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'Onde os Fracos Não Têm Vez', ou algumas gotas de otimismo

No filme dos irmãos Coen, grande vencedor do Oscar deste ano, estamos só no começo de um terror que veio para ficar e é mais real do que imaginamos. Veja artigo de Romero Venâncio para o Brasil de Fato.

Os irmãos Joel e Ethan Coen são conhecidos no cinema estadunidense e mundial por trabalhar temas limites e que têm uma aproximação e uma releitura do estilo Noir dos filmes dos Estados Unidos dos anos 1940: assassinatos em série, atmosfera tenebrosa, figuras psicóticas, sangue à vontade e suspense. Gosto de Sangue (1984), Arizona Nunca Mais (1986), Na Roda da Fortuna (1994) e Fargo (1995) são exemplos de uma perspectiva muito própria de levar para as telas alguns questionamentos que destoam do arrumado e previsível “cinema comercial”.


 


Dessa vez, acredito que se superaram. Em No country for old men (que tem como título sugestivo no Brasil Onde os Fracos Não Têm Vez), os Coen fizeram um “filme policial” de intensa dramaticidade e com personagens sui generis, como os de Javier Bardem (Oscar de ator coadjuvante) e Tommy Lee Jones, que no fim acabam por desconstruir a concepção de “filme policial” no estilo estadunidense comercial.


 


A película é ambientada no Texas, já na fronteira com o México, na década de 1980. Tem enredo aparentemente simples: trata-se de um caçador que encontra uma série de corpos assassinados pelo tráfico e ao lado de um deles uma maleta cheia de dólar. Ao levar a maleta é perseguido implacavelmente por um assassino psicótico, num jogo de gato e rato.


 


Até aí, nenhuma novidade para o cinema dos Estados Unidos. Porém, a trama é mais rica do que uma brevíssima sinopse. O filme se inicia com uma voz, que é uma espécie de narrador, refletindo sobre as mudanças que a região do Texas vive naquele momento. Sabemos de imediato que a voz é de um xerife melancólico que vê a violência ganhar proporções grandiosas e com requinte de crueldade. Saudosamente lembra quando policiais trabalhavam sem armas e com um baixo índice de criminalidade.


 


A grande sacada do filme está na forma de narrativa do protagonista vivido por Lee Jones. Um policial em fim de carreira e profundamente melancólico com sua impotência diante da “tempestade” que se avizinha, a saber, um temporal de violência gratuita e da mais completa desconsideração pela vida humana.


 


Na fronteira Texas/México, a vida de um ser humano vale tanto quanto a de um cachorro (presença marcante no filme, os cachorros vivem as conseqüências da brutalidade humana sem compaixão). Um policial que conhece o assassino psicótico e sabe da sua capacidade de perseguição por dinheiro e de sua conduta mafiosa, mas que já não tem nenhuma força para persegui-lo como deveria. A velhice o alcança da maneira mais triste possível e num momento em que se desencadeia um tipo de violência incontrolável.


 


Um detalhe importante: a geografia se confunde com a narrativa. O tempo inteiro o deserto acompanha os personagens e é o espaço onde acontece a luta encarniçada pela sobrevivência.


 


A cena inicial em que o caçador encontra vários homens mortos – e um cachorro – e um deles ainda sobrevivendo numa caminhonete pedindo água e para fechar a porta do automóvel com medo de lobos é chocante e indica um rastro de morte e resistência que será a tônica da película dos irmãos Coen. Raríssimas vezes percebe-se alguém rindo no filme.


 


A marca é a seriedade e a tristeza de personagens completamente impotentes perante um sistema implacável com os mais fracos. Vendedores, balconistas, caixas de supermercado (profissão da esposa do caçador protagonista), funcionários de hotel desfilam no filme com rostos marcados pela escravidão da luz sem misericórdia de quem vive o cotidiano de um processo modernizador que jamais levará em conta a vida humana.


 


Como muito bem afirma a personagem Carla Jean: “Estou acostumada com muita coisa. Trabalho num supermercado”. Frase marcante para situar o lugar de pessoas que “não podem parar o que está vindo” e que assistem a tudo numa perplexidade sem fim e numa resignação irritante.


 


Os irmãos conseguem um feito cinematográfico interessante: articular a narrativa em três partes que correspondem a três focos narrativos, onde a trama está toda articulada e os personagens intrincados numa perseguição que indica toda a ação da película. O primeiro foco é o personagem Llewelyn Moss, um caçador do deserto texano que encontra a mala de dinheiro depois de uma chacina cometida contra um grupo de traficantes (imagina-se de imediato uma guerra de bandidos disputando a venda de drogas).


 


Moss e o dinheiro sofreram uma perseguição frenética de um segundo personagem, que corresponde a um segundo foco narrativo: Anton Chigurh, o matador psicopata que joga com uma moeda para saber se mata qualquer um que encontre pela frente. O terceiro e mais importante foco narrativo é o do xerife Ed Tom Bell.


 


Pela narrativa melancólica do xerife é possível entender o processo de mutação em que vive o Oeste estadunidense. O Oeste de John Wayne não existe mais (se é que existiu algum dia fora das lentes cinematográficas) e os “violentos índios” peles vermelhas são brincadeira de adolescentes perto de um crime organizado que espalha um tipo de horror sem precedentes contra uma população impotente e sem rumo num deserto imenso e sob um sol inclemente…


 


A forma como Anton mata as pessoas com um longo botijão de gás comprimido é algo assustador, que lembra aqueles filmes de terror da década de 1980, mas com uma diferença: nos filmes de terror do período citado, havia um ar de ingenuidade e no final o matador psicopata era morto ou controlado ou empurrado para uma próxima parte. Era um medo que se resolvia.


 


No filme dos irmãos Coen estamos só no começo de um terror que veio para ficar e é mais real do que imaginamos, tendo sua resolução no lugar de sempre, onde os fortes de sempre têm, só eles, sua vez. Até parece que não estamos num filme.


 


A impotência daqueles personagens passa a ser a nossa impotência diante do horror de uma violência que cresce a cada dia. A falência da “épica do Oeste estadunidense” vem a partir da ascensão do terror do crime organizado em torno das drogas. É claro que a fronteira passa a ser o lugar limite para entendermos o que está acontecendo nas grandes cidades.


 


Os irmãos Coen não filmam gratuitamente lá na década de 1980, no início de tudo. Hoje, aquela violência da fronteira é a violência da cidade. O fim do filme é a descrição de um sonho estranho do impotente xerife que não prende mais ninguém e não dispara um só tiro naquele Oeste perdido no meio do mundo.


 


Um filme extraordinário, daqueles que fotografam uma época num realismo sem nenhuma magia, mas com muito senso de realidade. O mundo que sai das lentes dos irmãos Coen e o nosso mundo real em que estamos é o mesmo mundo: é o lugar onde os fracos não têm vez.