que desde o berço. Conta que foi estuprada pelo pai, por tio, vizinho… Fugiu de casa e foi parar numa das pontes da Av. Ipiranga.


 


Lá conheceu o jovem Paulo, que ela chama de marido. Ele a acolheu, para dormir sob um papelão e, para matarem a fome, na época ofereceu-lhe “cola de sapateiro”. Hoje, os dois e os companheiros de rua consomem craque. Para comer e/ou conseguir a droga, eles pedem nas sinaleiras e ela se prostitui. Diz que pratica sexo oral por R$ 2,00 à R$ 5,00. Não sabe se tem Aids. Disse que nunca fez nenhum exame e também nunca foi abordada pela “Prefeitura”. O órgão estatal que ela conhece bem é a polícia.


 


Políticas são necessárias


 


Casos como esse são encontrados muitos. Demonstra a fragilidade e a ausência de políticas sociais. O Estado precisa atuar como agente de inclusão. Seu papel consiste em garantir o bem comum da sociedade. A deputada federal Manuela d'Ávila afirma que “o poder público tem o dever de realizar uma intervenção junto a esse contingente populacional, com políticas públicas que objetivem incluir na sua rede de assistência social, de saúde, habitação, educação, cultural, entre outras, este segmento, compreendendo suas vivências, histórias, estruturas familiares, para que se possa fazer uma abordagem interdisciplinar”.


 


De fato, nunca, como hoje, se viu as ruas, praças, viadutos, parques da capital gaúcha tomada por tantos moradores de rua, vivendo sob condições absolutamente desumanas, sujeitos a conflitos, fome, doenças e violência permanente. Poderia ser desnecessário pesquisas, pois a exclusão cresce à olho nu, diante do povo porto-alegrense. Os pedintes, os moradores de rua, os mendigos que se espalham por Porto Alegre são a expressão máxima do capitalismo, uma sociedade que exclui, que agudiza as questões sociais. A solução de tal problema passa pela transformação social, mas políticas públicas, que reduzam os danos desse imenso contingente de seres humanos, são tarefas do poder público, hoje.